William Shakespeare escreveu, na peça Henrique IV, que "a grandeza sabe se reconhecer". De nossa parte, diremos que a "desgrandeza" — se ainda não se reconheceu — poderá ser reconhecida no mais novo romance de Celso Kallarrari, cujo título é — adivinhem — Desgrandeza.

Publicada pela editora Mondrongo no final do ano passado, a obra venceu o Prêmio José de Alencar, em 2017, da União Brasileira de Escritores (UBE/RJ). Li-a, reli e minhas impressões seguem abaixo. 

O enredo trata do amor (e desamor) que junta (e separa) os protagonistas Teófilo e Bárbara, os quais se relacionam desde a infância, já que são primos, mas essa relação vai se transformar numa paixão arrebatadora, de modo que o casal viverá momentos eufóricos e desesperados, porque, ainda que não queira, terá que se separar. Teófilo, tocado pela vocação, trocará a fazenda Capeí pelo mosteiro dominicano, para ser frade e, depois, padre. Já Bárbara sentirá os efeitos da distância e se casará com Adalberto, mesmo prevendo as consequências dessa decisão. Porque esse amor, pro bem e pro mal, estava escrito nas estrelas.

Para fazer jus à desgrandeza — neologismo muito bem escolhido pelo autor, com as variantes "desgrande", "desgrandecido" e "desgrandecer" —, a história narrada na 1ª pessoa por Teófilo promete muitas emoções, reviravoltas, revelações e até — pasmem — uma cena final digna de filme de terror.

O pano de fundo da trama são os anos 60 em que, aproveitando-se da instabilidade política, os militares dão um golpe de estado e estabelecem um regime ditatorial no Brasil. Esse novo estado de exceção vai impactar duramente a vida dos protagonistas e, por conseguinte, as decisões que terão que tomar.

No auge da perseguição imposta pelos militares, Teófilo ("amigo de Deus" em grego) e Bárbara ("a estrangeira", em grego) se reencontram na Cidade Maravilhosa. A paixão, mal resolvida da infância, volta à tona com muita força e os dois se veem envolvidos sentimental, política e teologicamente.

Embora "escolhido" por Deus, Teófilo abdica do celibato, para viver o amor proibido de sua vida. Bárbara, cumprindo a sina etimológica, se entrega completamente, mas, não achando reciprocidade amorosa, envolve-se na luta armada numa atitude temerária e fatal. Revoltado com a perda do "amor da sua vida", condoído pela incompreensão da fé e intimidado pela nova ordem político-social, o frade renuncia à consagração sacerdotal e mergulha no movimento revolucionário.

Deixando o experimentalismo de lado, Celso Kallarrari nos surpreende nesse 2º romance ao exibir não só maturidade narrativa, mas também capricho na elaboração dos personagens secundários (planos) e protagonistas (redondos), que nos atraem e conquistam com suas desgrandezas. A condição humana deles é explicitada para os leitores, com realismo forte e impactante, à medida que a narrativa se desenvolve. E nos envolve.

Notamos também que a elaboração da história demandou muita pesquisa histórica, com o levantamento de dados, recriação de situações e tipificação de personagens (reais ou fictícios) nos contextos históricos e até discursivos envolvidos na repressão militar. Isso se estende também às averiguações dedicadas ao catolicismo, no tocante ao tema do celibato institucional (Concílios de Latrão e, depois, de Trento), imposto pelo catolicismo no século XII e contra o qual Teófilo se posiciona de maneira apaixonada e crítica. Para ele, o sacerdócio não repele o amor. Muito pelo contrário. (Aliás, o autor, CK, é padre ortodoxo casado e pai de uma linda menina. O personagem falará por ele, autor, à maneira da velha questão de que a "arte imita a vida"? Tratar-se-á de uma prestação de contas?)

O narrador-protagonista, que segue exilado no Convento Sainte Marie de La Tourette, nas imediações de Paris, vitimado por um câncer agressivo, já em metástase, vai publicando num blog, por partes, suas memórias romanceadas. Os textos são compartilhados nas redes sociais com a promessa de que, depois, serão reunidos em livro físico.

Teófilo se apossa do presente para passar em revista o passado, mas sem demonstrar apego ao futuro, que não lhe pertence nem pertencerá. Elege os internautas como confidentes on-line ao mesmo tempo em que destrata os homens-brutos, os homens-pedras, enfim, os homens desgrandecidos.

O protagonista não esconde que é movido pelo desejo de vingança e que procura, portanto, um bode expiatório — que pode ser as instituições, os homens-cães ou a própria Igreja Católica — como forma de canalizar (catarse) os horrores que viu, vivenciou e suportou, dos quais não consegue se libertar.

Para dar conta da longa narrativa confessional, o autor abusa do recurso do flash back, na forma de idas e vindas ao passado dos protagonistas, o que pode soar repetitivo ou, mesmo, revelar pressa no arremate da fabulação. 

A cena final – em que Teófilo, para se vingar da mãe de Bárbara, tia Zenaide, a estrangula com as próprias mãos, isso após ter envenenado o marido dela, tio Alfredo — carrega em si uma dramaticidade perturbadora e que, portanto, fala por si...

(A essa altura dos acontecimentos os leitores já sabem — eis meu último spoiler — que Bárbara é irmã de Teófilo e não prima, filha que é de Zenaide com o pai do protagonista, Arlindo, e que o final trágico do casal Alfredo/Zenaide mais que merecido é, religiosamente, justificável. Enfim uma trindade de mulheres fortes — Ana, Zenaide e Bárbara versus uma trinca de homens fracos — Arlindo, Alfredo e Teófilo.)

Mas a cena não para por aí, segue com o protagonista dando vazão à vingança barbárica, infame e paradoxal. Após estrangular a tia com as próprias mãos, agora, de posse duma machadinha, decepa o cadáver dela em vários pedaços, mirando primeiro a cabeça. Insatisfeito, embala os pedaços em sacos plásticos transparentes e os coloca no freezer junto com os peixes congelados...

Alguns dias depois, tendo a lua baça e desmistificada como testemunha, Teófilo não resiste ao desejo degenerado e desgrandecido de... comer carne humana. E o faz, como fizera ao devorar a carne de Bassan, cavalo de estimação da família, na esperança de homenagear Bárbara, amor de sua vida, saboreando a carne da parturiente dela! Uma carne doce e sem culpa!

Haverá maior demonstração de desgrandeza entre o Paraíso e a Garganta do Diabo? Menor prova de verossimilhança entre fala e fábula? Com a palavra, a Pomba Branca!



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O livro: Celso Kallarrari. Desgrandeza.
Itabuna: Mondrongo, 2019, 267 págs., R$ 35,00
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dezembro, 2020



Almir Zarfeg — ou simplesmente A. Zarfeg — é um poeta e jornalista baiano. Atualmente, preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Ele é autor de livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Participa de inúmeras instituições literárias dentro e fora do país. Iniciou-se na literatura em 1991 com o livro de poemas Água Preta, atualmente na 4ª edição. Nos 25 anos de sua trajetória literária, celebrados em 2016, ganhou a biografia De A a Z e seu nome virou verbete no Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia e na Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos. Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. Assim Zarfeg se define no poema "Origem": "Não tenho dívidas,/ tenho divisa:/nunca ser rei,/mas rio".


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