MARIAS DE MIM



Muito prazer, sou Maria

Maria dos Santos, Maria Pereira, Maria do Carmo, 

Maria da Consolação, de Perus, de Guaianazes, 

Maria da Penha


Muito prazer, sou Maria

mais uma

filha de Maria, mãe de deus, a Virgem

mas gerada por uma ex-Santa 

nasci do pecado, como as demais:

a saia que se levanta

o gozo aliviado de um José cansado

o coito apressado entre dois animais

Não fui eu a escolhida de deus e por isso ninguém adivinha meu nome

Dentre os versos sagrados sou qualquer mulher

Maria qualquer 

entre a lida e a fome


Muito prazer, sou Maria da Graça

— sou ela, menina, que vem e que passa

a caminho do mar...

Maria da Graça faz graça de graça

e a sua desgraça a revista não conta

Maria da Graça: junto!

Maria da Graça: quieta!

Maria da Graça: senta!

Senta, senta, senta,

mexe, desce, sobe, rala, remexe,

sacode a bundinha,

sacode a bundinha,

faz graça

Maria da Graça, me abraça

merece um carinho!


Muito prazer, sou Maria das Dores

A culpa é de Eva que quis conhecer

que quis entender

esse foi seu pecado

marcado e rasgado na carne e no sangue:

parirás com dor


 [E dói, dói, dói que te acaba, dói que te arrebenta, dói muito mais do que
um macho aguenta, mas babando a tormenta eu grito, e meu grito aumenta essa força cruenta de mulher que é bicho: sangrando, mordendo meus lábios, 
abrindo meus nervos, contorço os pecados, e então eu percebo: a dor não
machuca, mas acalenta! Agora sou fera que tudo suporta, que tudo aguenta.
E no auge do esforço,  parindo a criança só posso pensar, entre ódio e esperança: chupa essa, deus: estamos rindo, Eva
e eu, estamos rindo da dor que nos deu!
Eu gero no ventre uma vida e sinto mexer o amanhã na barriga — criar alguém vinda de costela é para os fracos! Em nossos braços um rebento morno nos mostra
que dentro de nós cabem todas as auroras]


Muito prazer, sou Maria Aparecida.

Não:   Maria des-

aparecida

violada, rasgada, torturada e

esquecida dos livros de história

Gritei contra as ditaduras

chorei em celas escuras

aguentei faltas e dores

implorei por piedade a cruéis torturadores 

Consta nos autos: desaparecida

Mas estou aqui,

tão morta como renascida

arrancando a casca de cada ferida

que essa pútrida pátria ainda tenta esconder

Eu vivi a história

eu sou a História

e não posso morrer


Muito prazer, sou Maria do Socorro

Maria que pede socorro

na cozinha, no chão, na casa do cachorro

na chuva, em silêncio, gritando no morro

— sou Maria, cicatriz e olho roxo:

caí da escada

E você finge que acredita

que a ferida maldita

não veio de uma mão pesada

Você finge que não vê que eu peço

socorro sem dizer

e aumenta o volume da tevê 

enquanto meu grito cresce e invade

todas as esquinas da cidade 


Muito Prazer, sou Maria dos Prazeres

A Maria que goza, a Maria que dá

a Maria que come

e que sabe como se faz

Maria sem-vergonha, Maria vai com as outras

e com os outros e com quem quiser

(ao mesmo tempo, quem sabe)

Sou dada, rodada

maldita e fadada

ao amor

Sou a Maria que se toca, que te toca

que morde a boca

Maria louca, Maria louca!


Muito prazer, sou Maria

Maria de Marias

com Marias

por Marias

Ave Maria que voa, voa, faz ninho, revoada

Ave, ave Maria eu sou

Maria Alegria, Maria-Maria, Maria de luta

Maria Coragem, Maria do Mar, Maria Maré

branca, preta, amarela, vermelha

Maria arco-íris

Maria filha, Maria mãe, Maria irmã de todas as Marias

Maria apenas

Maria tudo isso

Maria de Maria por Marias com Marias

Maria somos


Muito prazer.







