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Em 1984, dez anos após a Revolução dos Cravos e quase cinquenta depois da morte de Fernando Pessoa, José Saramago prossegue em O Ano da Morte de Ricardo Reis a revisitação literária do passado português. Tanto esta obra como a imediatamente anterior, Memorial do Convento (1982), poderão ser lidas na perspetiva de uma certa tradição de abordagem crítica aos problemas da "alma nacional" lusa que se concentrara, desde Almeida Garrett e Alexandre Herculano, de acordo com Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade (1.ª ed. 1978), em "problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada consciência individual, com a realidade específica e autónoma que é a pátria" (LOURENÇO, 1988, p. 80). Estando o laço que une cada escritor à sua "pátria" (categoria sempre suscetível de problematizações várias) reservado à escrita, será através da língua (do discurso) que empreende a revisitação sistemática das suas crises.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis (AMRR), o passado regressa em analepse ao décimo aniversário da consolidação da ditadura do Estado Novo (implantada após a Revolução de 28 de Maio de 1926) e à reapropriação nacionalista dos mitos que os escritores do século anterior haviam recriado enquanto modos específicos de uma certa imagem cultural da "identidade pátria", entre eles o da vocação portuguesa de "dar novos mundos ao mundo", o messianismo sebastianista, a aventura da Restauração de 1640 ou a mitografia camoniana, exacerbada politicamente na inauguração em 1880 da estátua do poeta no Chiado. Dessa analepse faz parte, ainda, o importante interdiscurso literário propiciado por autores que, a partir da Geração de 70, haviam procurado apresentar nas suas obras visões críticas da estagnação da sociedade contemporânea, apenas animada por um passado idealizado e pelas imagens diferidas de um império que Camões descrevera na sua epopeia como universal e que, em finais de oitocentos, prosseguia em acelerada decadência. Das "frotas dos avós, e os nómadas ardentes", rememorados por Cesário Verde em "O Sentimento dum Ocidental", já só restariam, afinal, "uns tristes bebedores" (VERDE, 2001, p. 131) a cantar de braço dado nas sombras da "triste cidade". Para os escritores portugueses do século XX, prosadores e poetas como Eça de Queirós, Antero de Quental ou Cesário tinham-se convertido em autoridades no âmbito desse movimento crítico desmistificador das (supostas) glórias imperiais do passado. Nas deambulações de Ricardo Reis pelas ruas de Lisboa, o encontro com o monumento a Eça de Queirós (ou Queiroz) apresenta-o como um dos escritores a quem a língua escolheu "para que exprimam uma pequena parte do que é" (AMRR, p. 62); a paródia em forma de quiasmo da célebre citação de A Relíquia que surge na base da estátua no Largo Barão de Quintela, no texto "Sobre a nudez forte da fantasia o manto diáfano da verdade" (ibid.), resume a postura interventiva do narrador na obra saramaguiana, correspondendo, em certa medida, a uma perspetiva do processo criativo do autor na busca do compromisso entre o fingimento literário na sua expressão mais visível e a atenção à realidade específica da sociedade contemporânea, que em 1984 ainda se debatia com as consequências do processo de descolonização de um território ensinado oficialmente até há pouco como "império".

