Para lembrar minha vida de leitor de poesia, quando começou, não tenho uma data muito precisa na minha memória. Sim, era Novo Horizonte/SP, eu era jovem, eram os anos 1970 e 1960 e quem, como eu, escrevia (ou tentava escrever) poesia naquela época, tudo devia às letras dos Beatles e ao nascente Tropicalismo de Caetano, Gil e os Mutantes, bem como ao lirismo sempre surpreendente de Chico Buarque. Do "Sgt. Pepper's" vinham os ventos psicodélicos e, devido à capa do elepê, que trazia letras, quis mergulhar no Inglês. De modo que ser poeta se confundia facilmente com escrever letras de música, sonhando ganhar festivais, ficar famoso, impor-se junto aos amigos, todos admiradores de música popular e, em geral, pouco interessados por livros.

Eu começava minha vida de leitor pinçando empréstimos possíveis aqui e ali, lendo todos os Jorge Amados (mais fáceis de encontrar) e Machados de Assis, e destoava um pouco, pois escrever me parecia mais interessante que tentar ser compositor, músico ou cantor. E, ao fuçar numa velha biblioteca pública, pertencente à Maçonaria, onde tudo que havia era o silêncio vez em quando rompido pelos sons de máquinas de escrever (funcionava ali uma escola de datilografia, outro anacronismo, hoje em dia), topei com um título que me interessou: Terceira feira, de João Cabral de Melo Neto. A influência que aquela poesia muito racional construída teve sobre mim foi considerável, no período. Mas logo eu também descobriria, em outras fontes, livros de Fernando Pessoa, Cecília Meirelles, Manuel Bandeira e, acima de tudo, Carlos Drummond de Andrade.

Uma antologia de Drummond ficou comigo por muitos anos. Foi se gastando, amarelando, e eu não a largava, lendo para mim mesmo aquilo que me parecia o máximo em lirismo contido, ironia e universalidade da dor — a condição humana entre humor e ceticismo. Na verdade, guardei um tanto daqueles versos e me lembro que, convidado a falar sobre poesia em algumas escolas, declamei o "Poema de sete faces" várias vezes. 

Queria escrever poesia como ele. Por isso, quando mandei a Nogueira Moutinho, crítico literário da "Folha de S.Paulo" naqueles anos,  poemas que eu trazia guardados num projeto de livro, ele gostou, mas respondeu que eu estava "preso demais a Drummond" e mandou-me um livro de Rilke, Cartas a um jovem poeta. Acrescentei Rilke às minhas preferências. Como tinha as opiniões de Moutinho em alta conta e ele me chamara de poeta, senti-me enfim justificado e seguro do que escrevia. Mas os anos se passaram e os poemas que lhe mandei sofreram muitas modificações, tantas que seria impossível rastreá-las, mas foram formando um pequeno livro, que finalmente batizei como Caderno provinciano e assim ficou.



Drummond nas ruas desertas



O certo foi que fui me tornando, aos poucos e com certeza, um pouco aquele provinciano eternamente desadaptado que traía em meus poemas e escritos em prosa compartilhados com os correspondentes que tinha, na época da poesia mimeografada e todos aqueles delírios "contraculturais" vividos sob a ditadura militar. Com Drummond na mão, era ler, ler, ler, e lá ia eu, mesmo à noite, bem tarde, andar pelas ruas vazias dizendo para mim mesmo que "onde não há jardim, as flores nascem/ de um secreto investimento em formas improváveis". Lendo, impunha àquele cenário triste e ermo o que achava verdades eternas que, não havendo público, lia para que eu mesmo de modo algum as esquecesse. Ao menos a minha voz era viva naquelas ruas de onde até os gatos haviam desertado e ninguém me veria; com razão, eu temia que, durante o dia, se eu fizesse aquelas leituras, fosse tomado por mais um dos loucos da cidade. Pródigas em produzir loucos afundados em vadiagem estéril e maldizendo o mundo entre amigos nos botecos, as cidades pequenas de São Paulo e Minas Gerais ganharam seu lugar na Literatura até por essa razão melancólica. Um escritor sempre se fez fecundado por elas, incapaz de ser assimilado, mas também de não amá-las tortuosamente, revoltando-se e prometendo a si mesmo que um dia as deixaria.

Um dia, mas muitas décadas depois, o meu livro Caderno provinciano foi publicado, algum tempo depois de eu já ter publicado vários livros como prosador. A essa altura, ter minha poesia publicada já não me importava tanto, mas um amigo, que gostara de ler aqueles poemas muito revirados e modificados, achava que valia eu procurar alguma editora. Para mim, o livrinho era como aquele poema, "O carvalho", em que o Orlando do romance homônimo de Virginia Woolf não põe fé, mas carrega consigo para onde quer que vá em sua vida de aristocrata inglês ora homem ora mulher em quatro séculos. 

