A publicação de A episteme do efêmero, neste ano de 2020, marca um verdadeiro acontecimento na nossa poesia contemporânea. De autoria de Ricardo Leão, a coletânea demonstra a consolidação de sua poética que, ao mesmo tempo, sendo singular, está imersa no espírito do tempo, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Com efeito, A episteme do efêmero insere-se no movimento de restauração do verso metrificado que rodeia a poesia atualmente, um movimento com vigor suficiente para não passar despercebido pela crítica minimamente atenta. A mais recente obra de Ricardo Leão é um exemplar do mais alto quilate do processo que ora observamos.

Trata-se de um livro pesado, denso, complexo, que carrega em seus ombros o volume do nosso tempo, que reflete a realidade historicamente posta no Brasil contemporâneo e, por isso, nos oferta o "permanente assombro", como está dito no poema que abre a coletânea, intitulado "Canção de ninar" (LEÃO, 2020, p. 17). Esse permanente assombro está à disposição do leitor a cada verso, a cada poema, a cada página. O leitor é levado a se confrontar com o peso e a densidade da arte que lhe é ofertada em A episteme do efêmero, seguramente fechando o livro com a experiência catártica possibilitada por ele.

Nesse sentido, antes de tudo, é preciso ler A episteme do efêmero de acordo com a restauração das formas clássicas da poesia, sem passadismo, senão, com novos conteúdos. Com efeito, não é uma recuperação estéril dessas formas, mas uma releitura e atualização delas. Os ciclos de sonetos são de importância crucial para compreender a realização estética de A episteme do efêmero, como "Sonetos a Eros", um conjunto longo e fortemente evocativo de dez sonetos. Há muitos outros belos sonetos pela coletânea afora: "Sonetos do absurdo", "Sonetos sobre o insólito", "Opúsculo de sonetos", "Sonetilhos do caos" e "A roda da fortuna".

A propósito do lugar da forma na poesia contemporânea, Leão (2020, p. 77) escreve em "O iluminado" uma profissão de fé na linhagem estética que reafirma a pertinência da métrica:



Ouvi falar esses dias

Que o bom mesmo é escrever poesia em prosa

Que os sonetos e rimas estão velhos e fora de moda



São poucos poemas em versos livres. Não espere o leitor encontrá-los à exaustão pelo livro, o que confirma a correta impressão de que o livro está inserido neste movimento de restauração fecunda das métricas.

Ainda sobre a forma dos poemas: o livro é capaz de um poema de larguíssimo fôlego como "A litania dos mortos" e, logo depois, um dístico rápido e eficiente como "Sobre a finitude", um poema necessariamente curto porque é justamente esse o seu objeto, a precisa finitude das coisas. E, adiante, chega-nos uma autêntica épica como a "Anorexia", ampla e cheia de sugestões.

Percebam atentamente um soneto intitulado "Exame pré-natal" feito em redondilhas menores, com rimas toantes:



A boca amputada

Do último silêncio

Convida-me ao nada

Que esgoto aos centos.


Quase madrugada,

O corpo ao relento.

O sexo é a palavra

Que ouço ao vento.


Na túrgida arcada

Do verso concêntrico

O eterno desaba.


E tudo que lembro

É a ausência esquálida

E grávida do efêmero 

(LEÃO, 2020, p. 27).



Há uma especial predileção do poeta pelos versos curtos, com os quais o domínio da palavra é mais concreto. Pode-se controlar os efeitos pretendidos com as palavras em versos mais curtos. Leiam o soneto "Outro Narciso", feito em versos de três sílabas apenas, com habilidade exemplar, magnificamente produzido, exibindo a olhos nus a destreza com que Leão maneja a arte da versificação. De uma concisão bastante precisa.

As rimas são preferencialmente toantes, canonizadas por João Cabral na poesia brasileira. Quanto a isso, há que se fazer uma menção honrosa a "A litania do alienista", face à sua capacidade de organizar os versos em torno de tal espécie de rimas, extremamente rico em insinuações sonoras, de uma musicalidade bastante expressiva. Uma menção de mesmo tipo pode igualmente se direcionar ao poema "Diálogos platônicos".

Para além da forma, existe em A episteme do efêmero um conteúdo histórico bem determinado, situado em seu tempo e lugar; o tempo é o período contemporâneo e o lugar, o Brasil. Isto é, há uma concepção filosófica que subjaz a poesia do livro: a concepção de arte vinculada às relações históricas, com raízes rigorosamente fincadas em seu tempo. Temos ali a arte como crítica de seu tempo e descoberta das contradições que movem o seu tempo, maculando-se no chão das lutas, sem pretensamente se proteger dos conflitos postos numa torre de marfim imaginária.

Poderíamos listar alguns dos poemas exemplares do que falamos acima. "O saque", "Os aprendizes de Goebbels", "Segundo turno" e vários outros estão arraigados na realidade contemporânea, reproduzem as relações históricas circunscritas ao período atual que experimentamos no Brasil, e somente podem ser compreendidos em sua autenticidade se nos remetemos à realidade sobre a qual se debruçam.

Entre estes, há ainda o vigoroso "Auschwitz", que nos faz lembrar um grito de ordem entoado pelas ruas:



Com leões, temos que ser tigres.

Não há paz entre carrascos.

Flores não vencem os rifles

E tampouco o holocausto

(LEÃO, 2020, p. 41).



