Já no início de Poesiar, livro de poemas de Marcos Hidemi, o leitor se depara com esses versos/divisa de sua poesia:
Meu ócio é produtivo
Meu ódio é inventivo
E nas lacunas e nas rupturas
Eu revoluciono permanentemente (...)
Nem o redivivo óbvio
Pode com minha poesia inconsequente
("Poética")
Tais versos, em seu poder de síntese, dizem muito, incluindo a forma com que dizem: o poema revela ao leitor uma natureza impetuosa, adversa à pose hipócrita ("Abaixo-os-poetas-hippies-de-butique-de-shopping-center") e profundamente amarga; no plano da expressão, Hidemi evoca com propriedade a melodia das palavras, e se mostra herdeiro de Drummond ("Meu ódio é o melhor de mim/"com ele me salvo" — "A Flor e a Náusea") e do Bandeira de "Poética", que também queria imprimir em seus versos "a marca suja da vida".
Não está aí tudo, porém. Basta ao leitor, para ter uma ideia, ir direto à última página do livro, após ultrapassar esse limiar, e depois contrapor àquela com este para perceber que está diante de um poeta de recursos.
Estrutura da obra
Ao percorrer as páginas da obra, o leitor atento perceberá uma divisão consistente, embora não haja um indicativo de seções entre os poemas para avisá-lo. Há quatro grandes núcleos identificáveis, sendo que dentro deles há variações de tratamento dos temas: a visão desiludida da vida, o fazer poético, a lírica erótico-amorosa e a expressão gráfica da palavra. Nessa ordem eles se apresentam e se sucedem.
Na primeira seção, encontra-se um eu destroçado pela vida. O poeta que, convicto de seu ceticismo, vai em direção, com uma ânsia algo desmedida, ao abjeto e à "marca suja da vida":
Pelo ralo escorrem nossas excrescências
Muco de nariz escarro esperma
Vômito sangue menstrual
Restos de fezes partículas de comida
Nossos cabelos nossos pentelhos
Toda essa massa lodosa que desaparece sob a terra
Engolida pela boca voraz do ralo
Mas e nossa consciência?
Acumulamos dentro de nós ignóbeis pensamentos?
Em que ralo jogamos nossas sujidades mentais?
Em que esgotos podemos despejar nossa porca mente?
("Pelo Ralo")
O homem (em especial o urbano) está destinado a (sobre)viver num ambiente hostil, cinzento, numa realidade localmente desoladora:
Segunda: cansaço
Terça: moído
Quarta: bagaço
Quinta: ruína
Sexta: desgraça
Sábado/domingo: bebida
("Rotina")
Em que a irmandade entre os indivíduos não atenua nada, visto que é algo inexistente:
O que é isso
O que é isso, companheiro
Pense em nosso país do futuro
De que adianta apontar um canivete pra mim
No sinal vermelho
Se isso não o leva a lugar nenhum.
O que é isso
O que é isso, maconheiro
Pivete, filho da puta
(Já não consigo enxergar direito...)
Escorrendo, escorrendo,
Pelo espelho do carro, viscoso e vermelho?
("O que é isso, companheiro?")
A crença de que a desolação é local pode ser confortadora, mas é ilusória: no entorno destes trópicos, o mundo está em caos:
Nossos corpos inchados saciam-se nos fast-foods
Dos insossos shoppings,
Enquanto bocejamos diante do noticiário comentando as
[atrocidades pelo mundo,
Entre uma mordida e outra num sanduíche
Que sabe a nada: — retrato de nossa interioridade (...)
("Faixa de gaza")
Em face da inevitabilidade do colapso da civilização, resta ao poeta expressar a vitalidade de seu íntimo, embora estilhaçado:
Neste quarto sem dimensão nem memória,
Tento me recompor — eu chuva dispersa,
Entretanto sou apenas fragmento líquido
De um velho quadro estilhaçado pelo tempo (...)
