©cocoparisienne
 

 

 

 
 

 

 

 

Pacto

 

 

somos preciosos demais

para nos desperdiçarmos

em modelos tão banais

sapatinhos apertados

que parecem com buracos

onde as possibilidades

nascidas pra serem livres

tornam-se cárceres tristes

de nossa afetividade;

ou deliciosos tesouros

para nos empanturrarmos

um do bem pouco do outro

nos quais nos fantasiamos

do que já chega fingido

e em si todo retorcido

para caber apertado

onde não cabe, coitado!

 

 

 

 

 

 

Nascentes

 

 

"Se soubesses de tua potência,

não te acharias assim tão pequena",

disse a árvore à semente

para revelar-lhe a grandeza

que a longa espera acalenta,

desde o solo, solenemente.

 

"Se nascesses assim alada e colorida,

furtarias da natureza o mais lindo milagre",

explicou a borboleta à lagarta

que, mal sabia, terá outra vida

tão logo a primavera sagre

a metamorfose já anunciada.

 

"Se no ovo coubesse tua futura envergadura,

a casca seria do tamanho de um iglu",

falou a condor ao filhotinho

que já queria ir à grande altura,

lutar como um guerreiro zulu

e trazer comida para o ninho!

 

"Calma, meu bebê, você tem apenas

um pouco mais do que uma tonelada",

sussurrou a jubarte à recém-nascida baleia

que nadava fraca, às duras penas,

sob a imensa sombra azul-prateada

que ao fundo a mãe projetava na areia.

 

"Mesmo pequena, no vaso, a árvore cresce.

Como outra qualquer, demora, mas amadurece",

confidenciou o mestre ao jovem aprendiz

da arte do bonsai, a árvore anã que floresce,

fecunda-se e, enfim, bom fruto oferece,

pois é adulta na copa, no caule e na raiz.

 

"Para crescer, qualquer alegria

tão somente precisa

de quem primeiro sorria!",

completou o poeta à menina

que lia o poema sozinha

e logo percebeu que tinha

muito mais do que companhia:

todos os que com ela sorriram

ao fim deste mesmo poeminha

e com o sorriso contribuíram

para crescer sua nascente alegria!

 

 

 

 

 

 

Um Poema Para a Menina

 

 

a menina ainda não conhece a poesia

nunca se deitou em seus versos

nunca experimentou suas carícias

nunca se mediu pelo seu metro

nunca se ecoou em suas rimas

 

a menina não chorou, nem riu

não meditou, não se arrebatou

nem sabe se sabe o que viu

ou se só viu o que se mostrou

 

e nem desconfia dos esconderijos

das máscaras, dos artifícios

dos códigos e disfarces

dos enredos e imagens

 

a menina não sabe que é espelho

e que reflete o que é de dentro

pressentimento, ideia ou pensamento

advertência, susto ou sentimento

 

sentidos que jazem sob a pele

das palavras e da gente

no pasmo que precede

sentir o que se sente

 

a menina ainda não sucumbiu

ao fascínio da poesia

não nadou em seu rio

não conhece a água fria

sua correnteza imperativa

ou as margens espectadoras

do leito sob a perspectiva

das chances camaleoas

 

a menina não traduziu a ambivalência

do absoluto nas coisas relativas

não roeu das palavras a polissemia

nem a lucidez extraiu da demência

 

ou a solidão dirimiu na letra alheia

ou a dor curou com o conselho do poeta

não leu o elogio para não se sentir feia

nem viu o escudo para tudo o que a afeta

 

a menina não se entregou ao delírio

de ver coisas que ali não havia

sob efeito de alucinante colírio

que o jogo das palavras evidencia

nem suspeitou que é tudo truque

artifício, estratagema ou embuste

 

a menina ainda não conhece a poesia

e o poeta garante que ela nem precisa

 

 

 

 

 

 

Tântalo

 

 

nos vãos instantes,

o colecionador

coleciona a dor

dos itens faltantes

totens vacantes

nos vãos das estantes

 

 

 

 

 

 

Multiverso

 

 

Lá dentro dos poemas,

nos vãos entre as letras,

deve haver mínimos portais,

finos escapes pelos quais,

refeitas de sucessivas surpresas,

as palavras se ressignificam

na infinita polissemia

de que se faz a poesia.

 

Deve haver cumplicidade

entre a intenção e o acaso

para que tanto significado

tenha essa multiplicidade.

 

Talvez universos paralelos

com versos idênticos

e sentidos diversos,

como novos prêmios

para antigos pleitos.

 

Ou serão buracos negros

a condensar as palavras

e expulsar em quasares

seus significados plenos?

 

Não deve ser quântica

a questão semântica,

mas algum outro mistério,

balizado noutro critério?

 

Seja qual for a resposta,

não importa o resultado,

pois, na leitura seguinte,

de imediato se reposta

para que outra cor repinte

seu novo significado...

 

 

 

 

 

 

Neologismo

 

 

Em nossa cultura,

houve uma cisão

irreconciliável e obscura

entre o coração

e a mente.

 

Proponho, para cura,

novo advérbio:

coraçãomente!

 

 

 

 

 

 

Velha Biblioteca

 

 

Assim jaz a poesia,

sob sete linhas de pauta,

inerte, descolorida e tardia,

prostrada em ruína lauta

a conter o canto dos séculos,

a decompor-se nas rimas do tempo,

ao apetite dos ácaros incrédulos!

