O abismo e o abismo

                              

 

tire o seu abismo do

abismo que eu quero passar com o meu

abismo hoje pra você eu sou

abismo

abismo não machuca

abismo eu só errei quando juntei meu

abismo ao seu

abismo não pode viver perto de

abismo

é no

abismo que eu vejo o meu

abismo o meu

abismo e os meus

abismo s rasos d'

abismo eu no seu

abismo já fui um

abismo hoje sou

abismo em seu

abismo

 

 

(1994, Amônia, 1997)

 

 

 

 

 

 

Maletta revisited #86

 

 

eu estou: nas maravilhas do mundo

no Coliseu da cidade

no naufrágio dos poetas

ouvindo Scheherazade

 

é o zum-zum da matilha do mundo

da Muralha da China, o barulho,

a baunilha dos vagabundos

 

única geração que ouve

a triste balada dos mouros

o transplante das décadas

a Arcádia sem fé e sem ouro.

 

 

(Poeminhas & outros poemas, 1994)

 

 

 

 

 

 

Heidegger's song#1 e 2

 

 

1

 

 

palavras escritas

em restos de nuvens

transformam as letras

em pedras de sal

os ventos que vêm

sob os pés da memória

sopram as pétalas

do azul do caos

os anjos que olham

os escombros da história

vão além da lei

do bem e do mal

 

as palavras da tribo

o nome de Deus

o eterno carimbo

impresso no céu.

 

 

2

 

 

como falar da verdade

na casa de Scheherazade?

como falar de pecado

na casa de enforcado?

 

como falar de consciência

na casa da violência?

como falar pro poeta

de sua obra completa?

 

como falar de amor

no lar do torturador?

como falar de cultura

na casa da ditadura?

 

como falar de ruído

pra quem não tem mais ouvido?

como falar poesia

depois do fim da utopia.

 

 

(2001, Lorem Ipsus, 2006)

 

 

 

 

 

 

Átropos, Cloto & Láquesis

 

 

canto feito o velho poeta condoreiro

poeta que refaz cada rima de infernal braseiro

e rebate os pregos deste imortal madeiro

para desfazer do feito um novo cancioneiro

 

cantor que joga na bateia do mineiro

pedra sem valor que vale muito cruzeiro

que agradece hoje a este povo hospitaleiro

a estada que me deu aqui neste chiqueiro

 

pois se aqui queres sucesso sejas embusteiro

filho de político ou filho de banqueiro

amante de padre ou neto ou filho ou herdeiro

 

pois se imbecilidade valesse dinheiro

e se deus fosse realmente brasileiro

aqui seria um paraíso verdadeiro

 

 

(1999, Lorem Ipsus, 2006)

 

 

 

 

 

 

Haicai em forma de soneto

 

 

quando se vive o tempo nunca é livre

quando se espera a terra é uma esfera

quando se respira a fala é uma mentira

uma rima triste este verso inexiste

 

quando se escreve o texto é leve

quando se olha a fala é uma ilha

quando se come a fome tem nome

uma rima pobre neste verso sobre

 

quando se sofre a alma é um cofre

quando se pensa a crença é imensa

uma rima esparsa neste verso farsa

 

quando se dorme a insônia é enorme

quando se morre a morte é a priori

uma rima gasta neste verso basta.

 

 

(1997, Lorem Ipsus, 2006)

 

 

 

 

 

 

Para sempre, expulso do Paraíso

 

 

Para sempre, expulso do Paraíso.

Para sempre, fel, quando tiver sede.

Para sempre só as canções do exílio.

Para sempre, a morte sob o machado.

 

Para sempre as lutas esquartejadas.

Para sempre, a mudez do incestuoso.

Para sempre as lágrimas de Ofélia.

Para sempre a surdez morta de Orfeu.

 

Para sempre, três incêndios no lar.

Para sempre o dia do julgamento.

Para sempre, Lia e não Raquel.

 

Para sempre, o corpo sem movimento.

Para sempre, a Noite de São Lourenço.

Para sempre, viver, sim, Tua ausência.

 

 

(1997, Lorem Ipsus, 2006)

 

 

 

 

 

 

À maneira de Odair José

 

 

Se ela é meu vício

e só me dá serviço

ninguém tem nada com isso

 

— Táxi,

Siga aquele tóxico.

 

 

(1985-1994, Lorem Ipsus, 2006)

 

 

 

 

 

 

À maneira de Raul de Leoni #1

 

 

sim, eu também vivo sempre penso o contrário,

em ir ao mais longínquo cemitério,

não com flores ou tristeza, em teu velório;

deixaria para depois o meu martírio;

só cumpriria apenas o obrigatório;

rindo, sem luto, entre tanto morto ordinário,

passaria sem lágrima, esse purgatório

e ateu lado seria o único solitário;

 

não deixaria meu nome no prontuário,

eu, aos outros incumbiria este honorário;

a cal que jogassem seria minério,

um pouco depois do vulgar falatório;

ficaria vazio o meu genuflexório,

que me reservaria um querido adversário;

as velas e santos do branco necrotério

valeriam mais em algum antiquário;

 

já estaria aqui, no nosso dormitório,

bem longe dos famintos por teu inventário,

vendo a penteadeira, cada acessório:

seu espelho, suas jóias, seu colírio;

enumerando as roupas do fechado armário,

finitas palavras de um qualquer dicionário,

que decorei, sem esforço, nenhum critério,

pelo simples convívio do amor diário;

 

a ninguém, prometo, direi ser ilusório,

o seguir nosso mal traçado itinerário;

muito menos, que a vida toda é um calvário

que carregamos feito um ranzinza sedentário;

se me perguntarem se fiz um ofertório

para depositar rosas, rezar rosário,

uma vez por mês, saudoso, a cada aniversário,

direi que não, contratei um voluntário;

 

falarei ainda então de todo adultério

meu, que, feliz te leguei como eterno erário;

e que te fiz de escrava para meu delírio;

julgava-me teu senhor e proprietário;

"— que te amei", não usarei em meu vocabulário;

quero que o mundo de mim, o pior augúrio,

anote estarrecido em seu vil breviário,

fazendo-me, entre tantos, o único corsário;

 

Eu deixarei as odes a qualquer notório

que se masturbava por seu belo mistério;

seguirei a vida sem nenhum comentário;

nem perverso, nem Cristo, nem celibatário,

igual a tantos, burguês, padre ou operário

que da vida mal conhecem o abecedário;

só a mim, em silêncio, peixe outro, de outro aquário,

ouvir, do coração, o seu mudo murmúrio.

 

 

(Sucursal do desespero, 1988)

 

 

 

 

 

 

À maneira de Augusto dos Anjos

 

 

" — tantas vezes, beijei a lona,

com os lábios em fogo, quase em coma:"

" na queda, só a queda é minha dona:

um murro com outro se soma;"

 

" — quantas vezes, cuspi a lona,

deixando, no seu pano, imenso hematoma;"

" a paz, a paz finita a tudo destrona

e outra guerra então me doma;"

 

" — que fera daria a própria pele

a beijos, cusparadas, dia a dia?"

" só a nossa própria pele curada

ao sol nos permite tanta ironia."

 

 

(1987, Sucursal do desespero, 1988)

 

 

 

 

 

 

À maneira de Eça de Queirós

 

 

amor

oca metafísica

dois soldados morrendo

sob as ribombâncias

de enfadonha

música.

 

 

(2003, Lorem Ipsus, 2006)