Fui a Caracas levar as cinzas do meu pai, que faleceu em outubro, e encontrei uma caixa de fotografias. Levei-a comigo para a minha casa, na Espanha, e vi que há uma fotografia sua. Gostaria de enviá-la para você. Vou rever o conteúdo da caixa. Ele sentiu muitas dores nos últimos meses, mas permaneceu lúcido e inteiro até o final.

Este é o texto do e-mail que recebi ontem, de uma das filhas do filósofo, professor e pesquisador Antonio Pasquali, líder da chamada Escola Latino-americana de Comunicação (ELACOM), resultado do esforço de vários estudiosos para a adequação de tradições teóricas variadas, oriundas da Europa e dos EUA, às questões comunicacionais específicas do nosso continente. Nascido em Rovato, Itália, ele emigrou aos dezoito anos para a Venezuela, que amou até o final da vida. Estudou em Paris, Florença, Oxford e Cambridge, trabalhou na UNESCO, mas sempre retornou ao seu país de adoção.

A pesquisa-denúncia se tornou um dos principais referenciais teóricos na configuração da Escola, iniciada nas décadas de sessenta e setenta. Naquele período, a indústria cultural começava a se desenvolver na América Latina, com as mesmas questões de dependência características da relação entre as Américas do Norte e Sul*.

Criador de várias instituições voltadas para o pensamento crítico na Venezuela, como o Instituto de Investigaciones de la Comunicación (ININCO), vinculado à Universidade Central, com base nas ideias dos teóricos da Escola de Frankfurt, entre outros — Pasquali e sua equipe pioneira tiveram grande importância para o desenvolvimento e consolidação dos estudos sobre Comunicação em todo o continente. Publicou vários livros e escreveu ininterruptamente para jornais ao longo dos seus noventa anos de vida, além de ter participado ativamente de atividades globais relativas à pesquisa sobre mídia e Comunicação.

No início dos anos setenta, ele esteve na Universidade de Brasília para ministrar aulas no Mestrado em Comunicação, recém-criado no Departamento de Jornalismo, que ainda não tinha o status de faculdade. Aluna da graduação, eu tinha lido o seu clássico Sociologia e Comunicação, que me fascinou pela originalidade do pensamento.

Assisti à aula inaugural, aberta aos alunos de graduação, no auditório Dois Candangos. Fiquei fascinada com sua fala, a clareza de suas ideias, sua bela voz, sua facilidade de expressão. Fui cumprimentá-lo ao final da palestra e um dos meus professores lhe disse que eu era fã incondicional de sua obra, especialmente pelo fato de ele considerar a comunicação como um serviço público, grande novidade na época. Seus olhos brilharam, e daí a alguns dias ele me convidou para jantar.

Estava divorciado da primeira mulher, com quem tivera quatro filhos e, em princípio, livre. Para minha tristeza, logo percebi que a situação não era bem assim: no segundo encontro que tivemos, ele me mostrou uma foto de uma moça linda, que lembrava a atriz Rita Hayworth, a inesquecível Gilda, e me disse que era sua namorada. Nossa diferença de idade de mais de vinte anos não me preocupava, ele era exatamente o que eu sonhava, naqueles tempos, mas gelei quando vi a foto, não tanto pela beleza da modelo, mas pelo tom de sua voz ao mencioná-la.

Mesmo sabendo que minhas chances eram mínimas, tivemos outros encontros em Brasília e trocamos cartas posteriormente, quando ele retornou à Venezuela. Muito jovem, eu oscilava entre a esperança e a desesperança, mas ele não me enganou em nenhum momento. Com o tempo, embora soubesse que ele me apreciava e respeitava, fui perdendo o élan, percebendo quão desvantajosa era minha situação, morando a cinco mil quilômetros de Caracas, sem dinheiro para viajar, e competindo com uma namorada que ele já conhecia, de idade um pouco mais próxima à dele. O senso de realidade me dizia o tempo todo que se tratava de um relacionamento impossível, eu era praticamente uma menina e ele uma estrela da área da Comunicação, convidado a dar palestras no mundo inteiro, aclamado e mitificado por colegas e alunas. Além disso, era um homem bonito, charmoso, e se vestia muito bem.

A correspondência esfriou, logo terminei a graduação, só pensava em jornalismo e no meu novo namorado, com quem viria a me casar. De tempos em tempos lia algo sobre ele, na mídia internacional, ou recebia notícias através de amigos comuns.

No início dos anos dois mil, eu era professora da UnB quando ele participou de um seminário na FAC. Levei-o a pontos turísticos da cidade, conversamos muito, soube então que ele tinha se casado com a moça deslumbrante, juntos tiveram um filho, mas haviam se separado há anos.

A situação era outra, novamente: ele almoçou na minha casa, comigo e meu marido. Apesar de estar bem mais velho — a diferença de idade se aprofunda com o tempo — ele continuava interessante. Mais do que isso, foi o intelectual mais bem preparado e lúcido com quem convivi, sem pedantismo nem amolação, pois tinha um senso de humor incomum, era ótimo cozinheiro, se interessava por tudo, de uma conversa sobre Platão passava a falar das flores secas do cerrado, que o encantaram, sempre atento ao entorno e às mudanças no mundo. Em relação a nós dois, tudo parecia consolidado. O tempo passara, e decididamente nós sempre chegamos atrasados na vida um do outro.

Em setembro de 2019 ele me enviou uma mensagem curta, dizendo que estava com câncer no pulmão, se tratando na casa de uma filha, na Espanha. Sem sombra de melodrama ou de autocomiseração — ele tinha consciência de que teve uma vida privilegiada, iria deixar uma obra valiosíssima e publicou até o final — me pediu desculpas pelo que chamou de indecisões e ambiguidades, reafirmando seu afeto por mim. É provável que se referisse ao fato de não ter me visitado depois da morte de José, mas não tive oportunidade de perguntar.

Quando contei o caso à minha irmã Edna, que estava na UTI, ela me aconselhou a ir à Espanha me despedir. Rechacei a ideia, pois me pareceu uma invasão na vida de uma pessoa muito idosa e doente. Além disso, desconfiei que ela apenas queria me afastar do cenário da sua própria morte, para me proteger.

Passada a pior fase do luto por minha irmã, e como não li jornais internacionais nos últimos meses, resolvi procurar saber notícias dele e me lembrei de um antigo endereço eletrônico de uma das filhas, que tinha há mais de vinte anos. Enviei-lhe um e-mail desacorçoado, às cegas, como se jogasse uma garrafa ao mar.

A resposta está no início do texto. A saudade, dentro do coração. As lembranças, na memória. E a ideia de que provavelmente exista, sim, destino, cada vez mais forte. A América Latina teve e ainda tem a obra do seu Marcuse, que vai continuar influenciando as novas e novíssimas gerações de pesquisadores.  É o que importa, afinal.

 

 

*Os dados sobre a Escola Latino-americana de Comunicação foram extraídos do texto "O pioneirismo comunicacional de Antonio Pasquali: ININCO E ALAIC", de Ana Paula Silva Ladeira Costa, Glaice de Divitiis Rosa e Maria Alice Campagnoli Otre, apresentado no XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste — Juiz de Fora/MG —, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares em Comunicação (INTERCOM).

.

 

 

 

 

março, 2020