A crônica costuma ser um leve registro da época na qual foi criada, revelando ao mesmo tempo o que é comum nos homens e no mundo em que vivem, mas também o que se caracteriza por ser sua exceção, que é justamente o artista e seu olhar impresso na obra.

A crônica é tida como leve registro se comparada às outras formas do fazer literário, porque seu escopo é mais restrito e seus recursos estéticos deliberadamente mais limitados. Parte disso é observável no novo livro do escritor e jornalista Alexandre Coslei, Subversões (edição do autor), mas sua rebeldia artística se impõe, não raras vezes nas crônicas, e com maior evidência na estrutura central da obra, que une criações ora tendentes à crônica, ora ao conto.

"Este livro transgênero", apressa-se a nos alertar o autor em sua apresentação, foi "montado com a pretensão de romper preconceitos, proporcionar prazer, chamar a atenção e fazer pensar". Destaque-se primeiramente o "transgênero": o autor frisa assim que não pretende se subordinar a gêneros literários em termos de conjunto da obra. Caminho perigoso, ainda que em plena pós-modernidade. É bem difícil — sempre na visão de conjunto — unir registros que, por sua natureza, possuem escopos diversos, atingindo profundidades distintas. Para ilustrar com a própria obra, o conto "A sombra do imperador", interessante e ousada narrativa dos entreatos do Brasil monarquista ao republicano, é posto não muito distante do brevíssimo "Obsceno preconceito", ou do igualmente leve "Ilha", leve crônica saudosista sobre uma cafeteria /refúgio no Centro do Rio. São registros que possuem igualmente um mesmo tema transversal (os costumes e o próprio espaço geográfico do Rio de Janeiro), mas um diferente nível qualitativo, consequência mesmo das singularidades dos gêneros.

A questão fica ainda mais complexa ao acrescentar, nessa equação, as variantes "romper preconceitos, proporcionar prazer, chamar a atenção e fazer pensar", elementos esses já citados acima. Certamente algumas dessas variantes não se excluem mutuamente, quando postas lado a lado, mas é bastante raro uni-las em uma substância compacta e homogênea. Mas isso, percebe-se, pouco importa ao autor, não sendo alguém que retrocede o passo ainda que diante de um precipício.

Aliás, o leitor, ao percorrer as páginas de Subversões, encontrará um convicto romântico, alguém que não raro se entrega a sentimentos e sensações, como a nostalgia e mesmo um singular idealismo, que costumam afugentar certa casta de nossos intelectuais e progressistas.

Artista boêmio, frequentador dos bas-fonds cariocas de outrora e agora, Coslei, em suas crônicas e contos, muito documenta da decadente zona de meretrício Vila Mimosa, a mais abrangente região da Tijuca. Nessas breves pinturas, a prostituição, a infância, os redutos urbanos como cafeterias etc., são vistos num prisma de cores próprias, personalíssimas:


"Que força milagrosa carrega a natureza. Cultivava flores em desertos e sobre brisas poéticas na penumbra árida dos porões humanos. Consegue inspirar uma prostituta a abdicar da grana, apenas para assistir os primeiros raios do dia ao lado de um homem qualquer. Então, com um beijo delicado, a alvorada banhou-se no mar".


Em alguns momentos, curiosamente, a visão analítica trata com lucidez o tema bebericando ao mesmo tempo, e com prazer, o vinho do romantismo:


"Prostitutas são fêmeas pragmáticas, revelando a inata natureza material e maternal que perdoa e abraça o pecador. Assumem um papel social temeroso, que pacifica a carência e redime as mentiras românticas de machos obcecados por um objeto de luxúria que também lhes console a vaidade abatida".


E assim prossegue o autor, palmilhando com ousadia temas como o acima citado, o ambiente e refúgio urbanos, a hipocrisia da sociedade, a injustiça da lei, a decadência da moral burguesa, as reviravoltas do poder (tanto outrora — "A sombra do imperador" — como contemporaneamente — "Caim e o homem cordial"), o fazer artístico, a infância, entre outros temas.

No que diz respeito ao estilo, Coslei adota sempre uma abordagem direta (seja pelo que dita a crônica, seja por inclinação própria), entremeada por momentos de apuro nas pinturas, tanto externas quanto internas, que empreende: 


"Os anos são degraus que fazem da existência uma escada, às vezes cansamos da subida ou saltamos eufóricos querendo apressar a chegada ao cume. Quando o topo está perto, o temor do fim traz a vontade de retroceder aos andares mais baixos. O homem é uma inexorável e banal contradição: vem à luz de forma lenta e dolorosa, o parto; retorna ao mistério de súbito e desavisado, a morte. Duas pontas soltas da mesma linha, duas pontas avessas ao laço: isso é o homem".


Talvez, por isso, não seja casual que seus contos estejam degraus acima de suas crônicas, estas tão íntimas e eivadas de obsessões suas que não é incomum encontrar mesmo imagens recorrentes nelas, como o torpor (relembrado nostalgicamente) do então menino em sala de aula ou na rua, a observar trabalhadores, trabalhando ou descansando, na loja da Brahma, adjacente à escola e ao DOI-CODI, em cujos subterrâneos gritos de dor se perdem no caos sonoro urbano, sequer pressentidos pelos operários e os cidadãos. Talvez dessa imagem, dessa lembrança guardada e de seu simbolismo venha seu desconforto (militante de esquerda que é) com a atual sanha por luta engajada de certos grupos ou indivíduos, restrita às redes sociais ou canais semelhantes. A indiferença parece ser incômodo demasiado, bem como o anonimato, daí seu investimento em crônicas de forte teor social e engajadas documentando o espírito do tempo:


"Hoje, falta ideologia, não a ideologia de partidos, de políticos, de rótulos e palavras de ordem. Faltam os ideais que nos aproximam do outro".


"Entramos num século de discursos atrelados à assinatura individualista de rostos e expressões faciais, onde a palavra perdeu o sentido de intérprete dos nossos ecos mais viscerais para se servir ao exoesqueleto do audiovisual. É o pensamento imóvel, a militância inerte, acorrentados aos microcosmos das Redes Sociais, num looping incessante de denúncias e indignações, hipnotizados pelas conspirações palacianas".


E tais escritos se indignam com os rumos políticos do país ("Dilma", "A origem do mal"). Seu impulso feroz hiperbólico não retrocede frente à polêmica, antes ostenta com orgulho sua visão, que não hesita, por exemplo, em comparar o ex-presidente Lula ao genial Machado de Assis (segundo uma lente singular).

Enfim, polêmico e romântico, indignado e nostálgico, eis o autor desnudando-se ante o leitor, afrontando-o ou com ele se cumpliciando num estado de coisas atual muito distante do consenso. É a paixão sincera que recomenda a leitura de Subversões não para com ela buscar o consenso confortável, mas a inquietação que instiga a reflexão.



_________________________________________

O livro: Alexandre Coslei. Subversões.
Edição do autor, 2019, 176 págs., R$ 33,80
Clique aqui para comprar.

_________________________________________



dezembro, 2020




Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

Mais Clayton de Souza na Germina

> Contos

> Na Berlinda (Poemas)