A estrutura circular presente nas frases do incipit e do explicit, relendo parodicamente Camões n'Os Lusíadas, reflete não a continuidade da epopeia nacional mas a importância do regresso do olhar de um mar que "se acabou" para a terra que "espera", a mesma que, na década de oitenta do século XX, urgia contemplar. Ao cais de Alcântara onde atracara o vapor Highland Brigade trazendo Ricardo Reis em 1935 aportariam, quarenta anos depois, os navios com os "retornados" das antigas colónias portuguesas juntamente com os seus haveres em caixotes e contentores. O gigante Adamastor deixara há muito de representar, simbolicamente, o triunfo dos navegadores portugueses sobre o medo e a natureza para se converter em mais uma estátua do jardim (o do Alto de Santa Catarina), no qual, em 1936, as palmeiras "parecem transidas pela aragem que vem do largo, mas as rígidas lanças de palmas mal se mexem" (AMRR, p. 181). Em 1984, o "Portugal de nevoeiro" do último poema da Mensagem, aquele que em 1935 se reconfigura na cidade de Lisboa vista do paquete como "cinzenta, urbe rasa sobre colinas (…) um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado" (AMRR, p. 12), ainda não encontrara muitas respostas para o repto final da obra pessoana ("É a Hora!"), sendo que, de acordo com Eduardo Lourenço, ela deveria vir encerrar o "processo de autognose de Portugal" (idem, p. 84) iniciado com a epopeia camoniana. Esse Portugal que já ultrapassara mais um aniversário da morte do épico parecia ainda devedor da "tal soturnidade", a "tal melancolia" que despertaram no sujeito poético da primeira sequência de "O Sentimento dum Ocidental" "um desejo absurdo de sofrer" (VERDE, 2001, p. 123). A condição fantasmática, de acordo com Eduardo Lourenço, percorre o imaginário português em diferentes momentos e textos, convertendo-se numa outra forma de mito com idêntica eficácia face a outros como o do Império ou o da sua decadência, concretizada incontornavelmente em Os Lusíadas; de facto, essa leitura do passado de um povo que, em Frei Luís de Sousa, se clamara "Ninguém" ao mesmo tempo que apontava o seu retrato (passado), assinala as contradições de uma mitografia poderosa acerca da identidade nacional, firmada simultaneamente na presença e na ausência, no estado intermédio no qual ambos confluem em tensão permanente e divergem numa série de imagens fantasmáticas que a literatura, recetáculo diferido de fingimentos, se encarrega de recriar de texto em texto. Como concluía o ensaísta Fernando Guerreiro em "Literatura Fantástica", "A Literatura apresenta-se assim como uma máquina de produzir fantasmas. Daí o poder dizer-se que, no que tem de mais essencial, a literatura (o seu corpo sideral, espectral) é sempre fantástica" (GUERREIRO, 2011, p. 7).

O objetivo deste breve estudo é o de apresentar algumas coordenadas que acompanhem o leitor numa leitura fantasmática da cidade de Lisboa em O Ano da Morte de Ricardo Reis, tendo como pressuposto uma aceção de intertextualidade enquanto regresso das imagens de textos em outros textos, aos quais se comunica a ilusão da presença recuperada de visões já apreendidas por outros autores. Trata-se de um movimento que, no enredo central da obra de Saramago, se encontra desde logo anunciado: o regresso de Ricardo Reis a uma Lisboa continuadamente sombria é o do revenant (aquele que volta, termo que em francês também designa o fantasma), da entidade que decide empreender uma viagem de reconhecimento ou de revisão do que em tempos conheceu e abandonou. No final, terminada a sua missão, regressa com o seu criador (de quem é imagem duplicada) ao eterno Nada de que se compõem, de resto, todas as máquinas que produzem fantasmas. 

No final de um dos encontros de Fernando Pessoa com Ricardo Reis, o primeiro alvitrava de forma irónica: "nunca se esqueça de que estamos em Lisboa, daqui não partem estradas" (AMRR, p. 119). Se este enunciado vem corroborar todas as restantes referências disfóricas à capital na obra e à expressão do ambiente atrofiado e bafiento, metáfora do regime vigente, é necessário, por sua vez, reconhecer alguns dos possíveis intertextos usados nessa descrição e em que medida a subtileza do uso de certos pormenores proporciona um maior enriquecimento de cada leitura.  

A Lisboa fechada sobre si mesma, paisagem urbana onde facilmente se distinguem situações e pormenores que contestam o casticismo que as comédias cinematográficas realizadas entre 1930 e 1945 ("O Pátio das Cantigas", de 1942, ou "O Costa do Castelo", de 1943) procuraram vulgarizar, é em AMRR uma cidade fantasmática cujos marcos miliários da deriva são as estátuas. É necessário salientar que essa visão naturalista deve bastante os seus modelos descritivos à estética finissecular e à descrição realista em romances de autores como Eça de Queirós, cuja estátua se encontra, de resto, num dos pontos desse itinerário. A cidade, cais de embarque para a Índia e de chegada dos últimos caixotes do Império, convida à deambulação e ao confronto com a sua decadência física e anímica. Em O Primo Basílio, a primeira viagem de Luísa ao "Paraíso" passa pelo Largo de Camões e desce o Chiado até chegar à "casa amarelada, com uma portinha pequena", o lugar sórdido dos encontros com o amante situado "numa correnteza de casas velhas" (QUEIRÓS, 1993, p. 190) para os lados de Arroios e onde, logo à entrada, "um cheiro mole e salobro" (idem, p. 191) a enojou.