A ESCURIDÃO É FÊMEA



O meu deus é fêmea 

E se chama Escuridão 

— só a Ela presto reverência.


Nas fossas do oceano onde nunca chegas 

enfeitada por vidas de que não suspeitas 

Além do céu escuro que mudo contemplas 

com sua face negra adornada de estrelas 

No mais íntimo núcleo de toda matéria 

pele salpicada de átomos e ausências 

Está a Escuridão, minha deusa fêmea 

— só a Ela presto reverência. 


Em derredor do fogo e no abismo que enfrentas 

Deslizando fatal na sombra que carregas 

Se as pálpebras piscam, sonham, choram ou cegam 

E em teu útero, boca, cérebro e artérias 

a Escuridão infalível flutua e flerta 

pulsa irresistível minha deusa fêmea 

protegendo a luz em seu manto de trevas 

— só a Ela presto reverência. 


Sob sua pele corre a substância espessa 

que tudo faz crescer e assim tudo alimenta 

os fetos, os segredos, as plantas, a seiva 

a matéria da vida em sua causa perfeita 

Mãe do Desconhecido e sua natureza 

Mãe do Princípio, te trago esta reza 

Eu te glorifico, minha deusa fêmea! 

— só a Ti presto reverência. 


A deusa Escuridão cabe inteira, imensa 

no interior de uma simples caixa pequena  

Mas se abres a caixa para conhecê-la 

Se espias, para capturá-la em uma fresta 

ela assim desaparece, estará desfeita. 

Deixa-se guardar só por quem não a deseja 

Deixa-se saber, mas não se pode entendê-la 

A Escuridão é fêmea, então só se apresenta 

a quem pode a ela prestar reverência. 


À noite é permitido invocar sua presença

e sorver o silêncio de sua densa selva 

se aceitar embrenhar-se na própria cegueira 

e firmar no breu um pacto a que te sujeitas. 

E ela cobrirá teu coração tão lenta, 

calidamente, tal musgo cobrindo as pedras 

e cobrirá de noite os teus olhos apenas 

até que de posse da tua visão aberta 

enfim possas ver tua imagem imperfeita. 


Minha deusa é fêmea 

Fêmea feita Escuridão 

e só a Ela presto reverência.







A IMPOSSÍVEL CANÇÃO DE NINAR  



(Inspirado em Georg Büchner)



era uma vez uma menina que não se chamava 

que ninguém chamava

(ela não tinha nome)

uma menina que não morava em nenhum lugar 

ela não estava nem permanecia 

ela não tinha vizinhos não tinha pai nem mãe 

uma menina que não nasceu, não foi cuspida, esculpida ou

escarrada, nem no lixo nem no mármore 

era uma vez uma menina que não respirava, que nem o ar lhe passava

que não dizia nada não ouvia nada

ela não tinha voz nem ouvidos

uma menina que não era menina 

uma menina que não dormia nem acordava

ela não tinha olhos ela não via nada ela nunca viu um chapéu

nem um passarinho nem sapatos nem criança

uma menina que não tinha tripas 

não tinha estômago

nem rim nem coração


ela não tinha nada

uma menina que era um monte de nada e de nunca 

nada e nunca

dentro dela num monturo

no meio do dentro que não tinha fora 


era uma vez uma menina que não chorava

não brotava água dela

uma menina que não ria não tinha força para um espasmo

de gargalhada, não lhe saía força

uma menina que nunca incomodava

ela não tinha mãos nem pés nem cabeça

ninguém via


mas pairava, uma presença 


menina-latrina

menina-asfalto

menina-caminho

menina-da-guia

Menina?


ela nunca viu a praia nem a rua

nem a lua e nem o sol

(será que a praia a rua o sol a lua viam a menina será?)

