©alicia savage
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Viajar para o sul do país na década de 1970 era uma verdadeira aventura. Imagine uma nordestina, que nunca saiu do seu lugar, fazer a trajetória de Caicó para Curitiba, várias vezes de ônibus, cujo percurso se completava no decorrer de três dias, entre paradas em rodoviárias e postos. Minha mãe assim fez.

A primeira viagem, 1976, formou-se como uma verdadeira caravana da coragem: minha mãe, meu avô, meu tio José, minha tia-avó Isaura, que por sinal era deficiente, e as crianças — eu, oito anos, minha irmã Assionara*, sete anos, e meu irmão João, dois anos. Para meu tio foi a primeira e a última viagem. Até hoje não voltou. Achou sofrido demais. Meu avô, que morava lá, a fez muitas vezes, ida e volta. A cada aperto de saudade. Foi o único que nunca aderiu ao avião.

Entre a enorme bagagem, as variadas sacolas que nos dariam sustento nos primeiros dias com paçoca, galinha torrada, cocadas e bolos. As paradas eram uma espécie de se vira nos 30, em que minha mãe tinha como prioridade, na parada que indicavam como melhor, nos dar o banho do dia. Muitas recomendações para não comer nada que pudesse causar indigestão ou desarranjo, e para que ficássemos sempre juntos, todos bem amontoados para nenhum se perder pelo Brasil afora.

Era uma verdadeira aventura para mim e minha irmã. Ficávamos indo e voltando no corredor, depois passávamos horas nas janelas do ônibus sentindo o vento bater no rosto, também com o braço estirado parando a brisa. Isso quando entre uma parada e outra o ônibus vagava. Podíamos, às vezes, até dormir em dois assentos, brincar, ter cada uma a sua janela. Durante à noite era desconfortável dormir se o ônibus estivesse completo com passageiros. Ou nós duas no mesmo assento, ou nos colos.

Enfim, São Paulo. Que mundo era aquele tão cheio de correria? Tanta gente indo e voltando! Tudo tão grande! A chegada à rodoviária de São Paulo foi um espanto. E aquela escada rolante, que mais parecia um brinquedo de parque de diversão do qual minha mãe morria de medo, encantou minha irmã. Depois de acompanhar o processo atentamente, no primeiro descuido da mãe, lá foi ela, sozinha, subir pela escada. Sua primeira grande aventura na cidade grande. E para descer de volta era como? Veio o desespero. Perder uma criança num mundão daquele era ter a certeza de nunca mais encontrar. Minha mãe teria que encarar a escada e vencer o terror depois de ter visto um homem despencando por ela com uma mala, sem equilíbrio; uma cena angustiante para um grupo de nordestinos de primeira viagem no sentido mais puro da expressão. E lá estava a aventureira no andar de cima. Chego até a ver aquela carinha de felicidade vindo na nossa direção, pegada pela mão, depois que foi encontrada, muito satisfeita com a aventura, a dizer-me como tinha sido bom. Acho que foi ali mesmo que a cidade grande a ganhou.

Se a ida tinha sido uma aventura, voltar seria menos penoso, tendo experiência. O que poderia nos acontecer? Permanecemos por quase um ano em Curitiba na expectativa de que meu pai fosse e não voltássemos. Ledo engano! E a caravana enfrenta o desafio da volta. Todo o temor concentrava-se na extensa rodoviária de São Paulo, lugar onde precisávamos trocar de ônibus. Sair do desembarque, Curitiba/São Paulo, com tanta bagagem e buscar o local de embarque, São Paulo/Natal.

Minha mãe dá a mão do meu irmão, agora com três anos, para minha tia Isaura. Na outra, ela segurava uma frasqueira, embora tivesse dificuldades para andar. No corre-corre com bagagens, sem meu tio era mais difícil, minha tia acabou embarcando com meu irmão no ônibus errado. Quando o ônibus em que estávamos se preparou para sair, começou o desespero da minha mãe e seus gritos. Como descobrir onde minha tia fora parar? Ao perceber que entrara no ônibus errado, depois que ele já tinha saído da rodoviária, ela pediu ajuda, embora ouvisse o coro dos passageiros com relação ao atraso que seria voltar. Enfim, não recordo bem como, diante de tanto desespero, o nosso ônibus aguardou e, finalmente, a encontramos. Entre lágrimas, ela se juntou a nós mais uma vez, e a viagem poderia seguir. São Paulo seria para nós sempre um lugar perigoso. E essa aventura seria contada por carta, naquela época em que telefone era coisa rara.

Em 1977, por ocasião da morte de Elvis, foram publicadas várias edições especiais de revistas biográficas sobre ele. Uma delas foi deixada dentro do ônibus por um passageiro e encontrada por minha mãe, na mesma viagem de volta. Dessa revista foi tirado o nome da minha irmã caçula, Lisa Marie, nome da filha de Elvis. Dez anos depois, alguns familiares já começavam a fazer a mesma viagem de avião. A aventura pelas rodovias do Brasil de Norte a Sul acabara para a nossa família, mas as recordações fazem parte do nosso legado. "São Paulo fi de uma São Paula, você, que me trouxe, me leve de volta".



*Nota da editora: Assionara Souza (1969-2018) escritora.

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julho, 2020

 

 

 

Ana Santana M. Clemente, cronista, cordelista e professora de Literatura. Mora em Caicó/RN.