Soma-se a ele "A nação do exílio", um poema que atualiza a "Canção do exílio" de Gonçalves Dias, expondo as contradições da atualidade brasileira.



Minha terra tem bárbaros

Que são muito violentos.

À noite, o céu estrelado,

Tenho medo se os vemos.


[...]


Minha terra tem barcos

Que andam a barlavento.

Quem sabe, um dia, parto

Ao país além do tempo 

(LEÃO, 2020, p. 257).



Como um exemplo nada sutil de crítica à nossa realidade, temos "À espera do furo", feito em dísticos, que fala do centralismo que a imagem e a informação adquiriram no nosso tempo presente. O poema se posiciona de forma crítica diante desta realidade. Termina dizendo: "Os jornalistas decidirão nosso futuro". 

É interessante perceber, no entanto, que a poesia de Leão nos sugere uma saída para os conflitos que descreve. Essa saída é verificável em um determinado poema, chamado "Caminho de Cuba". Quer dizer, a resposta para as contradições demonstradas por esses poemas acima está em "Caminho de Cuba":



Vamos todos para Cuba

Enquanto ainda é tempo!


Pois a vida é muito curta

E termina em dezembro!

(LEÃO, 2020, p. 91)



É contraponto para os poemas que descortinam os conflitos da história do Brasil contemporâneo. "Caminho de Cuba" faz com que o niilismo seja descartado como opção face à tonalidade mais pesada da coletânea.

Uma das características marcantes de A episteme do efêmero é sua tonalidade pesada, carregada, sem ser obscura. Percebam que atua nessa direção o tema recorrente da morte; a constante referência à morte faz com que tenha um ambiente denso no livro, típico de uma obra que reflete com imensa beleza o nosso tempo, e acreditamos que não poderia ser de outra forma. Há um poema chamado "O fim dos tempos", tão pesado quanto a época. Outro é o soneto "Rei momo", bastante triste, pessimista até, e belamente escrito.

Sobre os tempos pesados, está escrito num poema "O amor nos tempos da cólera":



Há tempos não bebo

O leite fraterno

Da ternura humana

(LEÃO, 2020, p. 203).



Ainda sobre os tempos pesados que vivemos, o primeiro verso do primeiro soneto de "A roda da fortuna" (LEÃO, 2020, p. 239): "Amanhã ou ontem, o mundo é nulo". E o último verso do mesmo soneto: "E, ao fim, a poesia é apenas uma farsa". Um verso do terceiro soneto deste ciclo é: "O tempo é só uma morte didática".

Como último exemplo dos tempos tristes que experimentamos, a primeira quadra de "Convescote noturno":



Conclui a tua morte,

Entre ontem e hoje,

E guia o teu Dodge

Rumo ao açougue 

(LEÃO, 2020, p. 251).



Novamente, como sinal dos tempos, em "A lista de Schindler", temos a última quadra que projeta um futuro pessimista:



E amanhã, quem sabe,

Entre os corpos trêmulos,

Ao fim do Éden sem Hades,

O amor é um signo a menos

(LEÃO, 2020, p. 285).



É preciso ler versos como estes de "Litania dos túmulos":



Os mortos são densos

E, às vezes, cheirosos,

Quando, noite adentro,

Acordam, insólitos 

(LEÃO, 2020, p. 104).



No entanto, para contrabalancear o peso da coletânea, há poemas mais solares escritos por Leão, como se fosse uma fresta através da qual alguns raios da manhã surgem no interior de um galpão escuro. Leiam "Home, sweet home", interessante precisamente porque quebra o peso da coletânea:



Adoro quando tudo está tranquilo.

De ficar em casa, ouvindo o silêncio.


De escutar o som do mundo efêmero.

Ou então o belo sono de meus filhos

(LEÃO, 2020, p. 104).



Na mesma toada de "Home, sweet home" estão "Fotografia" e "A gaia ciência", que cerram fileiras com a sequência de poemas mais solares que os demais.

Também como exceção ao peso dos poemas, há a leveza do "Tributo", que termina com a quadra:



Um dia, sob as palmeiras,

Ao sabor do doce ócio,

A vida, talvez, seja

Só amor. Jamais ódio 

(LEÃO, 2020, p. 262).



Ou, ainda, em "Natura":



Canto hoje e amanhã

A poesia mais completa.

O sabor das maçãs,

A alegria sem cancelas

(LEÃO, 2020, p. 287).



Enfim, o que nos resta é a certeza de que é necessário desfrutar de todas as possibilidades contidas em A episteme do efêmero. São inúmeras, das mais variadas. Há um amplo horizonte, com sendas abertas pela mais recente coletânea de poemas de Ricardo Leão. Com ela, o poeta configura-se num realizador da poética nacional contemporânea dos mais destacados, um dos mais relevantes das gerações atuais da poesia brasileira. Esta curta resenha de A episteme do efêmero não esgota as possibilidades contidas na obra, mas tão somente chama a devida atenção para a sua riqueza, demonstrando o quanto a presente coletânea de poemas de Leão deve ser lida e estudada como resultado daquilo que há de mais intenso entre as produções da poesia brasileira atual.



__________________

O livro: Ricardo Leão. A episteme do efêmero.
São Paulo: Patuá, 2020, 70 págs., R$ 45,00
Clique aqui para comprar.
__________________



julho, 2020



Ranieri Carli, professor da Universidade Federal Fluminense, autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura; é também poeta e publicou Toda Estupidez, em 2019. Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, no prelo.