Livro lançado, fiquei surpreso com a boa acolhida da crítica e notei que fora compreendido: um crítico observou que o título era uma ironia, que de "provinciano" não havia nada ali, que meu acidentado livro (várias vezes estive perto de rasgá-lo ou me esquecer vez por todas de sua existência engavetada) era universal. Ele viu em meus versos alguma coisa de Pessoa mais que de Drummond, mas o livro, a meu ver, seguia sendo "drummondiano" em suas asperezas e lirismos banhados de ceticismo. Havia nele muito dos retratos doloridos das paredes de Itabira transpostos para as paredes de Novo Horizonte.

Dos poemas restantes, e mais de outros escritos para a organização, nasceu outro livro de poesia, Florir no escuro, publicado em meio a uma carreira entre vários gêneros, do conto ao ensaio. Com ele, disse a amigos que se encerrava minha obra de poeta, não restava mais poesia minha a publicar.

Creio que a poesia, para mim, foi menos tiranicamente exigente que para muitos poetas, pois se infiltra pela minha prosa de um modo que considero satisfatório e fecundante. Caderno provinciano e Florir no escuro foram lidos por muita gente de um modo que me agrada, mas não tenho a inquietação para escrever mais livros de poesia. Limito-me a admirar os poetas, a resenhar alguns de seus livros, a escrever prefácios ou orelhas aqui e ali. Mas talvez a sensibilidade poética seja para mim a raiz mesma de toda a minha literatura, uma maneira de sentir o mundo com profundo descompasso e vontade de transformá-lo em algo mais humano, mais comovente e apurado, redimido pelo trabalho de caçar palavras exatas entre as tantas impunes, desgastadas, ocas e hipócritas que pronunciamos.



Os investimentos secretos



Terríveis aquelas noites, aquelas horas em que, sem camisa, sofrendo o calor punitivo que impregnava a cidade e não permitia que uma brisa que fosse agitasse as folhas das árvores que eu via pela janela, não havia mulher possível e a mão direita era o único melancólico recurso. Cinzeiros cheios, móveis vagamente percorridos por ratos, os mortos que nunca se iam embora por completo, um relógio que tiquetaqueava denunciando horas e horas perdidas. Os livros, afinal, tão queridos, podiam ser odiados por não fornecerem senão os países imaginários que eu gostaria de percorrer em realidade, cansando-me de tanta substituição da vida sonhada pela vida de letrinhas que os olhos estremunhados deixavam de lado, depois de muito lidas, para trocar pelo sono.

Mas havia jardins reais lá fora e podiam ficar maiores e mais diversos, mais atraentes devido à sensibilidade literária que ia me alertando para jasmineiros, insetos silenciosos, mudo deslizar de fantasmas, mistérios que estavam ali, que aquelas ruas medíocres com placas de nomes sem importância continham, à sua maneira. No microcosmo rasteiro jazia uma universalidade confusa e carente que um dia eu talvez pudesse despertar e tornar inteligível. 

Mas, na verdade, era o Deserto. De dia era o Deserto povoado de comércio, de gente falante, agitada, ocupada em seus objetivos distantes, gente prática e automatizada que com os livros não tinha afinidade alguma nem queria ter. Era o mundo prosaico, aquele que sempre nos quer "fúteis, cotidianos e tributáveis". De noite, o Deserto podia ser aplacado nos bares, em que os fiados se encompridavam e nos angustiavam por nunca sabermos quanto os saldaríamos, de noite até no Deserto podia ser encontrada alguma poesia, o prosaico dissolvido ou ignorado. "Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras". Depois da ressaca, depois da lembrança de um corpo de mulher apenas desejado, as palmeiras indecifráveis seguiam, imutáveis, em seus lugares. 

Fosse como fosse, foram anos de seguidas perdas em que o suicídio só não foi tentado porque o sangue forte e sensual dos jovens tudo suporta, e, afinal, esperanças eram investimentos secretos e a vida haveria de nos fazer alguma espécie de justiça algum dia. Investimentos eram feitos naquela fonte obscura de vigor que podia provir dos céus de tempestade, das estrelas ao Leste de manhã quando voltávamos cambaleando para as terríveis celas caseiras, dos pássaros que cantavam no escuro sem espécie definida e sem gaiola iminente que os rondasse, dos sonhos com a mulher que desabrochava inteira, úmida, única, no solo da mão direita. Pisoteados, éramos terra esmagada que mais fértil e obstinada ficava.

As flores vieram. Não abalaram nem um pouco o mundo que as cercava, solidamente indiferente a qualquer coisa que não sobrevivência e dinheiro para erguer novas prisões, mas vieram. E devem, agora concretas, agora difundidas, chegar a muitos lugares onde tantos outros noctívagos impenitentes atravessam insônias, mas contam com sua leitura sobre algum criado-mudo ao lado de um cinzeiro repleto de perdas. Não podemos contar com outra coisa senão com o poder de fazer sonhar cujos rastros vamos deixando por aí, no vento que bate em árvores que insistem em permanecer acolhedoras mesmo nos terrenos mais secos. Vento e folhas travam um diálogo que aprendemos a ouvir.

 

 

julho, 2020