As flâneries de Reis nos capítulos 3 e 4 de AMRR correspondem a dois momentos especialmente relevantes. No terceiro capítulo, o passeio decorre durante o dia, sendo possível acompanhar o seu percurso da Baixa até ao Cemitério dos Prazeres e daí, já depois do almoço, novamente pela Baixa, com destaque para a Praça da Figueira e as ruas dos Douradores e da Conceição. No quarto capítulo, a personagem passeia pelo Bairro Alto de dia, antes do almoço, onde encontra a estátua de Eça de Queirós, seguindo-se, depois de largas deambulações, a de Camões; regressado ao hotel para jantar e após decidir assistir às badaladas da meia-noite do Ano Novo no Rossio, prossegue nova digressão até à estação ferroviária, pelo Chiado, passando pela Rua do Ouro antes de voltar ao seu quarto e nele encontrar, à sua espera, Fernando Pessoa. A nossa proposta procurará centrar-se em alguns aspetos descritivos das duas deambulações e em que medida se poderão articular com o intertexto "O Sentimento dum Ocidental" de Cesário Verde. Começamos pela transcrição de um excerto do capítulo 3:


Agora, sai, urbanamente deu as boas-tardes, e agradecendo saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira, ainda agitada, porém nada que se possa comparar com as horas da manhã, ruidosas de gritos e pregões até ao paroxismo. Respira-se uma atmosfera composta de mil cheiros intensos, a couve esmagada e murcha, a excrementos de coelho, a penas de galinha escaldadas, a sangue, a pele esfolada. Andam a lavar as bancadas, as ruas interiores, com baldes e agulheta, e ásperos piaçabas, ouve-se de vez em quando um arrastar metálico, depois um estrondo, foi uma porta ondulada que se fechou. Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na Rua dos Douradores, quase não chovia já, por isso pode fechar o guarda-chuva, olhar para cima, e ver as altas frontarias de cinza-parda, as fileiras de janelas à mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias prolongando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas verticais, cada vez mais estreitas, mas não tanto que se escondessem num ponto de fuga, porque lá ao fundo, aparentemente cortando o caminho, levanta-se um prédio da Rua da Conceição, igual de cor, de janelas e de grades, feito segundo o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando sombra e humidade, libertando nos saguões o cheiro dos esgotos rachados, com esparsas baforadas de gás, como não haveriam de ter as faces pálidas os caixeiros que vêm até à porta das lojas, com as suas batas ou guarda-pós de paninho cinzento, o lápis de tinta entalado na orelha, o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo valido a pena (AMRR, pp. 43-44).


