©rebecca matthews
 

 

 

 
 

 

 

 

spoiler de uma mulher com cabelos brancos tingidos



tenho álbuns de retrato 

de papel tenho vários anos

nas fotos minha mãe meu pai

minha filha também 


no álbum que minha mãe fez

quando eu era bebê ela colou recortes 

do jornal quando o homem chegou à lua e da criação da minissaia  


num álbum de viagem 

quando eu já era mãe

colei todas as recordações 

tíquetes passagens mapas fotos  

desenhos de minha filha


depois adulta viajei com minha mãe 

fomos juntas ao fim do mundo 

temos um álbum contando a jornada


ocorre que a cada visita aos álbuns 

tenho várias idades

também fora

das fotografias


e assim as memórias são como são 

registros

pontos de partida







*



minha mãe me contou

meu avô guardava

os palitos

de fósforo

queimados

na caixa


talvez a gente lavasse a louça depois

de um almoço em família quando

ela me disse entre

outras memórias

guardo sempre comigo uma caixa 

riscada que nunca

fica vazia







*



acordei

um dia tão cansada

e querendo fazer

tanta coisa tomei 

um café preto

fiz uma lista

sentei no sofá um tempo 

depois me levantei

tomei mais um café preto

ainda estava bom revi

a lista tão inesperada


difícil uma vida

dias anos

anotados 

em letra de forma eu tão cansada 

me levantei 

mais uma vez 

coloquei comida 

água pro cachorro

me deitei não sem antes amassar a lista

guardar amassada mesmo na gaveta

de meias de inverno






*



sabe

quando 

nada muda

hoje de manhã

teve café

depois

à noite

sopa

o ano que vem

também 


teve pernilongos no verão







*



moro há quase um ano

nesta casa que 

tem entre outras coisas 

duas gavetas 


quebradas

uma no quartinho 

para onde vai tudo 

que um dia 

vou arrumar

a outra 

debaixo das minhas calcinhas

guarda meus pijamas


esta é mais íntima e

no entanto

nos estranhamos

cotidianamente







*



foram felizes

ou não 

ou nada 

o lençol lavado

da cama do hotel de verão

não diz 

sempre achei um mistério

chego hoje e está nublado

jogo minha mala no chão da suíte de casal

as toalhas arrumadas formam um cisne

pra que perder tanto tempo

velando uma dor que sei 

que não vai embora

poderia fazer isso em casa

na minha cama suja sobre um chão poeirento


será que os hóspedes que estiveram aqui

beberam o uísque do frigobar ou a moça

nem precisou repor

é caro e nem me importo

abro duas garrafinhas e coloco no copo 

com gelo três pedras 


sento-me na beirada da cama amassando

o cisne branco a moça

penso eu pela primeira vez

podia ser uma moça a hóspede antes de mim

no hotel de verão 

ela pode ter sido feliz

ou estaria de passagem


sempre achei que quem está de passagem não precisa

ser feliz ou triste

ainda







*

um



três janelas acesas contei

entre o escuro

enquanto respirava 

não se apaga o registro ranhuras

na pele ou parede 


entre o escuro vi 

minha mão tateei as cicatrizes

mal fechadas no alto do ombro no olho roxo

no fundo das costas

caída vi você 

sentado na sala vendo tevê


vi minhas costas tortas e meu olho

roxo depois de você dormindo

entre as fissuras 


nem quando pintamos as paredes manchadas

de outra cor com tinta nova

ou quando trocamos chaves ouvindo música

ou quando você abre um vinho caro no jantar


a dor

está

na parte fosca

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Constança Guimarães, escritora mineira e jornalista, é autora de Como se fosse possível medir o tamanho do escuro (Urutau, 2020), Ombros caídos olhando pro inferno (Urutau, 2017) e A sereia da contorno e outras histórias (Leme, 2017). Tem poemas e contos em revistas como a Gueto (especiais Utopia/Distopia e Crianças em Guerra), Mirada, Torquato, entre outras.