A morte da Rainha

 

 

Era de madrugada, com uma chuvinha fina, quando bateram com força à minha porta, gritando. A Rainha estava morrendo, e precisavam de mim.

 

Pulei da cama, enfiei uma roupa às pressas, peguei meus apetrechos e segui o anão uniformizado, com dragonas, capacete e um sabre arrastando no chão. Ele me acompanhou através do labirinto de becos e ruelas até a ladeira onde, numa casinha de alvenaria modesta, a Rainha estava vivendo após o fim do reino.

 

Ele abriu e segurou para mim o portãozinho do jardim, seguimos a alameda por entre as flores e entramos na casa onde havia luzes acesas e o murmúrio das visitas.

 

Abriram passagem e eu sentei na borda da cama. Não a via há duas semanas, e assim que meu olho bateu nela percebi que não duraria mais que algumas horas. Ela pegou minha mão nas suas, lembrou meu nome, como sempre, contou alguma coisa antiga sobre minha família. O sacerdote veio, preparou o ritual, arrumou todos em semicírculo.

 

A Rainha apertou minha mão esquerda com força naquela mãozinha esquelética de mulher com mais de cem anos. Com a mão direita apoiada em minha mesinha portátil, fui escrevendo de uma em uma as Senhas, que o Sacerdote repassava aos presentes, cada qual beijando e guardando a sua entre preces.

 

Ela lembrou-se de flores e de insetos dos jardins do palácio onde foi menina, falou do seu medo de múmias, reproduziu um gemido de engrenagem de moenda, enumerou famílias, espólios, currículos, recitou versinhos libertinos e resumiu em dez frases uma complexa história de aventuras.

 

A cada trecho ouvido, eu meditava e depois escrevia a Senha, que era rapidamente distribuída; e a cada momento eu percebia na minha mão esquerda a mão dela diminuindo, um galhinho de mato que vai virando um graveto. À medida que ela falava, ia sumindo. Por duas vezes o Sacerdote aplicou o estetoscópio, e sinalizou para continuarmos.

 

Depois de quarenta Senhas ela já não tinha mais de vinte centímetros de altura. A voz era precária, mas nítida, e quando ela soava o quarto ficava um túmulo. Ela ia falando e se esvaindo, como se sacrificasse substância do corpo para que a voz se mantivesse plena. Eu já segurava sua mãozinha entre as pontas do polegar e do indicador, mas a sentia ainda morna, ainda pulsando, e fantasiava que se eu não a estivesse tocando ela já teria sumido.

 

Morreu antes de sumir; estava do tamanho de um fósforo queimado. Todos se despediram, prepararam um lanche, aliviados, comeram e foram embora. Eu e o Sacerdote esvaziamos um porta-joias, colocamos o restinho dela lá dentro, e quando o dia amanheceu saímos para o jardim e a enterramos junto do relógio de sol.

 

 

[Publicado originalmente no Jornal da Paraíba (João Pessoa), em 11.2.2014]

 

 

 

 

 

Memórias de um Mágico

 

 

"A mão é mais rápida do que o olho", disse ele.

 

Ergueu as mãos de dedos longos; mostrou as palmas, vazias, depois o dorso delas, com veias grossas e manchas marrons. Começou a encher o cachimbo, enquanto eu me servia de outra taça de vinho.

 

Ele continuou:

 

"Quando eu tinha nove anos, estava com minha família num restaurante de Marselha. Havia um copo vazio perto da borda da mesa, e ao gesticular eu bati nele com a mão, assim". Fez um gesto rápido, como de quem esbofeteia uma criança. Soltou uma baforada e sorriu. "Peguei o copo antes que tocasse o chão. Ninguém queria acreditar no que tinha visto".

 

Eu sorri e disse: "Foi verdade ou foi truque?".

 

"Verdade," disse ele, "porque sempre fui rápido. Sabe por quê? Porque fazia antes de pensar. O olho via, a mão agia. Esperar pelo cérebro seria fatal".

 

Corri os olhos pelo salão com paredes cobertas de cartazes, onde o rosto e o nome dele apareciam numa variedade de cores, formas, fotos, desenhos, em mais línguas do que eu era capaz de decifrar.

 

"Mas", disse ele, "voltando ao que falamos há pouco, não há muita diferença entre tirar da cartola um coelho ou um pássaro. Os dois são difíceis. Sempre é difícil lidar com seres vivos. O resto... pufff!".

 

Com a interjeição, tirou do fornilho aceso do cachimbo um filete de água cristalina, trouxe-o pendurado entre as pontas do indicador e do polegar, como uma fita, e o fez enrodilhar-se dentro de um copo vazio. Estendeu-me. Bebi sem hesitar. Era água limpa, fresca.

 

"Fogo, água, terra, ar, substâncias comuns ao nosso mundo como pano, papel, madeira ou metal... Tudo isto é fácil".

 

Ele cerrou os dedos, e ao abri-los tinha na palma da mão uma moeda de cobre com meu nome e meu rosto gravados. (É uma das lembranças dele que guardo até hoje).

 

"Pode publicar isto na sua revista", continuou, "porque seus leitores o olharão como meu pai me olhou naquela noite". Tossiu, deu um gole de vinho, voltou a fumar.

 

Prosseguiu:

 

"Há pessoas capazes de ler pensamentos, de levitar, de mover coisas com a mente... Eu, não. Eu produzo coisas que segundos atrás não existiam, mas tenho que usar uma cartola, um lenço colorido, um biombo — senão, ninguém acreditará no que está vendo".