A descrição inicial do mercado da Praça da Figueira decorre da sua reconstituição baseada em fotografias e em outros testemunhos, dado que em 1984, ano da primeira edição de AMRR, o mercado desaparecera há vários anos (inaugurado em 1885, seria demolido em 1949). A sua arquitetura em ferro e vidro evoca os grandes edifícios oitocentistas da Revolução Industrial (mercados, estações ferroviárias, Palácios de Cristal, passagens) com a capacidade de albergar multidões e configurando-se na paisagem como emblemas do progresso material. Note-se que a incursão descritiva, por parte de Saramago, num espaço entretanto desaparecido mas cuja memória fantasmática perdura no presente, apresenta algumas semelhanças com a poética vestigial de Cesário Verde, atenta, de acordo como Helena Carvalhão Buescu aos "traços que ficaram e aos traços que poderão ficar, capaz de se constituir já não a partir do que permanece mutável através da manutenção dos textos e dos monumentos, mas a partir dos traços e vestígios palimpsésticos que deles se podem ainda conservar" (BUESCU, 2007, pp. 28-29). Por outro lado, parece-nos ainda pertinente associar essa presença evocativa a um tempo vestigial que Walter Benjamin procurara descrever nos fragmentos do seu Livro das Passagens (Passagen-Werk), recuperando a memória da arquitetura progressista de Oitocentos a partir das passagens, estruturas que exprimem a dialética da interioridade/exterioridade e o triunfo daquilo que o homem oitocentista declarara as duas grandes conquistas da técnica, o gás e o ferro fundido (cf. BENJAMIN, 2019, F1,4, p. 266). Tal como os mercados cobertos e outras estruturas em ferro, as passagens de Paris constituíram um dos percursos favoritos da flânerie conforme Benjamin a interpretou a partir de Baudelaire, evocando em simultâneo a perda ou destruição de um mundo outrora concebido como expressão inequívoca do engenho humano. Benjamin anotava que, de facto, "a rua conduz o flâneur a um tempo já desaparecido" (BENJAMIN, 2018, M1, 2, p. 544), imagem que é possível associar à deambulação de Reis por um espaço já tão fantasmático em 1984 como os mercados de Les Halles em Paris, exemplo maior da arquitetura em ferro e demolidos nos anos setenta do século XX.

A expressividade do termo "babilónia", usado na descrição do trecho transcrito, encontra relação próxima com o de "labirinto". Em sentido figurado, "babilónia" remete para a confusão das línguas e das gentes num contexto urbano (Babel, a cidade mesopotâmica onde os homens decidiram edificar a maior torre do mundo, símbolo do progresso humano como desafio à omnipotência divina). Também na poesia de Cesário Verde a cidade assume essa referência simbólica ao ponto de Óscar Lopes a entender como tema, o da "Cidade Babel" (LOPES, 1993, p. 106), expressão recuperada, entre outras passagens, do verso "Nesta Babel tão velha e corruptora" do poema "A débil" (VERDE, 2001, p. 90). No labirinto, a disposição do traçado dificulta ao sujeito a orientação e a descoberta de uma saída num espaço quase inteiramente fechado. A confusão, no labirinto, relaciona-se com o espaço numa dimensão interior, já a da "Cidade Babel" com o bulício auditivo da multidão e dos miasmas ambientais e sociais. Na descrição de AMRR, a preferência é dada à estesia olfativa e auditiva, refletindo o ambiente desagradável que prevalece durante as últimas horas de atividade do mercado. Esta combinação de odores e ruídos desagradáveis sugere as contingências do progresso e da vida urbana, sempre ameaçada pelas epidemias e pela morte, como Cesário impressivamente descreve no poema "Nós" (evocação do episódio da peste na cidade a que assistira ainda jovem), em versos como "Sem canalizações em muitos burgos ermos, / Secavam dejecções cobertas de mosqueiros" ou "Uma iluminação a azeite de purgueira, / De noite amarelava os prédios macilentos. / Barricas de alcatrão ardiam; de maneira / Que tinham tons de inferno outros arruamentos" (VERDE, 2001, p. 140).




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No excerto de AMRR, a deambulação do protagonista prossegue pela Rua dos Douradores (a mesma onde o semi-heterónimo Bernardo Soares tinha o seu quarto) e com sequências descritivas que concorrem para os sentimentos de monotonia, fechamento e morbidez. A regularidade pombalina e o cinzento das fachadas não são quebrados pela mudança de rua, convertendo-se a esquina num outro corredor do mesmo labirinto regular de prédios que em comum são habitados pelos mesmos miasmas e pelas suas vítimas. As "faces pálidas dos caixeiros que vêm até à porta das lojas, com as suas batas ou guarda-pós de paninho cinzento" resumem os três sentimentos anteriores, podendo, em certo sentido, recuperar livremente vestígios da figura fantasmática do próprio poeta Cesário Verde, que exercera atividades comerciais na paralela Rua dos Fanqueiros e que viria a falecer de tuberculose pulmonar, sendo também ele, como Pessoa, enterrado no Cemitério dos Prazeres. Essa presença é igualmente textual, se atendermos, por exemplo, às duas primeiras quadras de "Avé-Marias" (em "O Sentimento dum Ocidental"), que remetem para o crepúsculo e apelam para um pathos existencial que o narrador em AMRR recolhe indiretamente nas superfícies que vai registando (prédios, rostos):


Nas nossas ruas, ao anoitecer, 

Há tal soturnidade, há tal melancolia, 

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia  

Despertam um desejo absurdo de sofrer. 


