Segundo coração



Ela tinha dois corações. Um que batia no meio do peito e outro que pulsava, como um botãozinho, entre as pernas. No começo foi fácil administrar, pois que o primeiro sempre estava ocupado com amores banais de verão, daqueles que vão e vem. O segundo, bem, o segundo, só se ela saísse meio à toa por aí e encontrasse o troglodita do primo, aí ele pulsava feito louco. Quando isso acontecia, ela corria e se trancava no quarto, deitava na cama e apertava com os três dedos unidos aquele ponto latejante. Respirava profundamente e procurava mudar o foco do pensamento. Sempre dava certo. Só que o segundo coração, certo dia, por ironia ou despeito, resolveu tomar as rédeas do próprio destino. E ao sair de casa para ir à padaria comprar pão e leite, lá estava Antônio, o primo lindo, de costas largas e sorriso franco. O segundo coração deu um pulo tão grande que ela se assustou. Ficou vermelha, trêmula feito maria-mole. Não conseguia dar mais um passo. Petrificada, no meio da rua, o segundo coração pulsava tanto que ela achava que todos à sua volta ouviam o baticum dele. Quis dar meia volta, mas já o primo achando estranho, veio em sua direção e perguntou o que havia. Ela não conseguia falar, e as pulsações agora incontroláveis a faziam respirar com dificuldade. Ela estava tão absorvida pelo que acontecia com o próprio corpo que não conseguia reagir, nem falar, nem mudar o pensamento. Sentia que a qualquer momento desmaiaria ou teria um orgasmo. O primo, percebendo que havia alguma coisa errada, pegou-a pelo braço e levou-a para sua casa. Ela teve vertigem, ficou pálida e o segundo coração nada de parar de bater. Começou a suar abundantemente e abriu um pouco a blusa, desabotoou um botãozinho só. Coração disparado, já pulsava na boca, nos olhos, fazia os seios subirem e descerem numa afobação só. Enquanto o primo foi buscar um copo d'água, ela recostou-se no sofá e apertou com os dedos o pontinho latejante, desejando que ele parasse, que adormecesse, ficasse quieto. Nada. Tentou pensar em outra coisa, no dia em que foi reprovada e o pai quase bateu nela, mas nada. O segundo coração tinha vida própria, não cedia aos seus pedidos. Abriu os olhos e deu de cara com Antônio, à porta, a olhar para as suas coxas, onde estavam suas mãos. O segundo coração pulsou tão forte que ela gritou. O primo então ajoelhou-se diante dela e disse-lhe que sabia o que fazer. Ela então pediu, implorou aos gritos, que o fizesse parar. Antônio pediu que ela fechasse bem as pernas. Ela obedeceu. Suava por todos os poros. Ansiava que ele pudesse por fim aquele martírio. Era seu primo, mas que se danasse nome, sobrenome, parentesco, o diabo a quatro, o que ela queria mesmo era se ver livre daquele tormento. Então, Antônio delicadamente, pegou-a no colo e a levou ao banheiro. Ela agarrou-se ao seu pescoço, cheiroso, cheiro de almíscar, aquele cheiro que tonteia e deixa as pernas moles. Antônio a pôs no chão, ajudou a tirar seu vestido, sua calcinha e, então, abrindo o chuveiro, a empurrou delicadamente para baixo da água fria. Saiu e deixou-a de boca aberta, a água escorrendo pelo seu corpo, ralo adentro, enquanto o segundo coração parava devagarinho de pulsar, quase querendo parar de vez e morrer...







Nunca mais



Não mais. Ela pensa assim, não sem antes lembrar todas as possibilidades de fuga. Dentro de si, a angústia de se saber frágil, fraca, dependente.

Não mais. E recomeça o ciclo em que sai, foge, e nunca mais o toque. Refaz todas as possibilidades. Aonde ir. Onde se esconder. Por quanto tempo. A quem buscar. Chora. Os batimentos cardíacos aceleram. Respira fundo. Tenta se acalmar. Fala pra si mesma — enquanto deita no chão feito a imagem de um homem vitruviano — nunca mais. E se acalma.

Ouve o barulho do vento lá fora. Já foi forte. Já reagiu. Um olho roxo. Uma costela quebrada. Uma dor forte no estômago. A desculpa das quedas no pronto socorro. O olhar triste das enfermeiras que não ousavam dizer que sabiam. E que não entendiam.

Para de respirar quando ouve o barulho da chave na fechadura da porta. Levanta-se de um salto e corre em direção à cozinha — seu porto seguro ultimamente. Ele chega, joga a bolsa no sofá e vai até a cozinha. Abre a geladeira e tira uma cerveja. Toma um gole. Longo.

Ela continua calada, de frente à pia de louça, passando sabão nos pratos, talheres, panelas. Quando vê, a esponja cheia de espuma esfrega as costas da mão esquerda com tanta força que a dor a tira do vácuo.

Ele vem por trás e a abraça pela cintura. Ela gela. A dor da humilhação no nó que está na garganta. Ele a puxa pelos cabelos. Com uma mão a faz dobrar-se sobre a mesa. Com a outra mão, sobe a saia do seu vestido.