ela não tinha brinquedo nem amigo

ela não ouviu uma história nem música ela nem sabia

o que era música ela

não ouvia história ela não tinha

história nem estava numa

(só nesta, agora)


era uma vez uma menina que não olhava pela janela ela

não tinha casa nem quarto e não tinha portas

ela não ia nem vinha

iam e vinham e passavam por ela e ela nem

e quem passava nem também 


ela não comia não tinha dentes nem saliva

uma menina toda vazia que não parava em pé 

ela nem tinha pés

uma menina que era uma fome


ela nunca gritou nunca gritava. nada vibrava nela 

ela não via a cidade se movendo nem roupa no varal nem

trem nem bicho nenhum nem

nuvem nem corda nem terra nem margaridas nem 


uma menina que era uma coisa — se você visse, uma coisa!

mas era coisa sem nome sem forma sem cheiro sem nada  


era uma vez uma menina que não tinha nada uma menina que não tinha nome 


e não foi aí que nada

não foi nada  

nada veio 


era uma vez uma menina-paisagem, mas os olhos não viam

era paisagem de viagem, que corre e desmancha, desmancha

e vai embora, e vai e nunca se pode lembrar 

uma menina que se confundia com tudo o que não fosse menina


foi uma vez. uma menina que continua aí tão sem, nas outras

ela não termina 

era uma vez uma menina que não tinha começo 

era uma vez a menina que não tinha mais fim







CARNE VIVA



exaurida, quase habituada

sinto-me latejar 

incessante, continuamente 

examino, quase conformada

meu corpo exausto 

a pele intacta 

e tão simples

como se fosse óbvio

cravo as unhas nas coxas trêmulas

a perscrutar minha carne

minha carne tão 

desejada, molestada, rígida


abri-me cortes

penetrei meus dedos

tateando essa matéria amarga

senti seus espinhos cravados, suas ulcerações

dentro dos braços dezenas de digitais sob a epiderme

lembram-me de que tenho sido mulher


abri-me cortes

e vi

do avesso

minha carne manchada da gana dos homens


abri-me cortes

e esperei

escorrer

a espessa seiva do desejo


avancei rasgando com as unhas   

um corte fundo  

dos braços ao peito   

e enfim arranquei seu órgão pulsante:

um pequeno pássaro aceso e palpitante

que tomei entre minhas mãos

muito frias


sondei sua fronte pequena e inútil de ave

examinei suas asas desprovidas de voo

suas asas inertes e úmidas de sangue

a reter voos impossíveis

tornou-se pálido

pálido, ofegante

e seguiu arfando ali, abrigado nas minhas garras

até morrer


contemplei-o, pétrea 

(no peito um buraco aberto)

contemplei-o demoradamente 

e pude fixar nas retinas 

o instante exato de seu passamento


fluido 

magnífico 

perfeito    


longamente observei-o 

sem volúpia, medo ou piedade 

como quem distraidamente estuda o ser 

e o deixar de ser 


e entontecida com o odor   

doce e incômodo que se desprendeu dele 

eu 

sangrando como uma fera 

com o peito oco à espera do sol que caía 

prostrei-me frágil

entregue

diante do anoitecer 







CRIANÇA MORTA 



Escrito ao observar a pintura homônima de Cândido Portinari, 1944.

Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças
- Carlos Drummond de Andrade 



Em que observamos os ossos de que todos somos feitos 

mas apenas alguns são feitos só de ossos 

Não há rostos, senão lágrimas, muitas 

lágrimas 

chovendo de olhos nenhuns 

buracos feitos de anseio —

um choro infinito que o solo seco chupa

nunca se encharcando, nunca

jamais nada brotando dele

 

A pequena família jaz viva sob o sol 

Espinhos crescem em suas peles de cacto 

sem machucar ninguém 

Um menino desfaz-se, minguando no vento 

A espera, mesmo assim desfigurada 

talvez os mantenha vivos, a espera 

imóvel e pouca 

que carregam em murchas trouxas de trapo 

A pequena família jaz sob o sol, viva 

Já o bebê jaz um tanto mais 

morto no colo da Mãe 


Mãe, não vejo teu rosto, Mãe, mas sei

do meu rosto no teu 

enterrado no vácuo do peito 

onde ecoa esse grito rouco da falta de tudo 


Teu filho está morto, Mãe, está morto 

e quantos meninos morreram nele! 