O céu parece baixo e de neblina, 

O gás extravasado enjoa-me, perturba: 

E os edifícios, com as chaminés, e a turba 

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

(VERDE, 2001, p. 123)


O olhar do sujeito poético em "O Sentimento dum Ocidental" e o do narrador no excerto transcrito parecem concretizar de forma eficaz a fantasmagoria do flâneur segundo Walter Benjamin, ao darem conta da "capacidade de ler a profissão, as origens, o carácter pelos rostos" (BENJAMIN, 2019, m 6,6, p. 558).

No capítulo 4, depois de novo passeio pelas ruas do Bairro Alto durante o dia, Ricardo Reis decide assistir às comemorações do Ano Novo de 1936 junto à Estação do Rossio:


Da Rua do Primeiro de Dezembro um grupo de rapazes avança batendo com tampas de panela, tchim, tchim, e outros apitam, estridentes. Dão a volta ao largo fronteiro à estação, instalam-se debaixo da arcada do teatro, sempre a trinar nas gaitas e a bater as latas, e este barulho junta-se ao das matracas que ressoam por toda a praça, ra-ra-ra-ra, faltam quatro minutos para a meia-noite, ai a volubilidade dos homens, tão ciosos do pouco tempo que têm para viver, sempre a queixarem-se de serem curtas as vidas, deixando à só memória um branco som de espuma, e aqui impacientes por que passem estes minutos, tão grande é o poder da esperança. Já há quem grite de puro nervosismo, e o alvoroço recresce quando da banda do rio começa a ouvir-se a voz profunda dos barcos ancorados, os dinossauros mugindo com aquele ronco pré-histórico que faz vibrar o estômago, sereias que soltam gritos lancinantes como animais a quem estivessem degolando, e as buzinas dos automóveis ali perto atroam doidas, e as campainhas dos eléctricos tilintam quanto podem, pouco, finalmente o ponteiro dos minutos cobre o ponteiro das horas, é meia-noite, a alegria duma libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo, aí estão, abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e mulheres ao acaso, são esses os beijos melhores, os que não têm futuro. O barulho das sereias enche agora todo o espaço, agitam-se os pombos no frontão do teatro, alguns esvoaçam estonteados, mas ainda não passou um minuto e já o som vai decrescendo, alguns derradeiros arrancos, os barcos no rio é como se se estivessem afastando pelo meio do nevoeiro, mar fora, e, por disto falarmos lá está D. Sebastião no seu nicho da frontaria, rapazito mascarado para um carnaval que há-de vir, se não noutro sítio o puseram, mas aqui, então teremos de reexaminar a importância e os caminhos do sebastianismo, com nevoeiro ou sem ele, é patente que o Desejado virá de comboio, sujeito a atrasos. Ainda há grupos no Rossio, mas a animação extingue-se de vez. As pessoas deixaram livres os passeios, sabem o que vai acontecer, dos andares começa-se a atirar lixo para a rua, é o costume, porém aqui nem se nota tanto porque nestes prédios já pouca gente vem morando, o mais das casas são escritórios e consultórios. Pela Rua do Ouro abaixo o chão está juncado de detritos, e ainda se lançam janela fora trapos, caixas vazias, ferro-velho, sobras e espinhas que vêm embrulhadas em jornais e nas calçadas se espalham, um potezinho cheio de cinzas ardentes estoirou disparando fagulhas em redor, e as pessoas que passam, agora procurando a protecção das varandas, ao rente dos prédios, gritam para cima, mas isto nem são protestos, o uso é geral, resguarde-se cada qual como puder, que a noite é de festa, de alegria foi o que se pôde arranjar. Atira-se fora o que é inútil, objectos que deixaram de servir e não vale a pena vender, guardados para esta ocasião, esconjuros para que a abundância venha com o ano novo, pelo menos ficará o lugar em aberto para o que de bom possa vir, assim não sejamos esquecidos. Do alto de um prédio alguém gritou, Lá vai obra, teve esse cuidado e atenção, e pelos ares cai um vulto grande, fez um arco, quase bateu nos cabos de energia dos eléctricos, que imprudência, capaz de um desastre, e despedaçou-se violentamente contra as pedras, era um manequim, daqueles de três pés, que tanto servem para casaco de homem como para vestido de mulher, caso é que sejam corpulentos, rompera-se-lhe o forro preto, entrara-lhe sem recurso o caruncho nas madeiras, ali esborrachado pelo choque mal consegue lembrar um corpo, falta-lhe a cabeça, não tem pernas, um rapaz que passava empurrou-o com o pé para a valeta, amanhã vem a carroça e leva tudo, vão as folhas e as cascas, os farrapos sujos, os tachos a que nem já o funileiro ou o deita-gatos poderiam valer, um assador sem fundo, uma moldura partida, flores de pano desbotadas, daqui a pouco começarão os mendigos a rabiscar neste lixo, alguma coisa hão-de eles aproveitar, o que para uns deixou de prestar é vida para outros (AMRR, pp. 76-78).