("Fragmentos")
E olhar ao redor, descontruindo os instantes de trégua/alegria dos homens ("Poema de natal"), apontando a hipocrisia reinante na postura do coletivo, mas também na conjunção irônica que a vida empreende entre um acontecimento extraordinário e divino (o nascimento de Cristo, cristalizado em presépios natalinos) e o abandono de um recém-nascido no lixo ("Presépio"): ao invés dos brancos carneiros, ratos e baratas; ao invés dos três reis magos e os pais, mendigos; no lugar da atenção coletiva, o silêncio frio da noite.
Essa síntese da existência, onde o apelo drummondiano pelo presente surge como consequência ("Eu existo a partir de agora/Nada mais importa"), é o que em suma modula versos amargos como estes:
Sentado diante de um deserto,
O lagarto ao sol
Não acredita mais na vida
("Lagarto ao sol")
Na seção subsequente, a preocupação com o fazer poético ganha vez. O fenômeno poético, em sua origem, revela-se um mistério. Abundam mais questionamentos que respostas ("Genética da poesia"), mas vislumbra-se no ato de criar, uma necessidade tão premente quanto a de se alimentar, e mais: um desejo de perenizar-se ante à perspectiva do "pó":
Poesio-me
E poemo-te
Da poesia
Eu me nutro
Para ao pó
Não retornar (...)
("Poesiar")
Nos insights e intuições em torno dessa esfinge de melodia e sentidos, o poeta saúda as concepções existentes, como quando flerta com o João Cabral de "O engenheiro":
A caneta, o papel, o pensamento
Alicerçam o prédio do poema (...)
("Alicerce poético")
Apesar de tanto alumbramento, o poeta não se prostra diante da poesia como um ídolo; sua recusa em idealizar se traduz em versos, tangenciando novamente Cabral, mas agora o da "Antiode":
A paisagem estéril
Vomita caracteres,
Na nudez do deserto
Vicejam feios cactos (...)
("Caos")
A seção seguinte não deixa de soar um tanto paradoxal quando a ela se contrapõe os poemas niilistas da primeira: é que o leitor, já tendo passado pela lassidão de viver ali presente, de "desaniversários", "corpo mumificado" e mesmo "sexo murcho", de súbito se vê diante de versos lírico-amorosos, de alta pulsão erótica, versos dedicados e compostos à Márcia, amada do poeta.
Toda a lassidão citada se desvanece em versos como estes:
Despetamarela
Floressol
Sou abelha
No mel
Do seu
Cio (...)
("Girassóis")
Está-se diante de uma volúpia de sensações e desejos, que mais sedentos se apresentam quanto mais saciados são. É um contínuo "renovo" de pulsões que envolvem o poeta:
Lua nova
Vem, renova
Fica noiva,
Fica nua.
Lua cheia
Incendeia
Minha noite
Com a tua
É interessante notar que, considerando os eixos temáticos desta e da seção anterior, encontra-se uma "intersecção" entre elas (lembrando que apenas ambas revigoram a alma do poeta":
Há quanto tempo não se via
A maravilha, a graça e a simplicidade
Da poesia, despida assim, só palavras,
Prestes a um orgasmo lírico (...)
("A poesia nua")
Por fim, na derradeira seção, alguns temas das demais retornam, mas o foco está na expressão poética utilizando o espaço da folha e o próprio aspecto das palavras para conceber o fenômeno poético.
Entre o cubismo e o concretismo, o autor revela mais uma faceta estética a se somar às anteriores, o que engloba seu cortejo ao verso-livre, à poesia de formas estabelecidas (soneto, haikai etc.), tudo isso conjugando da rima e frequentes aliterações ao mais puro prosaísmo. O registro mais elevado ao mais chulo.
Poesiar é, pois, a confluência de todas as formas expressivas de Marcos Hidemi, o que, dada sua variedade e qualidade, justifica sua leitura.
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O livro: Marcos Hidemi. Poesiar.
Curitiba: Medusa, 2017, 112 págs., 35,00
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julho, 2020
Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.
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