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Recensão ao livro A Comoção do Mundo, de Paulo Teixeira
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Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo a treva nasalada.
Luís Miguel Nava, Vulcão



No fundamento do mito encontra-se a variedade intrincada das suas convulsões. À memória do mito de Europa, filha do rei Agenor de Tiro, raptada por Zeus metamorfoseado num belo touro branco, agrega-se a dos feitos terríveis de um dos seus mais famosos filhos, Minos, rei de Creta, pai do Minotauro e mentor do célebre labirinto. Na história mítica dos descendentes de Europa (a do "olho amplo" que contempla a escuridão dos confins do mundo) confluem tanto as potências do engenho como as do desastre. A astúcia da princesa Ariadne não evitou o seu abandono em Naxos, nem o arquiteto Dédalo conseguiu acautelar a morte do filho, atraído pelos raios solares. A catástrofe movimenta-se com as civilizações ao ritmo dos véus ondulantes da princesa fenícia na sua viagem agora planetária. A koinê da cultura ocidental acelera-se nos seus olhos sempre voltados para o princípio da escuridão, trazendo atrás de si a luz inelutavelmente tornada noite em cada rotação, de ilha em ilha com as torrentes de júbilo tecnológico diferidas entre imagens e ruídos. 

Desde a Antiguidade se terá pressentido a conexão dialética entre a civilização e a sua ameaça na forma do pathos ininterrupto daquilo que se anuncia contingente. A mudança, mais do que o progresso, é o seu motor reconhecível e a sua mónada constitutiva; Lucrécio encerrava o De Rerum Natura com as pavorosas descrições dos efeitos da peste em Atenas que séculos antes vitimara Péricles e colocara em suspenso uma das fases mais brilhantes do fogo grego, acertando-lhe como causa a qualidade dos átomos nocivos e a capacidade de estes, em certas circunstâncias, se congregarem e infetarem os céus1. A mudança de estado e a perspetiva do acontecimento desagregador seguinte supõem juízos críticos que a memória privilegia na sobrevivência de certas imagens no discurso das civilizações. Codificadas, elas tematizam recorrentemente a decadência como valor próprio de uma forma de ser moderno, a da expressão ambígua daquilo que se intercambiando numa dança ritual em círculo, é perigo e é saída de emergência conforme a troca de polaridades. O conhecimento de um esquema como este, apesar de tudo, não garante maior tranquilidade àquele que assiste ou pressente o agitar dos ventos; o conhecimento da natureza das coisas, ao contrário do que Lucrécio desejaria para o neófito epicurista — e talvez o tenha antecipado ao decidir encerrar a sua obra com as detalhadas descrições dos horrores da peste — não reduz necessariamente a inquietude do ser face às suas circunstâncias. A racionalidade não domina o seu revés contingente e o compromisso com a loucura dionisíaca, que Ariadne teria conhecido através do seu esposo divino, não garante senão o esquecimento momentâneo dos novelos do fatum. À civilização e à cultura restam o dorso disfarçado de um deus lúbrico que se deixa interesseiramente enfeitar por belas grinaldas. 

Onze anos após O Anel do Poço (Editorial Caminho, 2009), o poeta português Paulo Teixeira regressa à publicação com uma proposta de leitura da contemporaneidade em crise, cada vez mais impermeabilizada pelo monolitismo da figura-objeto mediática (a "mastigação discursiva do mundo", como diria Eduardo Lourenço2) em prejuízo da imagem dinâmica, dispositivo instável das realidades míticas de que se serve a criação poética. Em A Comoção do Mundo, o tom global mantém-se no nível crítico da observação dos sintomas do que é decifrado e mostrado como decadência pela meditação em torno de figuras, imagens e mitos, num hábil exercício de contemplação do desastre. A sua consciência constitui a "obscura razão que atravessa os séculos" ou "A estranha consciência que prevalece" referidas no penúltimo poema do livro, "A profundidade do tempo" (p. 97), de cujos "aparelhos de observação / espreita a dor que desponta" (ibid.). Estes versos fazem-se acompanhar de referências à queda de grandes impérios do passado e, de modo especial, ao império romano do Ocidente, um dos fantasmas mais perenes na memória da cultura europeia cujo momento definitivo de glorificação sistematizadora se faria no século XVIII, a par de outros cultos artísticos, com a monumental obra de Edward Gibbon. Em livros anteriores como Inventário e Despedida (1991), O Rapto de Europa (1994) ou Orbe (2005), a deambulação pela memória da polis, da cosmopolis e de seus legatários e fascinados oponentes reconstruíra a topografia de uma dimensão de cultura assente nas suas ruínas, conferindo-lhe a possibilidade de se reconhecer identitariamente na sua desagregação e de reencontrar nos níveis mais profundos da imagem — dos seus fragmentos — a sobrevivência da sua força poética. Apesar das muitas dificuldades e sombras distribuídas por A Comoção do Mundo, será esse um dos caminhos de regresso do labirinto, como se lê no poema "A Boda dos Tempos", quase a encerrar a obra, em versos como "Busca nas eras anteriores / um roteiro, um memorando" "ou "Busca na circunferência o regresso / e desenrola de novo a pangénese, / a razão esférica, redonda, de tudo o que vês, / o eco das pegadas que se movem, / subterrâneas, em segredo, / e imprimem no teu corpo / a marca digital" (p. 96). Regresso que, na rotação do mundo e na inelutabilidade dos seus ciclos, não prescinde da catástrofe como elemento intrínseco nem da organicidade da mudança como presença inevitável. 

