©monoar rahman rony
 

 

 

 
 

 

 

 

Do anúncio

 

 

É que setembro chegou

e contra todos os cálculos, previsões e intuições seguimos juntos.

E sem que esperássemos você gosta do carnaval

e eu da chuva.

Vamos juntos ao cinema

e você ainda se demora nos letreiros.

A luz lá fora é artificial e nas palavras da tela ainda há fios de sonho.

Mas setembro chegou e seguimos juntos.

Ninguém viu,

nem teu pai, nem teu filho, eu

ou você.

Ninguém viu aquele brilho de manhã ainda seco que anunciava — peremptório:

é que setembro chegou. E seguimos juntos.

Perdemos muito,

no trabalho, na ausência.

Perdemos alguns parentes e, tristemente, outros amigos. Mas, veja, seguimos juntos.

É que setembro chegou.

E em algum lugar alguém poderá dizer

: setembro chegou.

Poderá ser médico, sapateiro, florista ou avô, mas pensará também: seguimos juntos.

E, pois, daqui a pouco, o telefone irá tocar,

a hora do trabalho, com o preço do mundo, cobrando a nossa pressa, e teremos de fazer compras, pagar o estacionamento,

ir ao dentista, levar o filho para algum lugar.

E, pois, daqui a pouco, o noticiário da tevê anunciará um desastre, um escândalo, o gol do ano.

Mas, veja, não me importam as feridas em suas mãos, os sonhos que alimenta.

Não me importa o que pensa da educação ou o tamanho de sua culpa.

Não me importa deus ou o diabo, nem as impressões metafísicas do dia. Veja apenas, repare bem, aquela luz adentrando a sala, quase no corredor. É o que importa:

Setembro chegou e seguimos juntos.

 

 

 

 

 

 

Ouro sobre azul

 

 

Naquela tarde passeamos por entre anjos e demônios

gárgulas de um cimento secular.

De quando em quando me oferecia as mãos como pistas em caminho desconhecido.

Mas logo a miopia dos meus olhos via você se perder em labirintos

de paredes com nomes dentro de outros nomes.

Quando quis te chamar

um jogo de espelhos te repetia ao infinito. Senti o nosso amor tão frágil.

Pequeno.

Dava para medi-lo entre os dedos, entre os intervalos da respiração.

Mas você me sorriu de longe

ante a porta de vidro, toda dourada do poente que entrava.

Ouro sobre azul de seu vestido.

E tive medo dos anjos da entrada.

 

 

 

 

 

 

Esse tráfego doméstico

 

 

De silêncio em silêncio

— em pequenos sustos —

vai se construindo nosso amor diário.

Os cômodos da casa ainda são grandes, como eram grandes os cômodos das casas antigamente.

E mesmo assim nos esbarramos de cômodo em cômodo,

esse tráfego doméstico.

Passa por mim sem me olhar e deixa sua mão aleatoriamente

em algum lugar de meu corpo, propositadamente.

Sei mais de você por esses encontrões e silêncios que o seu sorriso, talhado na lida

do mundo das relações. Seu sorriso:

Pequenos silêncios, pequenos encontros. E o amor se erguendo no ar.

E o amor se entornando no chão.

 

 

 

 

 

 

Palavra

 

 

                                               Para Ana Martins Marques

 

 

Não

Este poema não é um poema de amor

e por isso não deve conter a palavra amor muito menos desamor

que é fome de amor nem pode ser vermelho ou aceso como o cigarro abjeto

que de fôlego em fôlego se queima, como o amor.

De modo algum também é dor que é rima pobre e resto

de amor.

Este poema não tem janelas de vistas por dentro

para fazer voar o amor.

Nem mesmo se tranca

em casa ou se esconde em cobertas

brasas como o cigarro algumas linhas acima. Nem tem abismos,

a morada do amor.

Em hipótese alguma o poema trata do amor

que pensar o amor já é desamor. Definitivamente o poema não fala de amor.

 

 

 

 

 

 

Romance familiar

 

 

Por vezes, é preciso enganar o amor e, com conversa fiada, aprisioná-lo em gaiola, jaula de ferro.

É preciso retirar-lhe a água e intermitentemente

espinhá-lo espetá-lo ignorá-lo.

É preciso contar-lhe histórias futuras mostrar-lhe a ampulheta

ou antes

dar-lhe tudo o que exige e deixá-lo boquiaberto. Surpreso.

Sufocado.

Atirar-lhe na cara impropérios restos de comida

cuspe e mijo.

Por vezes é preciso entregar-lhe nos braços o seu primogênito:

o ódio.