 

 

 

 

 

 

Conta-gotas

 

 

Quem pagará a conta da seca

quando a sede sentar-se à mesa

e reclamar a vida que se perde?

 

Quem limpará a sujeira que fede

e a ferida infeccionada em pus

na noite perdida sem luz,

sem guarida e sem saída?

 

Uma voz impotente grita aflita

à beira da represa vazia,

e o eco da terra ressecada

responde com um imenso nada

onde antes era lauta a vida,

difusa na água limpa.

 

Que vento soprará nuvens

de esperanças que chovam

ou de olhos que se turvem

em lágrimas que corram

pelo solo tornado estéril

no outrora campo fértil?

 

Que dança trará a chuva

depois de sanada a culpa

pelo contumaz desperdício

e pelo recusado sacrifício

de reduzir, reusar e reciclar,

para as reservas preservar?

 

Uma criança sedenta

na imaginação inventa

um quimérico copo de água

que console a anidra mágoa

de sua sede tão constante

em um exílio tão distante

dos açudes, represas e lagos,

dos igarapés, baías e sacos,

das nascentes, grotas e cachoeiras,

das fontes, rios e corredeiras...

 

E para a vida apartada

do milagre da água,

a aridez responde convicta

que a sede sairá invicta

na peleja do já perdido.

E, para o pueril pedido

contra o mal sem antídoto,

ela nega o copo e o líquido.

 

Nega a água e ceifa a vida!

 

 

 

 

 

 

Extermínio

 

 

Com a notícia que trouxe,

tudo ficou mudo, quieto,

e o Uirapuru calou-se.

 

Para o índio, terra é teto,

e não questão de mérito!

 

Sem terra, sem teto,

sem vida, sem feto:

natimortos, abortados,

rarefeitos, feitos raros,

exterminados, feito ratos!

 

Anauê, meus caros,

entoem os últimos ais,

já ligaram o gás

nos campos da FUNAI.

 

 

 

 

 

 

Auditoria

 

 

recebi a visita do tempo

credor dos sonhos

fiscal dos eventos

senhor dos medos

que medo medonho

que tenho do tempo

ladrão de momentos

de mim risonho

de mim tristonho

 

cobrou-me resultados

provas e atestados

quis saber do lucro

aplicado no sepulcro

avaliação de desempenho

planos, erros e acertos

relatório de conquistas

o sucesso em planilhas

 

acerto de contas

sem segurar as pontas

cobrança em beneplácito

ao velho pacto tácito

feito na distante infância

quando com relutância

mal aceitamos que ele passaria

e num belo dia nos cobraria

 

olhou o que quis

conferiu o que eu fiz

mediu o que falta

e disse que volta

que fica na pauta

que espera a cova

no limite do prazo

para encerrar o caso

 

foi o primeiro encontro

assim tão de perto

com o devorador monstro

assim já tão certo

e parece que em breve

segue o decreto

para que me revele

seu lugar secreto

onde incógnito guarda

tudo o que se passa

 

 

 

 

 

 

Multiverso VII

 

 

Vim embora de Pasárgada,

destruída, acabada,

sem rei,

sem fé,

sem lei:

terra arrasada,

manhã sem estrela,

rio sem ribeira,

sem andorinha,

sem sapo,

sem porquinho da índia...

 

Utopia corroída

pela ferrugem colonialista

que brotou por baixo da tinta.

 

Bolor de dentro,

canceroso elemento

roendo, roendo...

 

E ruiu Pasárgada

e tudo foi por nada!

 

 

 

 

 

 

Bibliografia I

 

 

Octavio

deu-me

o arco e a lira

e roubou-me

a paz,

e pôs,

na imagem

do reino

da poesia,

em que

o que

se nomeia

é,

a imagem

alheia

ao nome

que teria,

antes de tê-lo,

e que

já era

a poesia!

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Luiz Eduardo de Carvalho sempre atuou na intersecção entre Cultura, Educação e Política, tendo emprestado da Comunicação Social as ferramentas para as pontes. Estudou Farmácia e Bioquímica e Letras na USP, formou-se em Comunicação Social na ESPM, e é licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade Nove de Julho. Foi professor de teatro e redação em alguns dos principais cursinhos pré-vestibulares de São Paulo; chefe de Subsecretaria Parlamentar da Câmara Municipal de São Paulo, publicitário e assessor de imprensa, jornalista editor da Carta Maior na área de cultura, diretor executivo do Instituto Pensarte, assessorou o ministro Gilberto Gil coordenando a comunicação da Teia dos Pontos de Cultura de Belo Horizonte em 2007 (PNC – Cultura Viva – MinC), gerenciou o Espaço Parlapatões em São Paulo. Desde 2015, dedica-se exclusivamente à produção literária. Publicou O Teatro Delirante (poesia erótica e lírica, Giostri, 2014) e Retalhos de Sampa (poesia, Giostri, 2015). Recebeu, entre outros, o prêmio Oliveira Silveira da Fundação Palmares – MinC em 2015 com o romance Sessenta e Seis Elos (romance histórico, FCP, 2016), o Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 2016, com o romance Xadrez (romance epistolar, Patuá, 2019), o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura 2018 e o Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira dos Escritores – Prêmio Maria Clara Machado (1º lugar), com a peça teatral Evoé, 22!, Prêmio de Incentivo à Publicação Literária do Ministério da Cultura 2019, com o conto Um Conto de Réis (e de Rainhas). Em 2020, publica Quadrilha (novela, Patuá).