"Você é heavy metal ou bundão?"

Bons tempos. A letra manuscrita revelava simpatia e timidez. "Mandaram entregar", explicou o garçom.

O papel rosa, de embrulho, tinha o formato irregular do papel que a gente rasga apressadamente só para escrever um recado rápido. No caso, recado de uma só frase: "Você é heavy metal ou bundão?". O garçom continuava perfilado à espera da resposta. Escrevi, num guardanapo, que era meio Beatles, meio Beto Guedes, e ele se foi com a resposta, sem se dirigir a mesa alguma, de modo que eu não descobrisse o remetente. Confesso que não gostei de minha resposta açodada.

Gostei mesmo foi da pergunta genial. Estimulava respostas inteligentes, mexia com preconceitos, comportamentos. Enfim, forçava o destinatário a formular, num pequeno segundo, alguma grande definição.

Isso aí foi no Rio. Meses depois, em São Paulo, compareci a uma entrevista na rádio Bandeirantes. No meio do bate-papo, tive a ideia de fazer aos ouvintes a mesma indagação e esperar deles as respostas. A entrevista, que era para ser uma coisa rápida, acabou durando mais do que o tempo previsto tal a quantidade de réplicas que íamos recebendo. Pedi permissão para telefonar a algum amigo e testar a questão — e a resposta — no ar, ao vivo.

Permitido o telefonema, liguei para o maestro Rogério Duprat. O grande guia da tropicália não titubeou: "Sou bundão!". Na mosca. Até ali todos haviam manobrado introitos elaboradíssimos antes de chegar à definição que interessava. Mas a melhor fora despachada na bucha, sem grandes sofismas. Segundo o maestro, na base de cada personalidade habita sempre uma variante de heavy metal ou de bundão. Daí terminou o programa e fui embora.

No dia seguinte, logo que acordei, veio-me à lembrança o papel cor-de-rosa. E, vez por outra, ainda vem, tantos foram os anos que o guardei comigo.

E, sempre que me recordo do caso, penso que, se acontecesse de receber a pergunta novamente hoje, daria a mesma resposta de Duprat. Ora, bundão sugere um homem de paz, satisfeito consigo próprio, e eu juro que me sinto assim. Ou, pelo menos, é assim que gostaria de me sentir sempre. Porém, nada impede que os heavy metal da vida sejam igualmente felizes. Desde que tanto um quanto outro saibam conviver pacificamente, evitando que a vida lhes pregue alguma peça diferente daquela de brincadeira postada no papel cor-de-rosa.

De outra vez, também no Rio e em outra churrascaria, resolvi submeter a mesma questão a Djavan. Quando o divisei em uma mesa, no restaurante lotado, mandei-lhe o mesmo torpedo: "Você é heavy metal ou bundão?". "Sou caipira que nem tu", enviou de volta. Tinha me visto. Não valeu. Só queria saber como ficaria se fosse apanhado na caçoada, como fui, e descobrisse a seguir que o torpedo cor-de-rosa havia sido disparado por Tom Jobim, que caiu na gargalhada ao me assistir descobrindo que tinha sido ele o autor da brincadeira.

Bons tempos. A saudade mandou entregar esse bilhete.

 

 

 

 

julho, 2020

 

 

 

 

 

Nota da editora: essa crônica foi publicada no livro Teatro dos Esquecidos, de Guttemberg Guarabyra (Londrina/PR: Thoth, 2020, 242 págs.). Clique aqui para a versão em papel. Clique aqui para a versão em e-book.