©fernanda lemos
 

 

 

 
 

 

 

 

À MARGEM DA ÁGUA SALGADA



À margem da água salgada

sobre milhões de grãos de areia e

sob um céu que escurece lentamente

eu te interrogo em silêncio,

o silêncio de nossos olhos,

nossos corações,

nossas alcunhas —

quase não precisamos

de palavras.


A noite que chega 

vibra nossos sonhos,

nossas aflições sobrenaturais,

nosso pulsar da memória —

quase não precisamos

de palavras.


Nesta cálida noite

sob estranho magnetismo

quase não movimentamos

nossas bocas,

nossos corpos —

quase não precisamos 

de palavras.


Estamos a um passo

do nunca suficientemente louvado,

nunca inteiramente alcançado,

silêncio essencial.







OUTONOS



Entro na casa

Envolta na penumbra.

Removo a poeira acumulada

Infiltrada 

Através de fissuras microscópicas

Não visíveis a olho nu

Durante os outonos

Quando se agitam as árvores

E se soltam as folhas.


Por trás desse movimento

Interpreto a mensagem,

O atributo maior 

Do encontro solitário,

Revelador —

Descubro que sob o pó

Há um brilho inesperado

A refletir meu espanto —

Sob o pó

Me escondo.







NA PRIMAVERA



Na primavera 

sou a flor que nasce,

floresce e 

preenche com sol

— com seus raios 

rasos e amarelos —

cada fragmento da existência,

tornando este o sentido da vida.


Num ponto distante,

indevassável,

me planto, finco raízes

para sorver 

o alimento da alma,

ouvir a música,

o vento,

a terra que crepita

durante gerações

e subsistir

indefinidamente,

me recriar

perpetuamente

como herança 

de uma química milenar.







O MOMENTO SUBLIME



Descíamos pela trilha

Após longa caminhada

Exaustos e sedentos.

Eu trazia lírios na mão abrasada…

Descíamos como Absalão desceu a Jericó

Ao longo do vale do Jordão.


Caía a tarde de um dia de verão.

O vasto céu estava tão próximo

Que eu me entristecia

Diante do adiantado da hora.

As flores exalavam um perfume

Que embriagava.


Sentamos num banco de pedra

Para que o momento sublime

Não nos escapasse.

Ali assistimos imóveis

Ao morrer de mais um dia e

À chegada da noite prateada

Num encadeamento impreterível.


Eu me pus confiante

Depois que vi a lua

A iluminar o caminho 

Que restava percorrer.







RÉQUIEM



Somos luz em meio a toda penumbra

celebramos com um réquiem —

não a morte —

mas o renascimento.


Quando nos reencontramos

sinto como amo tudo à minha volta,

o que basta 

para fazer da vida algo sagrado.


Sei também que nada

do que foi realizado até agora

está à altura de tudo 

o que há por fazer.


A arte é longa, a vida breve.

Iluminadas são as palavras dos destemidos,

dos que seguem em frente

e fazem a leitura da Alma:

nossas vidas são o interminável rio

construídas com encontros e separações —

estamos, não mais estamos para o outro.


Para isso nos arriscamos na correnteza

e mantemos acesa a chama da existência, 

que corre sobre o leito de pedras —

pelo risco de não mais renascermos

sem sua travessia.







GERMINAR



Sou como a luz branca,

Esmaecida, 

Que tem no mundo apenas o límpido sol

Para refletir.


Quando no campo aspirei a seiva,

O aroma da terra fértil

Me embriagou

Perdi os sentidos —

Quis descansar ali pela eternidade.


Não fora um mensageiro

Que do além mundo veio

E sussurrou em meu ouvido:

Ergue-te e caminha em meio aos ásperos espinhos,

Atravessa os pântanos lodosos…,

Não teria notado uma centelha riscada no céu

A me enviar seus lampejos.


Levantei-me com a paz no espírito,

Germinei como o caule do trigo, 

Áureo — 

Cheguei a tempo de dividir o pão.







PACIFICADA



Já molhei a tenra plantinha,

limpei a mesa 

das migalhas do pão 

e varri 

os pelos dos bichos.


Esbocei uma carta ao mundo

e me sinto em paz:

há uma luz suave onde estou,

certa quietude que faz estremecer

há voo de pássaros no céu,

a brisa tem o perfume da eternidade —

tudo é símbolo,

tudo conduz ao coração

do que parece misterioso,

por isso

apuro levemente os sentidos.







NOS PERDÍAMOS



Num passado remoto —

não éramos sequer nascidos —

nos deslocávamos por lugares ermos.


Ardemos na vastidão dos desertos

e suas temperaturas extremas,

desbravamos a natureza inóspita

das florestas úmidas e fechadas.


Nos perdíamos sempre

por nos faltar a percepção do horizonte:

o espaço infinito se incendiava

em nosso corpo finito.


A natureza imensa,

a fúria de seus elementos

que não sabe do que é capaz

deflagrava em nós

uma vulnerabilidade assombrosa.


Perdemos o rumo de casa

estávamos sós —

queimávamos durante o dia

e soluçávamos à noite.







EU



Sem pensar no regresso

O êxtase irrompe

Como chuva no deserto

Aflora num caudal

Com o contato dulcíssimo

Redentor

Das emoções latentes.


Apesar das estações trocadas

Da hora adiantada

Entrego-me a ti

Por breves, impermanentes dias

E efêmeros momentos de paixão

Quando mergulhamos

Em confidências impensáveis

Que preservo com tenacidade,

Sem arrefecimento.


Eu,

Que de tão longe vim.







NO CÉU DA PRAIA



O tédio não virá

mas sim o canto triste

que conhece o caminho

para chegar onde estou.


Um lamento antigo me envolve

junto a uma profecia 

edificada com sinais —

Deus há de me salvar. 


A esperança dilata meu coração:

de seu posto

um salva-vidas apita furiosamente

e um grande pássaro metálico 

sobrevoa o céu da praia

num vai e vem incessante.


Dizem que para salvar alguém que se afoga.







UTOPIAS



Mais forte a paixão

Do que a omissão

Num dia dado

Não voltarei de um sonho,

Será longa a viagem

Que não permite estar

Presente ao despertar.


Num dia qualquer

Tomarão o café da manhã sem mim —

Não comparecerei quando amanheça o dia,

Não chegarei antes de atravessar a planície

E ter colhido flores selvagens do campo.


Mas comigo trarei o brilho das estrelas,

O eco do canto dos pássaros,

Estarei leve como a brisa da manhã

No dia dado e reencontrado.







ETÉREO



Na flor que perdeu as cores

e o perfume

desvela-se a face de deus

a reiterar:

nada é para sempre

e tudo é ilusão.


O que permanece —

o amor imponderável —

prescinde

de todo elemento supérfluo:

é sentimento tão etéreo

e movediço —

que dele

nada se pode colher

sob o risco de despedaçá-lo.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Fany Aktinol nasceu no Rio de Janeiro em 1953. É escritora e bibliotecária, autora de Um atalho entre o sol e a solidão (Ibis Libris, 2004), O sol se põe em meu corpo (7Letras, 2009), O tom da infância (7Letras, 2010), Sob o esplendor de milhares de sóis (7Letras, 2013) e Para onde vou (vou sozinha), também pela Editora 7Letras, em 2013. Tem poemas publicados em várias revistas eletrônicas. Atualmente mora na Califórnia.