©engin kyurt
 

 

 

 
 

 

 

 

extrema

 

 

cortar rente ao pescoço os cabelos deixar que proliferem os fios já sem cor em desalinho como nas /mulheres que sofrem/ deixar que se avolumem as dobras da carne em volta da cintura nas costas quadris e coxas sem nenhum controle como nas /mulheres que sofrem/ aceitar que murchem os lábios emoldurados de linhas como nas /mulheres que sofrem/ ignorar as rugas que irremediavelmente sulcam a pele árida e ressequida sem o apuro dos cremes como nas /mulheres que sofrem/ acatar a melancolia dos olhos sem brilho quase encobertos por uma película como nas /mulheres que sofrem/ ignorar cutículas que crescem nas unhas displicentemente aparadas por tesoura como nas /mulheres que sofrem/ desbotar de vez o sorriso descuidar de dentes e face como nas /mulheres que sofrem/ largar à própria sorte o corpo sem a esperteza do movimento como nas /mulheres que sofrem/ aparentar semblante hostil gestos embrutecidos como nas /mulheres que sofrem/ falar pouco desejar quase nada como as /mulheres que sofrem/. pular da cama olhar no espelho conferir os milímetros de gordura que cresceram reforçar o regime tomar o suco detox a novidade em shake ir à academia passar a tarde no salão de beleza lavar hidratar secar escovar pranchar os cabelos fazer manicure pedicure colocar as unhas que ficam lindas por seis meses aplicar o botox agendar a plástica frequentar baladas usar óculos escuros importados que escondem as rugas nas selfies fazer clareamento implantes tratamentos que garantam os dentes perfeitos falar muito sorrir sempre ambicionar o mundo fazer tudo ao mesmo tempo e agora como as /mulheres que sofrem/.

 

 

 

 

 

 

modus operandi

 

 

recomendamos um certo ar blasé.

nenhuma gentileza explícita

nenhum olhar condescendente.

os cabelos muito bem alinhados sempre.

nenhuma felicidade aparente.

nenhum vestígio de solidariedade.

de preferência

recomendamos um semblante hostil.

que seja frio, qualquer indício de sorriso.

que seja hábil em ironia e sarcasmo,

recomendamos maus tratos

e indelicadezas.

que sejam ingratas e desconfortáveis

as horas a esperar

sentadas nas lustrosas cadeiras.

que seja farto o calor

a provocar suor.

em nenhum instante, prazer.

[nenhuma cruzada de pernas provocante].

 

 

 

 

 

 

domínio

 

 

o vão entre o que adormece

e acorda

há tanto fez-se vida

e ameaça

o que restou de espanto

na dureza das vértebras

no bocejar

das frestas

arremessadas impunes

a qualquer vento

a qualquer hora.

o silêncio

não é mais dos inocentes.

a inércia dos "bons"

a eloquência simbólica

dos letrados

campeia

facilita a condução do gado.

as notícias bradam

verdades inventadas.

a verdade sangra

na ilicitude das convicções

sem provas.

o menino caminha sem a pipa.

a menina chora a morte da boneca.

as famílias

: dançam.

 

 

 

 

 

 

das danças

 

 

já dançava.

[acho que tinha três]

meus pés (treinando a ponta)

sobre os seus pés

ele me guiava

(eu perguntava: não dói, pai?)

o salão de festas

a sala da casa

(pra mim tinha luzes e orquestra)

suas mãos sustentavam os bracinhos esticados

e rodopiava, rodopiava...

depois das longas viagens

a alegria voltava pra casa.

o salão de festas mudou

tem muitas luzes

[estrelas]

meu pé de bailarina

perdeu o passo

perdeu o par

[acho que nunca mais dançou]

 

 

 

 

 

 

fluxo

 

 

a vida segue lindamente seu curso. ela não comeu hoje mas a vida segue. seus filhos não comeram hoje mas a vida segue. tem mais um filho na barriga desnutrida desnutrida mas a vida segue. tem uma menina eu li outro dia tinha só treze dias treze dias de nefasta vida. o pai estuprou ela morreu e ele chorou. tem uns meninos que não brincam trabalham trabalham pra ganhar uma ninharia. sustentam a família. mas oh que delícia que é a vida. queimaram o homem vivo era só brincadeirinha. mais um menino negro tomba na periferia. mais uma mulher morta. meu deus que dia. a vida segue lindamente seu curso. "a felicidade até existe" na letra da canção.