Prosseguindo como flâneur noturno, a visão de Reis, em alguns aspetos descritivos semelhante às imagens dos carnavais grotescos de James Ensor, alcança a descrição burlesca dos costumes populares da passagem de ano. O contraste entre o ruído esconjurador dos rapazes e o tom de censura do espectador (Reis? O narrador omnisciente e interventivo de AMRR?) face à transitoriedade do tempo e ao seu carácter inelutável parece pender para a posição do heterónimo, que iniciava certa ode com os versos "Vive sem horas. Quanto mede pesa, / E quanto pensas mede." (PESSOA, 1988, p. 139). O mito de Chronos (Saturno), o deus do Tempo, é evocado noutros poemas de Ricardo Reis, do mesmo modo que surge no excerto como a figura fantasmática que observa ironicamente a breve explosão de esperança, de rápida extinção no contexto de uma sociedade amordaçada e sem futuro como a do Estado Novo: "alegria duma libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo (…) são esses os beijos melhores, os que não têm futuro". De facto, o barulho das buzinas, das "sereias que soltam gritos lancinantes como animais a quem estivessem degolando" (numa possível relação intratextual com os animais mortos no mercado da Praça da Figueira, aludidos no excerto anterior), vai decrescendo nem meio minuto passado para logo em seguida recolocar a multidão no seu tempo próprio.

Tanto a escolha do local – o largo defronte da estação do Rossio, edifício em estilo neomanuelino, evocador das glórias dos Descobrimentos – como a referência a mais uma estátua de singular importância, a de D. Sebastião, que se encontrava (foi derrubada e partida em 2016 por um turista) num nicho entre os dois portais, vêm prolongar a flânerie dessa manhã, durante a qual nos concede a descrição da estátua de Camões, e as do dia anterior. Importa-nos surpreender a coerência na visão crítica quanto ao sentido da continuidade revelada entre a referência à estátua do poeta épico e as que Cesário Verde tece sobre a mesma em "O Sentimento dum Ocidental". Presumindo que se trate da voz do narrador a exprimir o seu ponto de vista, o elevado sentido irónico da descrição da estátua do rei associa-se à desconstrução sarcástica de certo vocabulário caro ao mito do Encoberto facilitada pelo contexto insólito em que ela se encontra (na frontaria de uma estação ferroviária): "(…) lá está D. Sebastião no seu nicho da frontaria, rapazito mascarado para um carnaval que há-de vir, se não noutro sítio o puseram, mas aqui, então teremos de reexaminar a importância e os caminhos do sebastianismo, com nevoeiro ou sem ele, é patente que o Desejado virá de comboio, sujeito a atrasos". O atraso da vinda do rei é o atraso na libertação dos velhos mitos e o atraso de um país fechado nos labirintos lendários que as suas estátuas mudas presentificam. A visão crítica do narrador prossegue, desse modo, a descrição irónica do monumento a Camões no Chiado, cuja leitura iremos em seguida recuperar:


Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie de D'Artagnan premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a quem, aliás, variando os tempos e as políticas, ainda acabará por servir, mas este aqui, se por estar morto não pode voltar a alistar-se, seria bom que soubesse que dele se servem, à vez ou em confusão, os principais, cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência (AMRR, p. 70).


