Asilo Arkham (Redundância #2)
a Paulo Leão
mudamos de casa
mudamos pra a casa ao lado
mudamos pra galeria em frente
mudamos pro Bairro da Saudade
mudamos pro Cemitério da Paz
mudamos de Curral del Rey
mudamos pro andar de cima
mudamos pros fundos
mudamos a cor do cabelo
mudamos de ramo
mudamos de telefone
mudamos e não te convidamos
mudamos de sexo
mudamos de droga
mudamos a roupa de cama
mudamos a mobília da sala
mudamos pro Asilo Arkham
mudamos enquanto era tempo
mudamos o canal de TV
mudamos a faixa do rádio
mudamos de ideia fixa
mudamos a página do livro
mudamos de ilusões perdidas
mudamos pra melhor atender
mudamos e compramos dólar
mudamos porque o mundo gira
mudamos porque a lusitana roda
mudamos de medicação
mudamos de pó de café
mudamos e passamos o ponto.
(Lorem Ipsus, 2006)
Matriz 9
todo inevitável
nunca se realiza
nossos furacões
não passam de brisa
viver é descartável
a morte precisa
somente a solidão
que nos eterniza
o inaceitável
de cada paixão
jamais é palpável
a coisa mais concisa
que é a ilusão
não nos serve de divisa.
(1986, Poeminhas & outros poemas, 1994)
Sim, meu país é a guerra
sim, meu país é a guerra
luz que já não ilumina;
presente que não espera
a hora que tudo termina;
não, meu país é a guerra:
cabeça sem aspirina;
cérebro que desespera,
quando dorme a retina;
vê, meu país é a guerra:
batalha sem Hiroshima,
onde a dor não salva quem erra;
berro que berra na narina;
ar, meu país é a guerra:
terra, teu nome é ruína.
(1994, Lorem Ipsus, 2006)
Política literária
posso mandar um poema
que não tenha a mesma gema
de América, de Iracema
breu de sala de cinema
com temperature amena
que não tenha lei nem esquema
sem TV, em antenna
sangue pra muita gangrene
que não se mede com trena
que não tenha slogan nem lema
transcrito por Madalena
se alma não for pequena
que não siga este Sistema
posso mandar um problema
(Acre, Ácido, Azedo, 2015)
Vênus anda pela casa
Na penumbra da noite, em calmas salas,
andas sobre os destroços das estrelas;
em silêncio, eu escuto tuas falas,
ondas, em que reluzem as mais belas.
O desejo rasga todas as bulas
e faz salivar todas as papilas;
mil orações bárbaras queimam formulas
e um potro voraz, sem paz, estrila.
Diamente surge da melhor argila,
néctar entumesce nossas corolas
e a vigília se quebra na medula.
Entre véus e veludos, entre estolas,
teu corpo, rútilo e nu; tu cintilas:
estrelas de opalas, letras de pérolas.
(Acre, Ácido, Azedo, 2015)
*
o poeta tem no sangue
a sífilis de sua geração,
e não há fuga, nenhuma paixão,
que o tirará deste mangue.
sempre irá no seu galope
este castigo infeliz:
se curar-se dessa sífilis,
só fabricará xarope.
(1984, Radicais, 1985)
In le jungle de Jung
eis a memória do mundo
o tempo morre
a cada Segundo
eis a história da raça
o tempo nasce
quando passa
eis a glória da arte
o tempo vive
quando parte
(Poeminhas & outros poemas, 1994)
Balanço da década
uma década tem mais de cem séculos
dez bilhões de vozes num único eco
mil e uma noites num mero Segundo
poucos trilhões de silêncio num ponto
quanto se conta os átomos é ótimo
a hora fica interminável num átimo
não se chega nunca a nenhum lugar
e apenas se volta ao mesmo volume
um só dia tem bem mais de dez décadas
num rústico eco a maior biblioteca
da luz do segundo nenhum consenso
até quando nos faltará silêncio.
(1985, Poeminhas & outros poemas, 1994)
Palavra de pórtico # 2
enquanto que para uns
vinte e quatro dúzias de quitutes
bastam para o gozo
para mim,
multipliquem, só para o desjejum,
os vinte séculos de inquietude
por doze.
(Radicais, 1985)
50 e poucos anos
não abro mão do que ganho
meu peso é do meu tamanho
não abro mão do que tenho
meu passado é meu desenho
não abro mão do meu ninho
sei perder no meu caminho
não abro mão do que sonho
meu desejo é o que disponho
não abro mão do que cunho
minha mão nasce no punho.
(2015, Lira dos 60 anos)
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