A viagem de Europa, o seu arrebatamento alucinado pelas armadilhas da vontade, preside a este livro na forma do belíssimo desenho da capa da autoria de Rui Garrido (e reproduzido no cartão avulso que acompanha a edição). Numa perspetiva metafórica, ela é igualmente o limiar para um dos vínculos de sentido da obra, o do dinamismo dialético da imagem na modernidade no sentido que Walter Benjamin lhe concedeu em Passagenwerk, cuja autenticidade consiste na sua irrupção no instante em que passado e agora formam o que denomina como "constelação fulminante"3. Na poesia anterior de Paulo Teixeira, a importância do passado nas formas fragmentárias da memória não se conformara ao tom elegíaco do irrecuperável, apesar de se dirigir afetivamente a uma memória cultural topograficamente esboçada. A leitura imagética nos seus poemas lembra-nos a experiência de pertença a uma comunidade que partilha uma linguagem (a poética, na sua diversidade linguística e cultural) e onde esta, apesar de contingências e ruídos, sobre-vive. Walter Benjamin considerara a linguagem o lugar privilegiado da irrupção súbita, o flash do relâmpago que ilumina por momentos o tempo da leitura do verso e onde, nos interstícios da aparência formal, é possível pressentir as suas torrentes incandescentes. Em A Comoção do Mundo, os deslocamentos subterrâneos da memória do fogo sucedem-se sob uma superfície profundamente marcada pelas dissensões quotidianas que os acontecimentos vão desvelando. 

O olhar poético inicia-se na obra a ocidente através da série que constitui o ciclo "O país do regresso", o Brasil, em particular a Bahia (uma nota informa-nos que o poeta viveu em Salvador na última década). Entre a referência a eventos contemporâneos como a comoção pela morte da mãe-de-santo Stella de Oxóssi (p. 22-23) ou a tragédia de Brumadinho (p. 24-25), a viagem de Europa ressurge noutros poemas através da ficção baudelairiana do flâneur da modernidade, concentrado na contemplação do espetáculo da vida em poemas como "A voz demótica", complementando a perceção do "sentido efémero em todas as coisas" (p. 17) com a deambulação perspetivada em "O Mensageiro" no acompanhamento de uma temporalidade líquida:


O tempo escorre, um xarope espesso, 

com o melaço das escolhas feitas. 

Vai, na soma dos actos isolados

e no hiato das situações vindouras, 


a gíria das ruas, adágios, resenhas, 

coisas delineadas nos traços breves, 

que se precipitam, a modo de Ícaro, 

sobre casarões e cortiços, cascos e velas


oblíquas de saveiro, a sombra infusa

na água quieta que incandesce 

e cega, como horizontal lâmina,

a visão de horizontes e cidades. (p. 15) 


A voz demótica surpreende as minúcias esbatidas de um povo olhado na sua superfície ambiguamente em repouso, horizontal e epicurista como nos surge em "Colhes o tempo" (p. 16), mas interiormente predisposta para o furor — "A inocência vai de mãos dadas / com a malícia e a violência borbulhante, / a explosão do pagode no interior do carro / que se imobiliza de súbito na sinaleira" (ibid.) —, prolongando a fábula do impulso dionisíaco característico do "primitivo" em oposição ao "civilizado" que também Baudelaire havia contemplado nos seus escritos4. Ela regressa, de facto, no último poema da série, "Até a noite ser de água dura" (p. 26-28), título de uma canção do grupo de pagode Parangolé, no qual a voz demótica substitui a voz política na consagração do instante e na suspensão do chronos através do tópico clássico da carnavalização da existência. No "país do regresso", o princípio carnavalesco da subversão da ordem e do progresso (político, temporal, civilizacional) colhe a sobrevivência das vias míticas de controlo provisório do sentimento de efemeridade e desagregação pelo rapto da identidade e do nomos:



É preciso invadir avenidas e bairros

nobres, sabotar números e estatísticas, 

a cor parda da caderneta da identidade, 

dar o zig, escapar das brigas.

