III



Era um dia como qualquer outro

Dia de reunião do condomínio

ou de queda de um avião

ou

de ir levar o lixo à reciclagem

E eu

convocado para uma ausência sublime

vestido a rigor

de palidez festiva

a assistir a tudo

mudo (como quase sempre)

livre da miopia

livre do apetite

a pensar na sopa que não pus no frio

a pensar no azedo que me iria acompanhar

por incompetência doméstica

ou memória frágil

decidi faltar sem justificação prévia

àquele futuro pouco gratificante

para quem como eu

tem as narinas sensíveis

e sofre

por antecipação







IV



Não

Não morreste a uma terça

Foste apenas a enterrar

Sou homem-a-dias a part-time

pago a bife do lombo a p a r a d o

e meias-de-leite transparentes

Quanto mais esfrego mais sonho

ser escadaria em pedra-pomes

chegar alto bem alto até a terra

se entranhar nas unhas

e ver o céu florir entre os dedos

enquanto a manhã clareia

Dispo a certeza paralisante

e corro virgem pela morte

adentro







X



Toda a aurora é promessa de juventude

Todo o crepúsculo anunciação da morte

Por muito que abracemos a noite ou a manhã

é sempre tarde para evitar a natureza

A consciência teima

A pele queima

E há qualquer coisa que não entendemos

E é na falta de entendimento que inventamos a linguagem

E quando percebemos que a linguagem é insuficiente

descobrimos no caos a poesia

e nela montamos casa

e pomos mesa para três

à janela







XIII



Plantar a palavra na ponta da língua

à espera de ver florescer uma casa

e uma mesa e um copo sobre a mesa

e o teu braço a estender-me uma ilha


Vou tirar os sapatos


Entre nadar e dançar 

avisto um mar de possibilidades


É bom estar pronto para o primeiro passo

e deixar que os seguintes aconteçam

não há qualquer fatalidade na esperança

os crocodilos moram todos no meu peito







XVII



A palavra enquanto movimento incompleto da língua

— esse órgão que tanto traduz pensamento como sentimento;

é um beco com inúmeras saídas mas raramente a certa

felizmente

O erro é o modo de vida mais saudável para quem sabe

que a morte é apenas uma questão de palato

Tivesse eu engenho para não a enrolar no céu da boca

e seria uma estrela cadente

entre dois dentes assim assim







XX



Caminho na rua entre os demais

à procuro do mistério num olhar a preto

e branco

vejo apenas cansaço

nenhum futuro bem passado

nenhum passado a merecer coração

e um frio que não racha mas mói

Se não tivesse a cabeça cheia de pássaros

e uma árvore a fazer sombra

talvez enlouquecesse

mesmo sem querer

que isto de ser derrubado pelo poema

não é para todos

assim como assim

todos os dias a mesma demanda

Ahh se esta rua fosse minha

mandava plantar nela um canteiro

em lá maior







XXIII



Em dias de tempestade

gosto de abrir as portas e janelas

cá de casa

comportamento que poder-se-ia chamar

de tresloucado

não fosse ele necessário

para ter o que fechar

quando essas mesmas noites

se instalam

no conforto da minha irracionalidade







XXIX



Havia um lírio amarelo na casa

da minha infância

na verdade a casa da minha infância

não era bem uma casa

um jardim, talvez

não:

um quintal

era um quintal, sim

com galinhas e coelhos

e um imponente marmeleiro

havia couves, também, e cenouras

— ou seriam batatas?

mas então qual a probabilidade

da existência deste lírio amarelo?

