O grito das sereias



dizem que o mais impressionante das travessias

não é a sede

nem o medo

do depois.

A humilhação 

já não fere

o que não existe

dizem

corpos num barco

de corpos

veias

olhos

pele

pênis

unhas

vagina 

gritos

dizem que o mais terrível das travessias

são os gritos das mulheres

que não ouvi 

enquanto me ofereciam um café para apaziguar minha irritação pelo atraso do voo

a criança soterrada

morria 

ao trancar a porta de casa 

para nunca

chorava o irmão partido

ao vento 

da lama

no frio

de lágrimas 

que gritam

durante as travessias

as mulheres

que não ouvirei

mesmo que um estrondo me leve para o fundo deste oceano onde 

outras

gritavam 

durante o almoço de

batatas assadas

salada

arroz

café sem demora

a carne mal passada

do gritos das mulheres 

que perfuram meus tímpanos 

ensurdecidos 

nesta minha travessia



inútil.







Terror



Ontem eu vi o terror

nos olhos de um imigrante clandestino.

Simplesmente,

o terror


de um barco à deriva,

vida de silêncios

de uma existência usurpada.


Ontem eu vi o terror dos meus olhos

nos olhos de um imigrante clandestino.

Meus olhos menos clandestinos

desembarcados aqui há anos. 


O terror não se descreve.

O terror não se narra.

O terror não se esquece.







Um corpo sobre a areia



Não há poesia no estupro.

Não há poesia no racismo.

No feminicídio não há poesia.

A faca que penetra o corpo de uma mulher. É faca. Em seu caminho de lâmina.

Em sua função de faca.


Não há poesia nos genocídios. 

O tráfico humano de imigrantes na Líbia  não é  licença poética.

Nem tampouco os naufrágios. 


No refúgio não há epifanias.

Há silêncio.

Um silêncio oco.

O silêncio-soco dos que habitam

a espera

à espera 

da pergunta que nunca virá.


A matéria se aborreceu? Virou matéria. 

Na matéria substantiva dos ruídos do mundo perdemos a voz.

Esquecemos a malícia das coisas.


Eu perdi a voz 

ao sair. 


Não houve abraços na chegada. 

Ninguém esperava por mim.

Ninguém me acudiu ao me perder 

pelas ruas de uma cidade 

que ainda não era cidade. 


Ela era um plano.

Um traçado de planos que entre si formavam ângulos, paralelas e

perpendiculares.

À cidade faltava-lhe perspectiva.

Faltava-lhe a profundidade de uma presença

na possibilidade de habitar um nome.

O meu nome.

Ou qualquer um.


Eu não sabia dizer o meu nome. 

Eu não sabia dizer o meu nascimento.

Eu já não sabia dizer meu corpo.


Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.


Eu conheci o silêncio.

Eu me esqueci do silêncio 


ao virar o rosto

ao  indigente que estendeu a mão

à mulher que implorou  

para que a criança não morresse 

sobre a areia. 


Não há poesia no rosto de um indigente.

Não há poesia no corpo de uma criança afogada.

Não há poesia no silêncio de um corpo afogado.


Um corpo sobre a areia

que, entre meus dedos silenciosos,

escorrega

oco.







Conchas



Hoje queria ser concha

para que me ouvissem

mar.


Murmurar segredos 

às conchas do Mediterrâneo

que sorriem

à chuva de homens.


Do fundo de minha cama

ouço as conchas do Mediterrâneo. 


Suas bocas escancaradas

zombam dos pescadores

e dos peixes

cujas entranhas ainda conservam

o olho 

da menina

afogada

e negra. 


Você já ouviu o silêncio das conchas do Mediterrâneo?

E o sopro de uma bomba num mercado de Istambul?

Eu não conheço o zunir do Siroco nos campos de Lampedusa.

Eu não ouvi o grito estrangulado da menina moldava ao ser estuprada

na selva de Calais.


Você já ouviu o silêncio das pedras de Alepo?


O silêncio só existe

na possibilidade da palavra

ou em sua negação.


Do silêncio 

silenciado

resta apenas

o terror


das pedras de Alepo.


Você nunca ouviu o silêncio das pedras de Alepo!