 

Tirou da taça de vinho um rei de ouros gotejante, amassou-o, entregou-me uma chave idêntica à do meu carro.

 

"Para fazer mágica, é preciso contar com a expectativa do público pela mentira, pelo truque. Se eles descobrissem que é tudo verdade, apedrejariam o mágico e incendiariam o teatro. É melhor que acreditem numa verdade mais confortável — por exemplo: que a mão é mais rápida do que o olho".

 

Estendeu-me a mão aberta: na palma dela um olho se abriu, e piscou para mim.

 

 

[Publicado originalmente no Jornal da Paraíba (João Pessoa), em 25.10.2013]

 

 

 

 

O Manifesto Krashnavik

 

 

"Este manifesto é escrito em nome de Istvar Morisev, tecelão de ofício, aldeão de nascimento, alfabetizado aos 71 anos, famoso por seu livro de memórias aos 75, rico aos 80, morto e reconciliado com o mundo aos 90.

 

"Em nome da luz do verde das encostas de Krashnavik na derradeira tarde do seu tempo de paz, quando um regimento inteiro de 'kalliks' em retirada devastou o vale, ateando fogo às cabanas depois de saqueá-las e martirizar seus moradores.

 

"Em nome da bacia de porcelana em que uma criança era banhada quando foi atropelada por um corcel de guerra pesando trezentas libras e coberto de armadura em couro, bacia que escapou milagrosamente intacta a esse perigo, tendo a criança, por outro lado, não resistido.

 

"Em nome do oficial que deteve o sabre que se erguia sobre o pescoço curvado daquele homem de bigode negro que tinha sido dado como morto por entre as ruínas fumegantes de sua casa, e mandou acorrentá-lo.

 

"Em nome dos vizinhos de Morisev a quem coube sepultar sua família e guardar como relíquia a bacia de porcelana que pertencera aos seus avós.

 

"Em nome das marretas de ferro com que ele foi obrigado a quebrar pedras durante anos, longe do vale de Krashnavik, crendo que cada dia seria o seu último.

 

"Em nome da chuva que o refrescou, do sol que o aqueceu, da comida insípida que o manteve vivo, das mulheres que nunca teve, do sono que o trazia de volta à existência, das trinta e oito voltas que o mundo deu em torno do sol e que um dia lhe trouxeram a liberdade.

 

"Em nome do sargento subornado que uma madrugada o libertou às escondidas, dando-lhe sem explicações um cavalo, uma sacola de mantimentos e um papel com um nome e um endereço.

 

"Em nome de Olenka, a professora de álgebra que, depois de anos de busca, assim o libertou e o acolheu em sua casa num subúrbio de Varna, e nos anos seguintes tornou-se sua filha adotiva, mestra e secretária.

 

"Em nome do artesão anônimo que gravou a história da família Morisev na bacia de porcelana que Olenka comprara num antiquário, e cujas inscrições releu para ele, ao longo de muitas noites, fazendo-o chorar pela perda do filho e pela salvação da história.

 

"Em nome dos dias de estudo e das noites em claro à luz de lâmpadas fracas, desenhando letras negras em papel branco e repetindo palavras em voz alta.

 

"Em nome do livro em que contou sua história, a dos seus antepassados, e imaginou, descreveu e celebrou as muitas vidas que poderiam ter sido do seu filho atropelado pelos cavalos dos 'kalliks'.

 

"Em nome da arte da palavra, que não muda o mundo, mas lhe dá feição e sentido, e é capaz de modificar o passado, eternizar o presente e multiplicar o futuro".

 

 

[Publicado originalmente no Jornal da Paraíba (João Pessoa), em 25.10.2013]

 

 

[Esses contos fazem parte do acervo do blogue Mundo Fantasmo]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Braulio Tavares. Escritor e compositor. Nasceu em Campina Grande (Paraíba), em 1950. Reside no Rio de Janeiro desde 1982. Tem mais de vinte livros publicados, incluindo romance, conto, ensaio, poesia e literatura de cordel.  Em 2018, lançou o folheto de cordel O Tesouro de Antonio Silvino(Editora Cordel, Mossoró) e o livro de poemas Galos de Campina (Editora Bagaço, Recife), este último em parceria com o poeta paraibano Jessier Quirino. Em 2019, lançou o livro de contos Fanfic, pela Editora Patuá (São Paulo). Ganhador do Prêmio Caminho de Ficção Científica, em 1989, em Lisboa (com A Espinha Dorsal da Memória), do Prêmio Shell de Teatro, em 1992 (com a peça Brincante, em parceria com Antonio Nóbrega) e, em 2017, com a peça Suassuna — O Auto do Reino do Sol, do Prêmio APCA de Literatura Infantil, em 2007 (com O Flautista Misterioso e os Ratos de Hamelin), do Prêmio Jabuti de Literatura Infantil, em 2009 (com A Invenção do Mundo pelo Deus-Curumim, em parceria com Fernando Vilela), do Prêmio Femsa de Teatro Infantil, em São Paulo, em 2014, com a peça Lampião e Lancelote. Atualmente, trabalha como idealizador e roteirista, na pré-produção da série documental de TV "A Persistência da Memória" (Canal Curta) e na dramaturgia do espetáculo musical "Jackson do Pandeiro" (título provisório) para o grupo carioca Barca dos Corações Partidos. Mantém o blogue Mundo Fantasmo, onde escreve sobre literatura, cinema, música, etc.

 

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