nenhuma, confesso

desde cedo que imagino coisas

e continuo

a fazê-lo

incontrolavelmente (o corrector prefere

inconsolavelmente)

imagino até que estás aí e me estás a ler

eu sei

eu sei

não precisas de o dizer

eu também







XXXI



A dor é terna

como é terna a queda do cavalo

que um dia imaginei sentado à minha porta

quando chegava da escola preparatória

onde nenhum manual me havia preparado

para o espanto

não de ver um cavalo sentado

mas um cavalo sentado à minha porta

eu que vivi os meus dez primeiros anos

ao lado de um dentista

que vivia ao lado de um sindicato

que por sua vez ficava em frente a um sapateiro

numa rua que se dizia ser da igreja e que

ora descia ora subia

e no adro havia uma carrinha com livros dentro

livros que também nunca imaginei terem sido

escritos

e que nos visitavam todas as semanas

um cavalo sentado à porta da minha casa

é coisa que não cabe em livro nenhum

onde é certo caber a minha timidez

pois não soube articular palavra

quando eu queria dizer

entra

eu tenho um quintal e no quintal

uma árvore que dá marmelos

e uma mãe que faz marmelada

e mata coelhos de uma só paulada

e podemos ser amigos

pois ela a ti não se atreverá

sei que não

confia em mim

eu protejo-te

mas não

entrei a olhar para o chão

à espera que este me sacudisse

para a vida que desejava

o que não aconteceu

quase nada acontecia

a não ser a minha imaginação

como as sombras à noite no meu quarto

que vinham para me engolir

num abismo desconhecido

e terrífico

não só a minha rua descia para a igreja

como o meu quintal terminava numa outra

logo após o galinheiro

foi aqui que assisti à morte de deus

e não

não caiu do cavalo

creio que lhe faltava dentes para tal

o cavalo caiu apenas no esquecimento

de um crescimento precoce e inesperado

que uma mudança de casa provoca

em quem sofre de vertigens

azuis

hoje lembrei-me de ti

mas a minha porta já não é a minha porta

embora a dor seja a mesma







XXXVII



O meu amor emagrece a cada bocejo teu

Queria ser luz na tua vida

mas vejo-me reduzido a candeeiro de pé

o que até não seria mau de todo não fosse

ficares sempre à espera que seja eu a mudar a puta da lâmpada







XXXIX



Lá fora o cavalo

aqui o vazio deixado pelas duas

mulheres que se sentam sempre

lado-a-lado

não sei se irmãs amigas amantes

ou simplesmente colegas 

Lá fora o cavalo sentado

peço o de sempre

a escolha é reduzida para bem 

de todos

não somos muitos para meu bem

mas péssimo para a economia

procuro pensar menos em mim

Lá fora o cavalo sentado puxa um cigarro

por mais que tente não o consigo evitar

incomoda-me o fumo

mesmo quando era meu 

mas isso foi antes da revolução

agora entra alguém para um café voado

a sopa estava morna

não compreendo a indecisão térmica

mais três minutos

Lá fora o cavalo sentado puxa um cigarro

e acena

a cena repete-se 

só que agora está bem quente

demasiado

mas antes assim

Lá fora o cavalo sentado puxa um cigarro

e acena e a mulher bela junta-se a ele

a beleza existe — estou certo disso

só não sei qual a sua utilidade

é necessário que tudo tenha uma?

Lá fora o cavalo sentado puxa um cigarro

e acena e a mulher bela junta-se a ele

e partilham um chá

o meu vinha com duas pedras de gelo

pensei em retirá-las 

mas quebrou-se a vontade entre o vai-e-vem

cremoso

havia outra pessoa

mas também se foi

foram-se todos 

menos eu

Lá fora o cavalo sentado puxa um cigarro

e acena e a mulher bela junta-se a ele

e partilham um chá e um olhar do tamanho 

de um quarto de foder

sinto-me a mais

apesar do vidro



[Poemas do livro Um cavalo sentado à porta, inédito]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


João Pedro Azul. (Vila do Conde, Portugal, 1972). Editor da revista Flanzine e da editora Flan de Tal, autor do Livro do Amo, em conjunto com o ilustrador João Concha (Flan de Tal, 2015). Prepara a edição da sua colaboração com o ilustrador Ricardo Abreu — Um palerma entra num bar e não vê o elefante (Flan de Tal) É formado em teatro (interpretação) e também se dedica à escrita de cena.