©guilherme teixeira guilhermim
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Há dias ela andava incomodada com as dores nos joelhos e outras articulações. Já tinha pensado em artrite, artrose e doenças similares. Mas não tinha inchações, somente pontadas finas e súbitas. Não sabia se valia a pena procurar logo um reumatologista ou se deveria marcar consulta com um ortopedista.

Depois de pedir indicações a amigos, Lara resolveu procurar o doutor Francisco, razoavelmente conhecido na região, cujo sobrenome não lhe era estranho. Lembra-se dele. Ou seria impressão? Não era um sobrenome comum. Ficou intrigada com aquilo, mas as dores, cada vez mais fortes, não lhe deram sossego para nada. Passou várias pomadas e géis que lhe recomendaram, enquanto aguardava o dia. Melhorava um pouco, enquanto o local estava aquecido, mas depois tudo ficava como antes.

Esperou bastante na clínica, pois o médico tinha se atrasado. Finalmente, quando ele abriu a porta, viu que era muito parecido com alguém que conhecera há mais de trinta anos. Mas pareceu-lhe velho demais, não devia ser ele e sim um irmão ou primo, talvez. Então ficou claro: sim, o sobrenome era o mesmo. Sem dúvida seu antigo conhecido e o médico pertenciam à mesma família. O rapaz do passado era alto e forte, cheio de músculos, ao contrário de Francisco, franzino, que transmitia uma impressão de fragilidade.

Depois das perguntas de praxe, quase maquinalmente ele examinou seus joelhos, mas Lara percebeu que Francisco estava tenso e muito longe dali. Como tinha prática com consultas e médicos, desanimou logo com o seu desinteresse. Quando isso ocorria, ela tinha aprendido a não insistir. Desse mato não sai coelho, concluiu. Mas por que será? O que haveria por trás daquela postura tão pouco profissional?

Para ver se o clima melhorava, resolveu lhe perguntar: o sr. tem irmãos, doutor? Acho que conheci alguém parecido com o sr., não tenho certeza. Penso até que essa pessoa namorou uma vizinha minha, na época. Ela se chamava Giovana. Certo Natal, ele lhe deu um LP de presente, com músicas italianas. Francisco riu e respondeu: não tenho irmãos, sou filho único. Fui eu que namorei a Giovana. E o disco se chamava "Fortissimo", título de uma das faixas, cantada por Rita Pavone.

Lara ficou pasma. O estudante de Medicina, outrora vistoso, bonitão, havia se transformado num homem magro, pálido e mais baixo. Estaria doente? Havia encolhido? Ou sempre tivera a mesma altura e a sua lembrança embaralhara tudo? O que teria acontecido a Francisco, nesses anos?

Ninguém conversou mais sobre joelhos e nem sobre dores. Os papéis simplesmente se inverteram. Diante da possibilidade de ter uma ouvinte, Francisco desfiou um longo colar de insatisfações profissionais e pessoais. Conversou com Lara sobre o seu divórcio, a briga pela guarda dos filhos, o arrependimento por ter escolhido ortopedia, especialidade que não o interessava muito. Os minutos foram se passando, ela sabia que havia uma fila de pessoas esperando, e o médico não se calava.

Sua aflição só ia aumentando, não queria ouvir nada sobre aqueles assuntos, só queria tratar os seus joelhos, mas Francisco estava com os olhos cheios d’água e ela não sabia como fazer para sair da sala. Teve certeza de que ele estava deprimido, sentiu vontade de sugerir que procurasse ajuda especializada, mas faltou-lhe coragem. Enquanto isso, ele foi falando cada vez mais rápido, tão rápido que Lara nem entendia direito as frases todas.

Por fim, bateram à porta. Era a secretária, que gentilmente lhe disse: doutor, desculpe-me, mas há muita gente aí fora. Essa consulta durou quase duas horas. A paciente das 18h já reclamou várias vezes.

Meio sem graça, Francisco levantou-se da cadeira de médico, e disse à Lara: ah, sim, vou fazer um pedido de ressonância magnética dos seus joelhos. Quando saírem os resultados, você retorna aqui, combinado? Receitarei um medicamento para dor, de qualquer maneira. Aliviará os sintomas até a ressonância ficar pronta.

Quando conseguiu sair da sala, Lara foi ao banheiro lavar o rosto. Suando, tirou o blazer meio pesado para a tarde quente e retocou o batom. Os joelhos doíam cada vez mais, de tanto ficar sentada na cadeira dura destinada aos pacientes, ouvindo pacientemente o médico.

Ao fazer o cheque para pagar a consulta, pensou no dispêndio de energia e na inutilidade de sua atitude. Saiu da clínica com muitas dúvidas. Algumas certezas: o médico foi seu paciente, ela pagou para ouvir um discurso desinteressante e repetitivo; nunca mais retornaria ali, com ou sem o resultado da ressonância magnética.

 

 

 

 

julho, 2020