Teus braços carregam agora 

o corpinho leve da tua cria amada 

o corpinho torto de mil toneladas 

Ninguém mais pode carregar teu bebê 

Esse que é feito de ossos 

esse teu resto de filho 

tão pouco, tão seco, tão oco 

pesando feito o mundo inteiro 

sobre teus joelhos rachados 


Mãe, teu rosto sem olhos já não pode ver 

esse rio que sai dele, esse rio 

que te escoa, esvazia e dissolve 

e te transfigura em inundação 

dilúvio e enchente de desespero 


Tudo o que existe e te falta 

tudo o que se sabe, mas não conheces 

tudo o que reluz e nunca verás 

tudo 

lateja agora no teu corpo árido 

que em prantos observo e reverencio


Teus nervos expostos ao vento 

teus ossos trêmulos 

teu útero, sobretudo teu útero 

escorrendo um sangue ralo e cinzento 

que nunca se estancará 


E teus braços, antes força e medida da vida 

convertem-se agora em túmulo 

desse escasso fruto da ausência 

a quem a terra não dará sepultura 

Teu rebento 

morto de morte matada 

Mãe 

pelas mãos assassinas dos donos da fome 


Mãe 

eu peço perdão a cada um dos teus pés 

fincados, estacas, nesse barro seco 

Perdão, que não posso banhá-los 

e aliviar por sequer um segundo 

a dor lancinante que te move os órgãos 

Perdão, Mãe 

que não posso dar o pão nas bocas dos teus filhos 

(e são meus filhos que te imploram, Mãe 

que é em ti mesma todas as mães!) 


Perdão, que só posso observar tua aflição 

e senti-la atravessar minha carne rubra e salva 

A agonia dos nãos que tens que lançar 

como punhais dilacerando 

as barriguinhas vazias 

as cabecinhas tontas de vontade 

os olhinhos parcos 

onde tudo falta, mas 

que ainda choram, Mãe, ainda 

choram 


Deixa-me lavar teus trapos, secar o pranto, te por ao colo 

Deixa-me dar de comer às tuas crias feias 

ressuscitar tua criança 

Deixa-me olhar teu rosto 

para sempre escondido no peito cavado 

cavado pouco a pouco 

pela pá de mil dias 

sob mil sóis terríveis 

num céu sem piedade 


E eu, tão longe no tempo e no espaço 

não posso nada, nada 

sequer espantar os urubus 

que espreitam 

Posso somente distinguir, na engrenagem do mundo 

os negros urubus humanos 

que se alimentam da tua miséria 

da nossa miséria 

que têm no estômago 

a carne fresca que te falta agora 

Mãe toda feita de ossos 


Diante de ti, Mãe do mundo 

só ofereço minha revolta 

e a promessa que dela deriva: 

de cravar as unhas 

e rasgar a tela 

e libertar teus gritos, gemidos terríveis 

que ocuparão cada canto da Terra 

até que os todos os mortos sejam vistos 

até que todos os vivos se levantem 

até que a eles todos se unam em coro 

até que toda a dor se refaça em canção 

A canção que embalará teu filho 

a canção que ninará todos os filhos 

a canção que fará, finalmente, despertar os homens 

e adormecer as crianças 







A-V-E 



minha atual palavra favoritíssima 

como não percebi antes 

que é a mais linda de toda a língua 

que deixa linda toda parte onde se entranha 


ave, nave, haver, ave!, ave maria, avenida 

aveludada, a ver navios, avesso, aventura 

suave 


(repara como, com ela, toda as coisas criam asa) 


AVE:

a anti-eva 

palavra ch 

ave 

pa 

lavra 

mulher


 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Isabela Penov é poeta, atriz e educadora. Lançou, em 2019, seu primeiro livro, Aves Marias (ou A Revoada), pela Editora Patuá.