Após ler/reler essas Águas Selvagens, quem vai pôr em dúvida o fato de que Wilmar Silva (hoje, Djami Sezostre) bebeu nos poetas concretos e estes, por sua vez, abasteceram suas baterias em Ezra Pound e em outras tantas modernidades, inclusive locais, como Oswald de Andrade? 

Não duvidemos, portanto, que os concretos levaram a sério o lema poundiano do make it new. Quanto ao jovem poeta mineiro, ainda que instintivamente, fez o dever de casa ao transformar simbólico em icônico no seu primeiro livro solo de poemas. 

Óbvio que, nas obras posteriores, o icônico, imagético e visual iriam dar o ar da sua graça de maneira veemente, mas, já nas Águas Selvagens, isso se apresenta mais que mera promessa estética, senão como recurso estilístico usado com propriedade. Sem detrimento da originalidade e imaginação wilmarianas. 

Os 30 poemas que compõem Águas Selvagens — entre os quais destaco "Cantiga", "Os Bichos", "Zoológico", "Os Meninos", "Gênese", "Paradoxo", "Carbono", "Poema do Eu", "Canavial" e "Águas Selvagens" — constituem achados linguísticos (verbivocovisuais) que o poeta elabora inspirado no passado distante e afetivo, em que rio e campo se encontram, em que lembranças e (des)encontros se fundem, ser e parecer moldam as mentalidades e, também, as personas. 

Essa riqueza poética, que tem nas reminiscências da infância sua razão de ser, ganha protagonismo à medida que o fazer, conjugando forma e fundo, promove uma das trajetórias poéticas mais substantivas das últimas décadas. De Minas pro Brasil, deste pro vasto mundo. 

Riqueza — repitamos — que alia ao mesmo tempo lirismo, invenção metafórica, imprevisibilidade semântica e boas doses de experimentação, esta que seria intensificada nas obras publicadas nos anos vindouros. 

Em menor ou maior destaque, as três funções propostas por Pound — sonoridade, imagem e pensamento — foram muito bem exploradas pelo jovem poeta, saudoso da terra natal e apegado ao rio profundo, que se atira com bravura ao turbilhão lírico, metafórico e linguístico. 

Se num primeiro momento os aspectos imagético e semântico predominam na arte wilmariana, eles seriam superados e/ou subvertidos nas obras que viriam como, por exemplo, Dissonâncias, Anu e Cachaprego, nas quais o recurso da sonoridade (melopeia) seria explorado à exaustão, colocando poema e melodia em pé de igualdade. A experimentação formal também seria trabalhada com vistas à expressividade. 

Isto posto, não queremos outra coisa senão enfatizar a relevância de Águas Selvagens na longa e bem-sucedida carreira de Wilmar Silva (Djami Sezostre), na medida em que o livro instaurou o início e explicitou os meios pelos quais esse projeto de linguagem aconteceu, segue em processo e fincou suas marcas na contemporaneidade.

Essas três décadas da publicação da pequena obra-prima, portanto, não poderiam passar em branco. Daí nosso tributo a ela, ainda que despretensioso, e a nossa sugestão para que ganhe uma 2ª. edição. A despeito dessa situação anormal imposta pelo novo coronavírus, torçamos para que as águas doces recebam uma roupagem nova com direito a acessórios revistos e ampliados. 

Como diria Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta. E a obra Águas Selvagens existe exclusivamente por causa do talento de Wilmar/Djami!

 



FICHA TÉCNICA

SILVA, Wilmar. Águas Selvagens: Belo Horizonte: Asbrapa, 1990

Prefácio: José Afrânio Moreira Duarte (in memoriam)

Orelhas: Lacyr Schettino (in memoriam)

Capa/desenho: José Renato Pimentel

Ilustrações: Olga Tukoff

Layout/arte final: Aguilar Pinheiro



julho, 2020



Almir Zarfeg — também conhecido como A. Zarfeg ou simplesmente AZ — é um poeta e jornalista radicado em Teixeira de Freitas/BA. Iniciou-se na literatura em 1991, com o livro de poemas Água Preta, atualmente, na 4ª edição. Depois publicou mais livros de poemas, crônicas, contos, novela, infanto-juvenil e reportagem. Em 2017, foi homenageado pela União Baiana de Escritores (UBESC) com o título de "Personalidade de Importância Cultural". Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. A convite da Lura Editorial, organizou o livro de poemas Nós — poesias para tardes ensolaradas, lançado durante a XIX Bienal Internacional do Livro do Rio, em 2019.


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