O "labirinto que conduz sempre ao mesmo lugar" concretiza a ausência da possibilidade de evasão de um espaço excessivamente concentrado, o do mito nacionalista, representado na estátua de Camões inaugurada com pompa em 1880 e que continuaria na época do Estado Novo a constituir um dos ícones mais importantes do "heroismo anacrónico" (LOURENÇO, 1988, p. 156) que outros monumentos na cidade desejavam perpetuar. Essa sugestão crítica encontra-se também na passagem "variando os tempos e as políticas, ainda acabará por servir" e, de modo ainda mais contundente, na denúncia da conivência das altas hierarquias da Igreja Católica (Manuel Gonçalves Cerejeira fora elevado ao cardinalato em 1929) com a situação política vigente. Por seu lado, interessa recordar que Cesário Verde compusera no próprio ano da inauguração do mesmo monumento no Chiado uma descrição com propósitos críticos similares na sequência II de "O Sentimento dum Ocidental", "Noite fechada". O poema, de acordo com o testemunho do autor numa carta, fora inicialmente publicado "numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões" (VERDE, 2001, p. 123) e não merecera nem qualquer destaque nem qualquer opinião (cf. HESS, 1999, p. 176):


Duas igrejas, num saudoso largo, 

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor e severo,

Assim que pela História eu me aventuro e alargo.


Na parte que abateu no terremoto, 

Muram-se as construções rectas, iguais, crescidas;

Afrontam-se, no resto, as íngremes subidas,

E os sinos de um tanger monástico e devoto.


Mas, num recinto público e vulgar, 

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, 

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, 

Um épico doutrora ascende, num pilar!


E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

(VERDE, 2001, pp. 126-127)


Da comparação entre os trechos transcritos de AMRR e os versos de Cesário Verde podem assinalar-se algumas aproximações: a crítica ao clericalismo, comum na segunda metade do século XIX; a flânerie e a visão ruinosa da História, com a referência ao terramoto de 1755; a descrição dos prédios, tal como se verifica no excerto do capítulo 3 de AMRR; a desconstrução crítica do heroísmo figurado na estátua que, na terceira quadra do poema de Cesário, se vê ainda mais diminuída no enquadramento mesquinho de um "recinto público e vulgar, / Com bancos de namoro", evocando a grandeza no plinto onde se sustém mas ao qual está preso, sem se conseguir movimentar, conforme notou Miguel Tamen ao dissertar sobre a importância da vírgula no último verso da terceira quadra transcrita (cf. TAMEN, 2002, p. 67). A figura de bronze do "épico doutrora" (a perífrase e a antonomásia facilitam a identificação) que em AMRR era um herói de capa e espada de romance de aventuras já se havia convertido no poema de Cesário, no próprio ano da sua inauguração, numa testemunha imóvel (como o Adamastor preso na sua rocha) dos namoros das "burguesinhas do Catolicismo" (VERDE, 2001, p. 128). O "sentimento" do sujeito poético de Cesário dirige-se não a ele mas aos vivos, aos "corpos enfezados", "sombrios e espectrais" que são os portugueses do seu tempo e todos os outros que chegaram a 1936 em semelhantes condições anímicas. 