Com uma disposição leve e aérea, 


uma vontade de extravasar ânsias, 

sair de si, da sua esfera social, 

diluir-se na multidão, propagar

em todos os sentidos o ser amordaçado

pelas semanas de medo e desejo, 


chapinhar nos charcos de água

enlameada, enquanto o cheiro

a cerveja derramada se liberta

do asfalto e incrusta nas narinas. 

Tomar todas até a noite ser de água dura. (p. 28)


Regressando aos "antigos parapeitos" do Velho Mundo e alcançando Portugal (p. 31) na formulação pessoana da entidade geográfica do rosto que fita o Ocidente "futuro do passado", o país recolhe a metáfora do desvanecimento de uma ideia de cultura cujas imagens e valores soçobram perante o enfraquecimento potenciado pelo exílio da variedade sincrética própria da sua matriz. Sitiada e murada, saturada pela imagem-espetáculo como se lê em "A crucificação pelas imagens" (p. 68), a Europa contempla os diferentes indícios da sua crise atual, seja na constatação das fragilidades do progresso tecnológico (como no poema "I (Looping) de "Duas notícias da Etiópia", p. 34) ou das consequências das alterações climáticas ("Antiguidades", p. 55), seja na reflexão acerca da proliferação de fronteiras e suas consequências negativas (em "Uma questão de muros", p. 51-52, e "The burial of the United Kingdom", p. 69-70) ou na destruição inesperada de ícones da sua memória monumental, como os dois poemas sobre o incêndio de Notre Dame de Paris (p. 41-42), vítima paradoxal de ímpetos revolucionários e reconstrutivos. Em alguns poemas, a imagem na sua vertente mediática estimula a profundidade da imagem dialética benjaminiana ao fazer emergir na atualidade da diferença a memória dos acontecimentos críticos que presidiram aos momentos de mudança de ciclos e de paradigmas. Em "Danton nas barricadas de Paris" (p. 39-40), recupera-se o espírito das Revoluções (a Revolução Francesa, a da Primavera dos Povos de 1848 ou a da Comuna em 1871) como parte da "urdidura do tempo" que as grandes manifestações de protesto dos Gilets jeunes em 2018 e 2019 reatualizam. Sintomaticamente, o incêndio inesperado da catedral de Notre Dame a 15 de abril de 2019 reaviva as imagens da Paris em estado de sítio nos períodos revolucionários; de novo, a haussmanização da cidade não evitou a guerrilha mais de um século depois, ela que fora planeada sobre a destruição sistemática da intricada malha urbana antiga, obliterando ou deslocando edifícios, fazendo desaparecer ruas. Walter Benjamin destacava em "Paris, a capital do século XIX" (na versão alemã) que o sonho de cada época prenunciava as imagens da que se lhe seguiria, acrescentando no final do mesmo ensaio ser precisamente através da atividade do sonho que se estimulava o despertar5. O incêndio aviva a fantasmagoria das imagens e ideais sobre os quais assenta o ethos cultural de Europa, como se confirma na leitura do terceto final de "Danton nas barricadas de Paris": "A mulher de gorro frígio e seio à mostra / desaparece num patamar escuro. / Reconhece-a, visita de outro século nesta vida". (p. 40). 

Noutros momentos, a ameaça ad portas estabiliza-se na imagem que alimenta em simultâneo as perceções da distância e do desastre, como é possível ler na série de oito poemas de "Siriologia". O Oriente mítico donde a princesa Europa fora raptada (a matriz cultural do Ocidente) sucumbe no vazio provocado pela tragédia humana que, prospetivamente, reduzirá de novo a civilização à fantasmagoria dos vestígios e ao inventário das perdas, como se pode ler em "V (Pós-vida)" nos "restos de alvenaria, colunas em ruínas, / urnas, bilhas, estrelas, carimbos // com signos raros, o alfabeto lineal / dos papiros, canopos, gamelas // de bronze, escaravelhos egípcios, / armas de aparato para os príncipes // de Megido, moedas de prata / com o rosto imparcial de Zenóbia." (p. 64). A comoção perante a queda estimula, uma vez mais, o despertar das imagens, ressuscitando os mitos transicionais de anúncio de novos ciclos antecedidos da catástrofe. O breve poema VIII, escolhido para figurar na contracapa do livro, reabre o imaginário do último oráculo de Delfos a Juliano no qual se anunciava o definitivo silenciamento da sua fonte mítica; a destruição sistemática da cidade arqueológica de Palmira, Património Mundial da UNESCO, incapaz de ser defendida por aqueles que a consideraram digna da distinção, ascende a alegoria contemporânea da persistência da ruína e da inelutabilidade destrutiva no imaginário cultural do Ocidente:


Em Palmira, a fonte de Efqa, 

na base da colina, onde se ergue

o templo de Baal-Hammon,

secou misteriosamente. 


Nem Baal triunfa sobre a morte.

Nem os deuses vivem para sempre. (p. 67)


Na terceira parte do livro, "Estado de Sítio", o "requiem" inicial por Europa, tornada "démodée, / um museu do mundo, sedutora, excêntrica, / geriátrica, elevando muros contra o sul" (p. 73), exprime a persistência de gestos e ritos imperiais enredados na banalização e saturação das imagens mediáticas que os perpetuam. Poemas como "Peephole" (p. 77) ou "Selfie" (p. 78-79) evocam os anseios fetichistas das superfícies e da mercantilização visual numa "região / de espelhos, uma galeria / redonda de imagens // pessoais, ângulos, poses, / perfis, factos montados, / primaveras instruídas", (p. 77). No fechamento especular dessa modalidade de imagem opaca banaliza-se o sentido trágico da cultura, distraída no narcisismo do consumo e na relativização entorpecedora que tende a neutralizar a sua força apocalítica na experiência do cinema de massas, como se lê em "Isaías em Hollywood" (p. 76). Em contraste ao tempo reificado, controlado e cercado pelos seus ídolos e falsos mecanismos, surge a aceitação do tempo apocalíptico, incerto nos limites dos seus horizontes, e sobretudo do instante, o tempo da irrupção súbita das imagens dialéticas que nos religam aos mistérios do mundo e que, vindas do sonho, o tornam suportável no seu rigor. O acenar a Paul Celan, cujo centenário do nascimento (e meio século depois do seu suicídio) coincide com o ano de publicação deste livro, não se detém nos dois poemas que formam "A comoção do mundo" (p. 88-90) na referência a Mohn und Gedächtnis (Papoila e Memória), porquanto introduz a reflexão sobre os lugares da imagem em tempos de perseverança da barbárie ao destacar a importância da recordação na expressão subjetiva. A aceleração do trágico, sentimento próprio do prelúdio do apocalipse, incita à vivência do instante de acordo com os fragmentos deixados à lembrança do caráter profundamente contingente do humano. As épocas de desastre foram-se sucedendo após o rapto de Europa sem que a palavra poética, nuvem velando a labareda divina da imagem, tivesse deixado de ostentar a promessa ambígua de questionar o sofrimento e de o exprimir na sua negatividade sagrada e absurda. Lemos no primeiro poema da série:


Diz-me qual o sentido destas imagens

confusas, não determinadas pelas regras

da responsabilidade, nem sujeitas


às leis da lógica e da razão?

A presença de uma segunda realidade

tantas vezes pressentida. (p. 88)


A resposta à interrogação sobre a substância da segunda realidade das imagens poéticas fora dada por Paul Celan em O Meridiano quando as descreve como "aquilo que foi apercebido, que tem de ser apercebido, uma única vez, de todas as vezes, como coisa única e só agora e só aqui. E assim o poema seria o lugar onde todos os tropos e metáforas querem ser levados ad absurdum"6. Para Celan, a poesia é apesar de tudo possível após a loucura do Holocausto, na convicção de que ela mantém a resistência daquilo que perturba a marcha catastrófica do tempo e retém a perceção da memória das imagens num instante único e absoluto, no qual é possível suportar a habitação de um mundo sitiado. Não constituindo lamento e consolação, ela detém a parte devida de ambas e emerge no intervalo do seu dizer como o instante que desvela a loucura da linguagem verdadeira, a que reside na mudança entre agregação e desagregação. Em Inventário e Despedida (1991), obra onde Paulo Teixeira prossegue referências anteriores ao poeta de A Rosa de Ninguém, lemos no poema "Esfera", de que apenas reproduzimos a primeira estrofe, uma representação possível do lugar do ser no trânsito dialético descrito:


Como quem confundido percorre a esfera

Da terra só em busca de lugar seguro. 