 

 

 

 

 

 

Do relógio

 

 

É costume medir o tempo de namoro, o tempo das relações. Medir o tempo que nos foge entre um e outro aniversário. O tamanho dos filhos, a economia que nos falta.

É costume medir um texto, os limites e laudas, suas bordas. Mas nunca se mede o impacto de um nome.

Nunca se medem os gestos que com o tempo se tornam naturais. O espaço entre um e outro abraço.

Nunca se mede a ausência detrás da porta, a altura do silêncio.

Como nunca fui capaz de medir a palavra amor.

Desconfio que nela haja toda a possibilidade de te encontrar. Nela — nos intervalos de suas letras — teu nome boia na superfície. Nela, nessa palavra sussurro, as paredes são boas de encostar.

Nela, há toda a expectativa de te ver.

 

 

 

 

 

 

Do lar

 

 

A beleza sempre confunde: luz, cores, volumes.

A beleza sempre confunde: palavras, sons e antigos amores.

Não a beleza das coisas mas a própria beleza confunde.

Na sala a luz que banha pela manhã um único vaso de planta.

Na casa da mãe o silêncio da tarde véspera da partida.

Na sua risada desatada por um comentário vago. Como na sua ausência reconheço seu corpo como minha casa.

 

 

 

 

 

Sigilo

 

 

Penso o amor em três atos: Horizonte

Pálpebras baixando

Mãos que se entrelaçam, dançando.

 

Penso o amor em dois atos: A pele suada

O fôlego por um triz

 

Penso o amor em um ato: A palavra que não se diz.

 

 

 

 

 

 

Um menino vê os bichos

 

 

                                               Para Maria Esther Maciel

 

 

Eu, quando menino,

vi entre bois, cavalos, galinhas, o amor natural.

Vi um avô distante,

assoviando um tempo de decadência, por entre os pastos, se perdendo entre os montes.

Vi uma avó manca,

inutilmente tentando preencher os buracos no caminho.

 

Eu, quando menino, queria ser bicho.

E imitava o lobo, uivando na noite, sem conhecer Thomas Hobbes.

Achava que todo bicho era herói.

 

Eu, quando menino, queria ser bicho.

Mesmo diante da crueldade dos homens. Mesmo diante dos gritos dos homens.

 

Eu, quando menino, queria ser homem de grande memória,

para poder lembrar de todo o tempo de um amor natural.

 

 

 

 

 

 

Belo Horizonte

 

 

O que me falta nela é uma grande ponte

que unisse ao menos por uma visada os opostos

que na estrada se dão o norte e o sul.

A cidade de um imenso azul porque aprisionado entre montes mais azul de expectativas.

E que na idade tem a triste sina

de construir e descontruir seu passado. Em terra, em ferro, em ouro.

Ouro sobre azul.

Desterrado.

 

 

[Poemas do livro Para quando. Scriptum, 2017]

 

 

§

 

 

E gritaram: "Loucos! — detrás do muro —,

enquanto o mundo se acaba em desastres,

o homem se revela pérfido, em trastes,

e o que resta é apenas um sussurro

 

dos que enxergam somente o escuro

diante da verdade que se debate,

agoniza e, ainda que não baste,

rangem os dentes — parvos! —, num só urro;

 

Vocês insistem, tolos petulantes,

nesse ato vazio e sem valor?"

Gritaram, gritaram longos instantes,

 

até perderem, sábios, o pudor,

e saltarem o muro, relutantes,

diante de um casal, perdido de amor.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

A lua lá do alto envia mensagens indecorosas aos namorados.

O vento sussurra segredos quentes,

enquanto a noite pede silêncio em gemidos surdos.

E o que me resta é a memória

aprisionada em livros, tratados, teses, ensaios

sobre o amor.

O que me resta é a saudade

e é com ela que me abraço

nesse precipício de hoje.

Ainda tenho em meus dedos a curva de sua cintura,

a textura de sua saia.

Ainda vejo você, parada, aflita,

com o meu coração nas mãos,

 

sem saber o que fazer.

 

 

[Poemas do livro Compêndios de amor. Scriptum, 2013]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Kaio Carmona é poeta e professor de literatura. Pós-Doutorando em Poéticas da Modernidade na UFMG, Professor Visitante no IFMG, Professor Assistente na FAJE. Doutor em Estudos Literários pela UFMG, publicou os livros Um lírico dos tempos (Scortecci, 2006), Compêndios de amor (Scriptum, 2013) e Para quando (Scriptum, 2017). Vive em Belo Horizonte.