desastrada



Li ontem uma matéria que dizia sobre a amizade de um gato e um rinoceronte. "Amizade improvável", dizia a matéria. "Absolutamente normal", pensei eu. E então imaginei um amigo gigante que me carregasse em seu dorso por todo o planeta, um dinossauro talvez. Nesse momento, a Terra, chateada, atordoou-se. Julgou-se desvalorizada por minha imaginação infantil. Meu corpo, como inúmeros outros corpos, também não habitava sua superfície por uma inexplicável força gravitacional? Involuntariamente, pesava sobre ela vaidosos e humilhados, beócios e gente safa. Então, a fúria veio, inevitável. Houve um terremoto. Mas como era uma criação minha, a região devastada foi um lugar onde nunca, ninguém, sequer havia pronunciado meu nome.







patos selvagens, o oráculo e a velha casa



então eu me mudei para a casa nova que, na verdade, era uma velha casa, mas eu gosto do que é antigo, e isso não é de hoje. então vieram os cupins, e o oráculo google me disse: vinagre neles! mas minha vizinha olhou aquilo e sentenciou: você está só temperando os cupins, isso é um teatro! jimo, atacar! e toda uma colônia foi exterminada; uma sociedade de castas, segundo li no site da empresa de pesticidas (sim, aprendi isso agora, não tive essa aula de biologia). então vieram as goteiras, que aqui é o eufemismo em forma de chuva torrencial, e eu não tinha panelas para aquele dilúvio. um bom homem e seu ajudante foram contratados por nós. o serviço ficou uma beleza, mas o assoalho cedeu. casa velha é assim: e houve outra obra, com estampido, quebra-quebra, gato fugindo para o jardim do vizinho, e poeira cósmica. então, num sábado, com uma pilha de trabalhos para corrigir, pois escolhi ser professora, uma senhora me chamou no portão: "por favor, coloque seu pato para dentro". "eu não tenho pato!". "os cachorros vão matá-lo!". "senhora, eu nunca vi esse animal". "os carros vão atropelá-lo". "senhora... abri o portão e tocamos o pato para dentro. mas ele se assustou e voou. era um pato grande, preto, com alguns traços brancos. o google, segundo a foto, disse ser um pato selvagem. que, às vezes, atravessa o pacífico. o oceano. isso. casa velha é assim mesmo, falou minha sogra.







sonho: um enigma, um jantar, cinco mulheres



Sonhei que estava à mesa com quatro mulheres (portanto, éramos cinco mulheres à mesa). Eu estava lá para jantar, mas conseguia também assistir à cena (não me pergunte como, é da natureza dos sonhos as coisas se passarem assim). Estávamos em silêncio, um silêncio incômodo e excitante, como no início de uma peça de teatro. A luz era dourada, os abajures, antigos. "Gosto do seu corte de cabelo, disse eu à Varda". "E de meus filmes?" Gostaria de tê-los feito". "E da minha roupa de batatas?". " Ah, isso acho adorável. Da ordem do sobrenatural". "E de mim, você gosta? — disse Wislawa Szymborska". "De seus poemas, ou de suas sopas em pó?". "Dos poemas". "Sim, gosto. As sopas nunca experimentei". "Suas sopas são melhores", disse Gertrude Stein, falando pela primeira vez, enquanto preparava-se para a primeira colherada em sua sopa, num daqueles gestos que dá a conversa por encerrada e a concentração fica toda voltada para a refeição. 

A quarta mulher atravessou o sonho sem dizer nada, e eu a observava instigada. Soprava a sopa devagar e comia com lentidão. De resto, só o barulho de talheres e meu olhar estupefato: eu não me lembrava de como havia feito o convite àquela pessoa, não me lembrava, aliás, de ter tido, em nenhuma outra noite, Lydia Davis como convidada para o jantar.







conto de aniversário



era o dia do meu aniversário, eu estava longe da casa dos meus pais, onde sempre um bolo era providenciado por minha mãe, nem que fosse de padaria ou caixinha. era o dia do meu aniversário e eu não tinha dinheiro, o que não era uma novidade naqueles tempos, ainda que hoje em dia eu não possa dizer algo muito diverso. era um dia cinza e esquisito, mas eu gosto de céus nublados, e eu perambulava na rua sem compromisso, pois afinal era o dia do meu aniversário, e eu achei que esse seria um belo e acessível presente que eu daria a mim mesma: perambular. então encontrei minha amiga Camila, a pessoa mais alegre e animada do mundo de bicicleta perto da linha do trem. ela falou: que cara de maluca, rindo sozinha, tem alguma coisa acontecendo? e eu revelei que era o meu aniversário e falei da minha tarde vadia. mas ela achou que era pouco, e disse: temos que comemorar. e eu disse: não tenho reais. mas ela disse: tenho conta na quitanda, e para as bebidas, a gente passa o chapéu. não seja estúpida, comemorando aniversários batendo pernas e rindo sozinha na rua. eu disse: mas não temos que cozinhar? o gás também acabou. e minha amiga Camila, já sem paciência, gritou: "nãaaao! será uma festa frugal!" e convidamos pessoas para a festa de meu aniversário, e muitas delas demonstraram serem entendidas de macrobiótica e estavam dispostas a me explicar coisas nas rodinhas de conversa, mas eu preferi dançar, porque era o dia do meu aniversário e minha amiga Camila, bem, eu acho que ela aproveitou ainda mais que eu, rindo, dançando e conversando animada, no dia do meu aniversário.







meu reino por...



nasço e morro todos os dias? sei que cumpri pouco ou quase nada, se houver realmente um destino. eu gostaria sim de estar no lugar certo, na hora certa, fazendo a coisa certa. isso me daria uma sensação de plenitude e eu existiria apenas, como pedras e árvores. mas há muita atabalhoação no meio de tudo e, então, isso não acontece. no meio do caminho, muitas águas já rolaram. sinto que fui prolixamente dispersa e a dispersão foi de certa maneira até um modo de sobrevivência. mas, uma vez, uma vez fiquei cheia de vida, e brilhei e acreditei. "isso" se deu quando li uma velha história, acho que sobre lao-tse, em que um dia, montado em um búfalo, ele decidira partir e refugiar-se em uma montanha. tinha decidido abandonar todas as funções e todas as honras da corte. pretendia ficar longe dos homens e suas guerras, atingir a iluminação, se tornar um eremita. estava certo disso, quando um guarda (um guarda-florestal, não estou muito certa, a história me foi contada há muito tempo e os fatos me escapam), pois: um guarda o para, e indaga: (e eu não me recordo da natureza das perguntas que fez, a história é muito antiga e foge resoluta). entretanto dessa entrevista lao-tse desiste da ideia de partir e volta. Volta e escreve um livro curto e obscuro, o tao-te king. Ele entendera seu isso. isso, que de minha parte não alcancei, mas que intuí nessa parábola que conto de modo tão inexato. foi: um instante. uma pena que eu não tenha um búfalo.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Cassiana Lima Cardoso é mestre em Poética e doutora em Literatura Comparada. É professora no Instituto de Aplicação Fernando R. da Silveira, o CAp-UERJ, no Rio de Janeiro. Desastrada & outros contos breves (Belo Horizonte: Venas Abiertas, 2019) é seu primeiro livro.