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Já estou ficando velho e ainda não conheci a China. Desde os vinte e poucos que me prometo essa aventura à terra dos criadores do macarrão e do I Ching, sem jamais ter satisfeito o compromisso. Até hoje, o máximo que cheguei perto, se é que se pode chamar a isso de "perto", foi uma ida à Europa, quando conheci apenas Paris muito rapidamente, pois tinha compromisso em Nova York dois dias depois. Porém, ainda não perdi a esperança de um dia sair mundo afora vendo o que ainda não vi e experimentado novas sensações, da mesma forma como, durante a juventude, arrisquei a vida ao pendurar-me, segurando firmemente uma pesada filmadora, num galho que se projetava sobre os 600 metros de fundura do cânion do Itaimbezinho, ou quando presenciei o pôr do sol extraordinário da confluência do Rio das Velhas com o São Francisco.

O sonho do meu compadre Augusto sempre foi o de chegar à Índia, a mística terra das mulheres de véus e piercing no nariz. Augusto desembarcou em Nova Délhi louco para curtir um mundo novo. Só que foi obrigado a cumprir quarentena no hospital do aeroporto, posto que tinha desembarcado antes de cumprir o prazo previsto para validar a vacina que havia tomado aqui. Teve de aguardar sete dias hospedado numa enfermaria malcuidada, comendo o pão que algum deus hindu, decerto equivalente ao nosso diabo, amassou.

O prazo venceu num domingo à noite. Augusto César Pinho Pinheiro apresentou-se imediatamente à portaria de malas prontas. O porteiro indiano, sem sequer se desvencilhar da leitura de um jornal, informou que só na segunda estaria presente o funcionário que poderia desenjaulá-lo. O compadre virou bicho, exibiu o papel contendo a data do fim da quarentena, brandiu o passaporte, ameaçou chamar a embaixada, exigiu um advogado. Tanto aprontou que enfim tirou o sujeito da atitude displicente e o compeliu a pegar o telefone e falar com algum superior. Conseguiu sair. A viagem, porém, já estava comprometida. Depois de tantos dias curtindo um ambiente infecto em vez do luxuoso hotel que havia reservado, e de haver curtido um obrigatório frango ao molho de um curry malcheiroso com arroz empapado, servido todos os dias, em lugar das previstas iguarias da apurada gastronomia indiana — quiçá servido num belo restaurante e trazido por morenas de piercing — estava louco para dar o fora. Não só do hospital como do próprio país. Até hoje, muitos anos depois da malfadada aventura, ainda não consegue recordar a Índia com prazer. É um raro exemplo de quem conheceu a terra dos sonhos em meio a um pesadelo.

No entanto, não será por causa de histórias como essa que deixarei de prometer a mim mesmo que viajarei a ver as terras com que sonho. Apesar de que, brasileiro que sou, possuo a tendência de deixar tudo para a última hora. Sendo assim, tenho de me decidir antes que o sempre propalado fim do mundo seja concretizado. Do contrário, será difícil achar passagem com tanta gente tentando realizar tardiamente, e ao mesmo tempo, a viagem de suas vidas. E acabarei restando por aqui mesmo, sonhando sonhos previamente desfeitos, enquanto o sol levanta na China e a lua despenca do céu arrebatando os jardins do Taj Mahal.

 

 

 

 

dezembro, 2020

 

 

 

 

 

Nota da editora: essa crônica foi publicada no livro Teatro dos Esquecidos, de Guttemberg Guarabyra (Londrina/PR: Thoth, 2020, 242 págs.). Clique aqui para a versão em papel. Clique aqui para a versão em e-book.