I



Toda vez que leio um verso de Líria Porto, mais me convenço que ela é o anjo torto de saia de que fala Drummond no "Poema de sete faces". Para LP, aliás, "todo dia é dia de poesia e de drummond". Como tenho encontro marcado com ela todo santo dia no Facebook, o bendito gauche se tornou presença constante, onipresente mesmo, em minha precária virtualidade. Que continue assim até o juízo final. 




II



Como anja torta, LP não tem me decepcionado, uma vez que seus poemas, cunhados em versos curtos e certeiros, à guisa de pavios curtos, fazem a alegria de gregos e troianos, cativam mineiros e baianos, como Bita e eu. Mas fazem pensar também, porque, se por um lado, são divertidos e irônicos; por outro lado, perturbam e denunciam o circo e os palhaços em que o Brasil se transformou nestes tempos fake e reacionários. 


A seguir, algumas facetas que extraí, via rede social, de sua produção recentíssima:



Uma dose de humor em "finitude":



puta que me pari

eu não sou de ferro

nem de pedra nem de aço

:

e carne apodrece



Uma pitada de irreverência em "bilboquê":



a vida é um brinquedo

dos mais antigos do mundo


sobe com dificuldade

na maioria despenca

quando acerta é pau

no cu



Um grito de revolta em "preso político":



depois de me sequestrarem

levarem-me à solitária

(essa é a pior masmorra

pois que distante do povo)

emparedarem meu corpo

calarem minhas palavras

arrancarem-me dos meus

eu fui atirado às feras

(feras do judiciário)

:

sobrevivo como ideia

agora eu sou pensamento

a consciência que paira

sobre o país de meu deus




III



Eis aí o poema a serviço do que a vida tem de mais urgente e inadiável: as demandas pelo belo, pão, roupa, remédio, liberdade, pelo sim e pelo não, enfim, pela dignidade, pelo sagrado direito de sermos gente brasileira.


O poema que, de tão despojado de superficialidades, soa como um lamento e/ou se impõe às consciências como um provérbio, um abraço ou um dia ensolarado.


Um toque que, desprovido do lirismo (farto em Adélia Prado) e da construção metafísica (farta em Drummond), atinge o leitor como um lírio (Pra não dizer que não falei das flores) ou um soco (Nunca conheci quem tivesse levado porrada). Enfim, como linguagem certeira.




IV



Estamos diante da poética do cotidiano, das coisas e situações de somenos importância... lírica. Erótica não, porque, no final, a ternura anda de mãos dadas com o absurdo e o escroto. Basta um desvio de personalidade ou de sentido e... voilà! 




V



De tão imprevisível e original (quem disse que esses conceitos são excludentes?), LP nos conquista também com frases de efeito irresistíveis, diante das quais não nos resta alternativa senão capitular e admirar.


Senão, vejamos:


"Não acredito no poder de fogo, mas creio fielmente no poder do afago"

"Quando ele dizia saudade de comer goiaba, ela abria as pernas"

"Espírito natalino é o próprio espírito do porco com maçã na boca"

"Pessoas: sou ateia e não gosto de natal! Parem de mandar mensagens in box, que vou bloquear!"

"Entre mandar mensagens e ligar, eu prefiro... #LulaLivre"




VI



Portanto, meninos e meninas, seja no verso ou na prosa, LP dá um show para os sentidos (superiores e inferiores), se vocês me compreendem, usando e abusando da síntese, de posse de um texto poético imagético, visual e cubista. Impossível não voltar às origens modernistas da poesia brasileira, que fique claro, no que ela apresentava de coloquial, econômico e bem-humorado. Com seu lirismo (quem falou em lirismo?!) libertário, construído e envolvente, a anja torta vai se impondo com jeito e maledicência às necessidades e gostos mais exigentes, de modo que bota o dedo na ferida da moral, da política, da intolerância e da cafonice. Porque LP é poeta, sim senhor, e mulher, sim senhora. Os incomodados que se retirem e se cubram. Ou se phodam, porque toda tradição, ainda que malsã, é bem-vinda. Benvinda.




VII



Por último, mas não menos importante, uma trovíssima para LP:



Lírios perfumados

Para Líria Porto!

Versos defumados

Para o anjo torto!



dezembro, 2020



Almir Zarfeg — ou simplesmente A. Zarfeg — é um poeta e jornalista baiano. Atualmente, preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Ele é autor de livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Participa de inúmeras instituições literárias dentro e fora do país. Iniciou-se na literatura em 1991 com o livro de poemas Água Preta, atualmente na 4ª edição. Nos 25 anos de sua trajetória literária, celebrados em 2016, ganhou a biografia De A a Z e seu nome virou verbete no Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia e na Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos. Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. Assim Zarfeg se define no poema "Origem": "Não tenho dívidas,/ tenho divisa:/nunca ser rei,/mas rio".


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