 

 

 

 

 

 

dentro

 

 

bordarei de prímulas os arredores da casa.

inventarei primaveras confusas

saudando o inverno.

esquecerei os corpos sem telhado.

não falarei da pele

que ferem com outros bordados.

bordarei de estrelas o teto.

não chorarei o descampado

que alicerça o abandono.

bordarei com fios dourados

de crepúsculo

os muros que minh'alma invadem.

bordarei as roupas de noiva

com carinho de pérolas

à espera das núpcias.

bordarei o chão

com as nuvens que sobrarem

dos milagres.

peixes, vinhos, deleite

fartarão nossos ventres vazios.

o corpo, bordarei de cheiros

pétalas inundarão o leito.

— não chamarei deus por hoje.

certamente estará ocupado

com tanto frio lá fora.

 

 

 

 

 

 

sobreviventes

 

 

ornar a velocidade pétrea dos viadutos

e debulhar em flores

o espetáculo impune

do que foi salvo das manhãs.

cravar a faca em todo peito

— alicerçado na maldade nossa de cada dia —

preencher artérias e veias

com migalhas de humanidade perdidas

pelos cantos.

salvaguardar essa pequena centelha de loucura

sobejo dos vivos

delírio que é arte.

 

 

 

 

 

 

perdido

 

 

sombra de tirar da noite

o brilho. morcegos psicodélicos

e um silvo

do trem do pássaro

do vento

que corta a madrugada

e rasga a carne da mulher

do menino

do homem embrutecido

sem lar.

perdida é a tez da alegria.

amarelecida a fome

empata o sono

e turva o olho

como no livro diz

carolina maria

como sentem todas as marias

como sentem seus meninos

seus homens

de olhares perdidos

de frio

de fome

de abandono







nunca



é um tempo que ainda se esconde

na beira das incertezas.

sempre

é o tempo que desperdiça

a audácia das novidades.

às vezes

o nunca, vira verdade

e noutras vezes

eternidade

 

 

 

 

 

 

à vera

 

 

então direi que é logro

o que me roubam um pouco

a cada dia.

a fantasia que não vinga

o sonho que arrefece

a alegria que evanesce e escorre.

 

então direi que é sombra

essa legião bipartida

e louca

que sangra e entoa

cânticos desconhecidos.

a passos largos marcha

em torno de um abismo.

 

então direi que é cíclica

essa vertigem insana

que atordoa e conduz

o rebanho.

essa insensatez tamanha

que foge ao lume.

 

então direi que é certo

que morro um pouco mais

a cada dia

se a veracidade das notícias

pouca importa.

(elas ecoam, cada vez mais sórdidas)

cegam

e voam

cada vez mais longe.

 

sei que morro.

e a cada noite sobrevoo

e amplio

o que já vi dessa paisagem.

pra renascer

(ainda em estado de choque)

a cada manhã que explode.

asas cada vez mais rijas

e uma vontade enorme.

 

 

 

 

 

 

canteiro

 

 

sou flor de ti

de vós

tecida em tépido

canteiro

de segurança e afeto.

 

Me falta a terra

mas as raízes

ficaram eternas

 

 

 

 

 

 

assim acontece

 

 

não escrevi teu nome

num rastro de estrela.

não sussurrei baixinho — letra por letra —

aos pés do santo milagreiro.

Não descobri nos livros — romances incansáveis —

o jeito mais certo de traduzir o amor.

não dedilhei no violão

a tua música predileta.

não redesenhei meus gostos.

não me contive nos gestos.

não elegi o teu filme predileto dentre os meus favoritos.

não tentei magias ou quebrantos.

não fiz pedidos sob a lua.

não desembarquei na tua cidade natal

no país dos teus sonhos, no teu refúgio predileto.

não cozinhei o prato que preferes.

não te seduzi com carícias, carinhos, sortilégios.

não desembarquei no teu porto seguro.

não visitei os teus jardins — não me cerquei dos teus muros —

não te convenci dos meus princípios.

não te persuadi com meus saberes.

não te comovi com histórias tristes.

não te impingi minhas verdades.

 

desnudei-me.

sendo somente o que sou,

subverti tuas vontades,

teus olhares,

tua ânsia

teu amor.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lia Sena, escritora baiana, tem quatro livros de poesia publicados. Pedaços (Editora Interbahia), Por todo risco, lume dos anseios (Edições Mac) e De foro íntimo (Editora Penalux). Em 2018, ganhou o III Prêmio Sosígenes Costa de Poesia com o livro Na veia da palavra, que sairá em breve pela Editus (Editora da UESC). Arrisca-se em contos e acabou de escrever o seu primeiro romance, Depois o amor (e-book). Integrante do Mulherio das Letras e Articuladora do Mulherio da Bahia. É editora adjunta da revista Ser MulherArte.