[Do livro Agora vai ser assim. Nós: São Paulo, 2018]




porque eras tu



risco um corpo.


risco teu corpo na espessura das mãos 

que minhas retinas arranham.


teus pés risco,

devoro-os no traçado do voo. 


risco tuas coxas. 

por entre elas arrisco meus dedos 

na desrota de meus lábios.

nos descaminhos de teus pelos

aro todas as manhãs

as entranhas de teu corpo,

quando erro o meu.


se pelo menos meus dedos sufocassem o risco

que repito sob os poros de tua pele! 


ainda me lembro bem do ruído,

do ruído do teu corpo

do teu corpo nu.

me lembro bem do ruído

quando juntos sucumbimos

ao devorá-lo,

o vento.


não fui responsável pelas ondas 

ao recolher o sal de tuas coxas.


pentava a chuva de cílios

ao me render às dobras de tua íris

e dela renascer,

pedra alada.


foi tudo o que do sonho restou.


porque era eu,

porque eras tu.







te amar



te amar para além dos silêncios

nas ausências do vazio 

deste presente contínuo 

esfumaçado.


sem a lembrança de ti 

te amar pelas brechas dos dias,

que de mim te separam,

quando de ti me aproximam 

sem questionar do nosso amor

a vertigem.


do meu corpo amar a queda

pela casa, aos pedaços, te amar 

à procura dos meus rastros, 

de teus passos  que de mim se despedem,

quando em ti já não estou.


te amar e a amar os vestígios do perfume de teu sorriso

que pelos meus póros ainda exalam.


te amar e não recuar 

diante do ridículo de amar

teus ombros

teus braços

as mãos ao tocarem 

a madeira da porta, 

veios em dor ao se trancarem 

ao meu amor.


escombro de minha esperança,

te amar fragmento de mim.

te amar para te perder

a cada instante meu amor:

ouriço a lamber seus próprios espinhos.







teus silêncios



quando decidi investigar os silêncios,

vasculhei o que não recusa 

nem dissocia.

rasurei tuas rimas,

abolindo o metro 

de teus versos.

de teus rastros, em vão, 

interroguei os vizinhos,

suplicando aos cães palavras 

que, travestidas de poesia,

berravam pelas avenidas

loucas heresias.

quando passei a investigar os silêncios

inverti os passos de tuas sombras, 

cantei os restos do teu rosto em ruínas

que todos os dias rascunho 

no respiro das entrelinhas 

de nossas madrugadas ausentes.

quando investiguei teus silêncios 

chorei, enfim, minhas vogais,

silenciei minhas omoplatas 

em teus raios de sol, 

na memória de teus beijos 

céu afora,

para nunca, à espera 

do que me desespera: 

teus silêncios, 

minha espera.







pelas dobras do mundo



como espiar as dobras do mundo

se pelos mares perdi tuas pedras?


por isso erro, meu amor.


erro para remediar esta insaciável vacância

que nada há de preencher.


consciente de minhas perdas,

erro pelas ruas

indiferente ao espaço 

que a mim 

nega teu calor.


em busca de um alhures impossível, 

de outro ser

erro nu,

cego pelos campos,

que se empilham

a cada instante

pelos caminhos que se perdem

por nada,

sem nada.


desapropriado 

daquilo que é resto,

por me saber resto 

erro. 


erro, meu amor. 

pelo que me resta de corpo

na ausência do teu.



[Do livro Inquietações em tempos de insônia. Nós: São Paulo, 2019]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Leonardo Tonus é professor em literatura brasileira na Sorbonne Université (França). Idealizador e organizador do festival «Printemps Littéraire Brésilien», coordenou, entre outros, a publicação de Samuel Rawet: ensaios reunidos (José Olympio, 2008), Chiricú Journal: Latina/o Literatures, Arts, and Cultures (Indiana University Press, 2020) e La littérature brésilienne contemporaine — spécial Salon du Livre de Paris 2015 (Revista Pessoa, 2015. É autor de duas coletâneas de poesia: Agora Vai Ser Assim (Editora Nós, 2018) e Inquietações em tempos de insônia (Editora Nós, 2019).