Terminamos a nossa proposta de leitura fantasmática regressando à sequência final do excerto de AMRR (p. 78) e à incursão entre o lixo atirado das janelas para a Rua do Ouro (o contraste entre a toponímia e a ação representada é bastante sugestivo). O narrador volta a concentrar-se em motivos já encontrados em Cesário, a que acrescenta uma referência simbólica de grande importância, o manequim atirado do alto de um prédio acompanhado do grito "Lá vai obra". Por um lado, trata-se de um objeto comum no meio comercial da Baixa na época (a expressão "parece um manequim da Rua dos Fanqueiros" diz respeito a alguém que mantém uma atitude irrepreensível porém imóvel, indecifrável; é curiosa a coincidência com a rua onde Cesário exerceu a sua atividade comercial, de ferragens e quinquilharias), mas igualmente um objeto associado à arte moderna. Pensemos a esse propósito nos trabalhos fotográficos de um dos mais reconhecidos flâneurs parisienses, Eugène Atget, que retratou em diversas ocasiões a atmosfera vazia da cidade em contraste com as montras repletas de objetos, entre os quais manequins de diferentes formatos. Tal como na pintura de Giorgio de Chirico, o manequim seria também nos anos quarenta em Portugal um dos objetos-fetiche de Surrealistas como Vespeira, que nele encontraram um motivo poderoso para exprimir as suas preocupações metafísicas. Como objeto de formas antropomórficas, o manequim atua como um duplo inorgânico do ser humano, uma representação da ambiguidade sinistra do quase animado à semelhança de outros dispositivos como a boneca/autómato (exemplo de Coppélia, do conto fantástico de Hoffmann) ou o robô (pensemos em Metropolis, de Fritz Lang, filme de 1927). O manequim da rua da Baixa lisboeta mostra-se incompleto, fragmentado, perfeitamente anónimo (não se conhece o seu género, falta-lhe a cabeça), conservando apenas um tronco enganchado num tripé (sem pernas). A ânsia de liberdade dos moradores dos "prédios altos" acabaria por se conformar inevitavelmente a esse sofrimento obsidiante que o sujeito de "O Sentimento dum Ocidental" sugerira nos versos "E, enorme, nesta massa irregular / De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, / A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como o sinistro mar!" (VERDE, 2001, p. 132); no entanto, antes do regresso ao tédio de uma existência sem voz e sem futuro, eles precipitam catarticamente um objeto (uma ambígua quase-estátua) que serve de duplo totémico do horizonte político dominante, "vulto grande" onde já entrara "sem recurso o caruncho nas madeiras". Sem pernas e sem cabeça, ele é mais um simulacro que faz parte de todas as sobras sem valor, do lixo que se acumula nas ruas até ao dia seguinte, os "restos da História" de que falava Walter Benjamin e que o narrador de AMRR parece tomar a seu cargo na diegese, dado que, como podemos efetivamente ler, "alguma coisa hão-de eles aproveitar, o que para uns deixou de prestar é vida para outros", metáfora perfeita da criação narrativa pós-moderna.




Referências


BENJAMIN, Walter. O Livro das Passagens, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019.

BUESCU, Helena Carvalhão, "Movimento, flânerie e memória cultural". Cesário Verde — visões de artista, org. Helena Carvalhão Buescu e Paula Morão, Porto: Campo das Letras, 2007, pp. 27-36. 

GUERREIRO, Fernando. Teoria do Fantasma, Lisboa: Mariposa Azual, 2011.

HESS, Rainer. Os Inícios da Lírica Moderna em Portugal. Lisboa: IN-CM, 1999.

LOURENÇO, Eduardo (1988). O Labirinto da Saudade — Psicanálise Mítica do Destino Português, 3. ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.

PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis, 3. ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, 1988.

QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.

SARAMAGO, José. O Ano da Morte de Ricardo Reis, 10. ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1993.

TAMEN, Miguel. Artigos Portugueses, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.

VERDE, Cesário. Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

 

 

julho, 2020

 

 

Francisco Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Portuguesas, variante de Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) e mestre em Criações Literárias Contemporâneas, na especialidade de teoria da criação literária, pela Universidade de Évora (Portugal). É membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta português Daniel Faria, no âmbito das quais, entre várias atividades, editou O Livro do Joaquim (2007; 2.ed. 2019). Além de outros trabalhos de edição, tem publicado ensaios e recensões em livros e revistas nacionais e internacionais e apresentado comunicações em colóquios. Os seus domínios de investigação têm-se centrado na poesia portuguesa moderna e contemporânea, na teoria literária e no diálogo interartes.