Ela foge dali em instantes, antes mesmo de ter sua calcinha arrancada e seu quadril machucado. Ela caminha num bosque quente e é primavera. As flores apontam pelo caminho entre o verde das pequenas ervas daninhas. Ouve o canto dos pássaros e o assobio do vento em seus cabelos. Fecha os olhos e ouve sua mãe cantando.

Depois a dor na cabeça sendo pressionada no chão. Sente o vômito subir pela garganta. Depois o escuro. É quando o escuro vem que ela sabe que terminou. É no escuro que ela se protege. Que ela não vê nem a si mesma. No escuro, ela está a salvo porque sabe que terminou. Serão dois dias de escuro. Os dois últimos dias. Daqui a pouco ele irá tomar banho na banheira que ela preparou. Um drinque do lado, como ele gosta. A água estará uma delícia. Não vai sobrar pele sobre carne, nem carne sobre os ossos.








Alcova



Toma-me, pedia ele na hora do gozo, os olhos arregalados, a respiração ofegante, sentindo que não resistiria por muito tempo. E ela negava-se, não por repulsa, mas para prolongar o prazer ao máximo. Apertava as coxas cada vez mais, instigando, a boca entreaberta, os olhos vidrados.

Toma-me, pedia ele desesperado, ansiando pelo alívio esperado. Ela deixou-se molhar, abriu suas pernas e a flor, umidificada, abriu suas longas pétalas vermelhas.







Sete véus



Na penumbra do quarto, ela o esperava completamente vestida. O pudor a impedia de olhar a nudez de seu homem e de mostrar a dela pra ele. E na hora do amor, atrapalhava-o com tantos tecidos, véus, lençóis e cortinados soltos pela cama e sobre seu corpo. Ele sempre se perdia nesses labirintos e nunca se achava onde queria estar.

Então, um dia, como Teseu, armou-se de barbante, de tesoura e agulha, cortou e costurou mortalha em seu próprio corpo e enterrou-se vivo dentro dela.







Lilith



Ela sempre quis ser possuída em pé. Perto da janela do quarto que dá para o lado da rua. Sempre o esperava ali, completamente nua, a pele branca reluzindo contra a luz da vidraça. Queria fazer amor com ele, de pé, não embaixo do corpo dele, subjugada, mas como Lilith, de igual para igual. Ele, entretanto, nunca percebia sua fantasia. Arrastava-a para a cama, para o sofá, para a mesa da sala.

Um dia, antes que ele chegasse do trabalho, tomou um longo banho e esperando-o ao lado da janela, criou raízes. Ficaria para sempre no Paraíso.







O sal da terra



Diziam que o chão era duro. E seco. Nada sobreviveria ali. Mas ele plantou feijão e milho. Não vingou. Não desistiu. Plantou arroz na vazante e passava o dia a espantar passarinhos. Teve vontade de escrever. Escrever salvava qualquer um das mesmices da vida. Escrever era como plantar, talvez até melhor que plantar. Pediu ao avô. Chorou. Pediu de novo. Foi mandado ao roçado nem bem o sol assolou no horizonte. Matutou o dia inteiro com os olhos secos d'água e a garganta ardendo de rancor. Uma raiva estranha, uma dor no peito. E a vontade de escrever, que não passava, que parecia plantada dentro dele. Queria escrever, precisava escrever. Riscou um J na areia. Letra mais linda do mundo. Letra do seu nome. Plantou a letra no chão, cobriu com um punhado de sal. Serenou a noite toda. Acordou lendo o branco da madrugada, os cemitérios dos bois, o rangido da porteira. Botou o bisaco nas costas, riscou uma linha no chão e cruzou o Mundo.







Mil anos



A primeira vez que viu o santo, desprendeu-se dele a carne dos ossos. Começou a ver imagens fluidas, fraturas expostas, pestanas secas. Via o que os outros apenas imaginavam. Depois que viu o santo, perdeu-se dentro do sagrado, ele, que era apenas assombro, que se trincava em ruídos, que escondia-se nas funduras das valas, agora atolava-se em seu próprio terror. O santo subtraiu-lhe sua infância quando ousou erguer seus olhos ao altar. Ao sair da capela gritou desenganado. Havia envelhecido cinquenta anos. Sessenta. Talvez oitenta. De repente, ouviu uma voz. De Deus. Talvez tivesse, também ele, entre o horror e a fé, se tornado um santo.


 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Jeanne Araújo nasceu em Acari, seridó potiguar, em 1968 e mora atualmente em Ceará-Mirim/RN, onde é membro da Academia Cearamirinense de Letras e Artes (ACLA). É professora, poeta e escritora. Formada em Letras, com Especialização em Literatura e Ensino. Publicou os livros de poesia Monte de Vênus (edição da autora), Corpo vadio (Editora Penalux) e a novela Cercas de pedras (Editora Penalux), além do romance Combustão (Penalux) em parceria com o escritor e jornalista Cefas Carvalho. Integra diversas coletâneas e antologias de concursos literários regionais e nacionais.