Escreve para uma linhagem futura o que lhe resta 

Do nome, esse nada que é a música da língua

Rompendo entre a noite esmaltada dos seus dentes. 

(TEIXEIRA, 1991, p. 22)


Em A Comoção do Mundo, o poema "Estado de Sítio", de que também transcreveremos a primeira sequência estrófica das três apresentadas, ele reencontra-se no poeta, perscrutador solitário dos instantes em que as imagens se desvelam na segunda realidade, entre as tribulações de uma terra subjugada pelo prazer do ruído (como o caracterizava Agustina Bessa-Luís a propósito da loquacidade como parte da "natureza pérfida da cultura")7 e o temor da ruína: 


Deixa que a tua presença seja um espelho

e o tempo te envolva e acompanhe

o movimento e os gestos. 


Expõe o fantasma, o espírito da espécie, 

na imagem de frente e de lado, estranho 

entre estranhos, sem cúmplices, murado


na multidão. Deixa que o teu rosto irradie, 

emita partículas de luz para os antípodas, 

enquanto destilas o ser em palavras, 


o ser diferente entre as regras

que regem o clã, a chefia do hábito

e do tabu. Busca a pequena malha aberta


no arame farpado, o buraco da bala

para respirar incrustado no fundo do ouvido, 

mudo entre os fantasmas da fala. (p. 91)


Lido no final de 2020, o poema "O último ano" (p.101-102), escrito em dezembro de 2019, dramatiza ominosamente um agora dominado pela inquietude pandémica e pelo excesso mediático que assola com ainda maiores incertezas os atores de uma cultura já de si inquieta pelo fantasma radicular do seu próprio declínio. Se de Europa e do seu rapto apenas resistem os seus descendentes trágicos "sem certezas ou verdade redentora" (p. 102), à poesia importa prosseguir aquilo que Luís Miguel Nava privilegiava na obra de Paulo Teixeira como "o caráter espiritual do depois"8, apontado na meditação profunda sobre o presente e o passado. Eduardo Lourenço, recentemente desaparecido, observava que "só a palavra poética é libertação do mundo". De facto, o instante da sua pronúncia tende a libertar-nos para a busca infinita das esferas do tempo e das constelações; e é então que "de repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito"9.



Notas


1Cf. LUCRÉCIO, 2015, VI, vrs. 1093-1102, p. 397.

2Cf. LOURENÇO, 1987, p. 40.

3Cf. BENJAMIN, 2019, N 2a, 3, p. 591

4Cf. “Novas Notas sobre Edgar Poe”, BAUDELAIRE, 2006, p. 101. 

5Cf. BENJAMIN, 2019, p. 111; 122. 

6CELAN, 1996. p. 59. 

7Cf. “Uma linha imaginária”, in BESSA-LUÍS, 2000, p. 61. 

8Cf. NAVA, 2004, p. 322. 

9Op. cit., p. 40.




Referências


BAUDELAIRE, Charles. A Invenção da Modernidade, trad. Pedro Tamen. Lisboa: Relógio D'Água, 2006.

BENJAMIN, Walter. O Livro das Passagens, trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2019.

BESSA-LUÍS, Agustina. Contemplação Carinhosa da Angústia, 2.ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.

CELAN, Paul. Arte Poética, trad. João Barrento e Vanessa Milheiro. Lisboa: Cotovia, 1996. 

LOURENÇO, Eduardo. Tempo e Poesia. Lisboa: Relógio D'Água, 1987.

LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas, trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira. Lisboa: Relógio D'Água, 2015.

NAVA, Luís Miguel. Ensaios Reunidos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

TEIXEIRA, Paulo. Inventário e Despedida. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.



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dezembro, 2020



Francisco Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Portuguesas, variante de Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mestre em Criações Literárias Contemporâneas, na especialidade de teoria da criação literária, pela Universidade de Évora. É colaborador do CEL (Universidade de Évora) e membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta português Daniel Faria. Além de trabalhos de edição, tem publicado ensaios e recensões em livros e revistas nacionais e internacionais e apresentado comunicações em colóquios. É o autor de A Multiplicação do Espaço — Ensaios sobre a Poesia de Daniel Faria (Teórica Edições, 2020). Os seus domínios de investigação têm-se centrado na poesia portuguesa moderna e contemporânea, na teoria literária e no diálogo interartes.