Agouro



com a boca cheia de sangue

caminhei até a pia do banheiro

e fui cuspindo os dentes,

um a um,

até a língua não encontrar mais obstáculos


é um presságio,

só pode ser um presságio


de repente uma dor leve,

mais dentes na boca,

todos moles de novo,

caindo conforme a língua ia tocando


é um agouro,

só pode ser um agouro


três horas perdendo os dentes

quando pensei no meu avô,

e no pai do meu avô,

e no meu pai,

e nos meus tios e primos,

e depois em mim, mulher, perdendo os dentes


tudo em mim era esse momento

eu era apenas dentes e sangue


cada vez que eu piscava

via no escuro as mulheres da minha família,

sangue escorrendo de suas bocas,

sozinhas


é um sinal,

só pode ser um sinal


por último vi minha avó,

— seus dentes amontoados nas mãos —

que me disse:

"perda de dente, morte de parente"

ela ainda não sabia

que os homens da nossa família 

morrem apenas quando já é tarde demais

e feito dentes moles,

— incômodos e inúteis —

ressurgem em nossos sonhos

para nos fazer sangrar novamente.


E percebi que o parente que perde os dentes

É quem no fim morre:

minha avó, eu, e mais tantas,

— também de outras famílias.


é uma maldição,

só pode ser uma maldição,

dentes de mulheres caindo

e os homens 

sorrindo







Apenas um homem



a mão dele descansando sobre o meu útero

tem o peso das mãos de gerações de homens

que, como ele,

sempre tiveram as mãos sobre úteros de mulheres


todas as noites ele dorme tranquilo

com uma das mãos pesadas sobre meu ventre

e a outra me tapando a boca

e me pergunta por que ando tendo insônia


quando ele acorda me pede café

e faço ovos mexidos com bacon

em grandes porções, para saciar sua eterna fome,

e planejo minha vingança de estômago vazio


ele tem dentes pequenos,

sorriso amarelado

e seu hálito fede

a todas as obrigações que me impuseram


ele diz que quer um filho

pra propagar seu nome

mas que se for filha vai amar tanto quanto me ama

e eu tenho medo que seja verdade


e eu não consigo escapar dos oito braços que ele tem

e se eu corro as doze pernas dele correm mais

e se eu choro as suas três cabeças me pedem pra sorrir

e se fico quieta as suas mil bocas me engolem

e minha vingança nunca se concretiza


mas eu sei que ele não é um monstro

ele é um homem

apenas um outro homem

como tantos foram em minha vida







Tudo nesse lugar grita por socorro



tudo nesse lugar grita por socorro:

as flores murchas

as roupas no chão

A toalha molhada

O livro aberto no sofá

O copo de água ao lado da cama

O celular no mudo

O computador descarregado

A televisão desligada

A geladeira vazia

O lixo cheio

O espelho sem reflexo

A banheira cheia de más águas

Tudo nesse lugar grita por socorro

Menos eu

Que aprendi a ser forte

E a estar sozinha







Abandono



A primeira vez que Deus me abandonou eu tinha 2 anos

Ainda lembro do meu vestido de botões florido

E da mão de um homem tapando a minha boca

Minha primeira lembrança.

Até hoje ouço a respiração pesada

A porta do banheiro trancada

E um botão colocado na casa errada.

A segunda vez que Deus me abandonou eu tinha 9 anos

Ainda lembro a vista do cemitério

E a marca da mordida de um homem no meu braço.

Lembro das batidas na janela

Dos gritos, dos vultos, dos sussurros

E de deixar tudo para trás pela primeira vez.

A terceira vez que Deus me abandonou eu tinha 12 anos

Lembro do calor do verão, do uniforme da escola,

E de um homem de capacete num terreno baldio.

A moto ainda ligada, plena luz do dia, o medo

Lembro da grama nas costas, manchas na camiseta branca,

E de correr a ponto de não mais sentir as pernas

Depois disso Deus me abandonou inúmeras vezes mais

Com 13, 16, 17, 20, 26 e até hoje

Todos os dias Deus me abandona um pouco

E quando não me abandona, me faz companhia em silêncio

Só pra ter certeza que meus demônios ainda vêm me visitar






Sobre caber



tudo que cabe na minha mão

é meu

e o que não cabe na minha mão

mas cabe no meu peito

é meu também

e o que não cabe no meu peito

mas cabe na minha mente

também é meu

e o que aparentemente

não cabe em lugar nenhum do mundo

sou eu







Eu espero a morte



Eu espero a morte

Eu espero a morte e sirvo um café

Ponho dois pães no forno e ajeito a mesa

Faço carinho nos gatos

Leio uma frase de efeito do meu livro favorito

Falo algumas palavras soltas de alguns idiomas que não domino

Respingo umas gotas de perfume no cabelo e no pulso deixo apenas a veia à mostra.

Eu espero a morte

Sem pressa, sem fuga

Pulmão que enche também esvazia

Coração também é carnificina

Mão que se cerra em um golpe, ou um laço

Vida que é vida sabe que morre

Não interessa o que eu penso, ou o que eu faço,

Eu espero a morte

Um sorriso no rosto

A vida é só isso


O que mais se pode esperar além da morte?







Além mar



Meu peito se enche de amor e de palavras em português

E surgem memórias de risadas que se entendiam no olhar

Em um ambiente que não era outra coisa senão acolhedor

Aqui nesse lugar meu cérebro funciona como uma máquina

E mistura quatro idiomas tentando entender o mundo ao redor

Esse mundo ao qual eu não pertenço

E que faz questão de ser difícil sempre que possível

Mas meu riso permanece vivo e forte e alto

E embora eu sinta tanta falta de tantos rostos e abraços

(Aqui ninguém me abraça)

Meu peito bate em liberdade

Nessa terra onde ninguém me entende

E quando eu olho ao redor

Com olhos curiosos e maravilhados

Também meus olhos são tristes e saudosos

E cada vez mais eu me torno uma mistura de êxtase e melancolia

E me sinto sozinha

Saudade é uma palavra bonita que mora em mim







Quarentena



Da minha janela vejo

cães passeando com seus humanos

Pássaros fazendo ninho

E a primavera nas folhas das árvores


Vejo um corpo deitado na grama

É o último piquenique de Petra

Mas ela não sabe.


E os outros de longe gritam:

Abram as ruas

Que minhas pernas querem correr

Abram os restaurantes

Que meu estômago quer comer

Estamos fartos! Não queremos esmolas!

Abram tudo!

As pernas, as bocas, as casas

E assim

Abriram-se as covas.


Faz três dias que acordo de madrugada

E escuto barulhos vindo de todas as paredes ao meu redor

Mas meus vizinhos não.


Já é noite

Mais outra noite

Hoje eu não vi o sol

Nem recebi amor







Vazio



Falava de amor

Como se a vida já tivesse acabado

E fumava seu cigarro cinza

Preenchendo com fumaça seu vazio existencial

Tentava me desvendar nas coisas que eu não dizia

E buscava no que eu dizia coisas que nunca existiram

Queria motivos, razões, sentimentos

Queria apaziguar a sua dor na minha

E cuidar de mim como ninguém cuidou dele

E queria me dizer o que queria também escutar

E entender a vida e a morte e o que há no meio

Tinha uma raiva de si que escondia entre as roupas

E o vício da linguagem rebuscada onde se protegia do mundo

E queria achar aconchego pra escapar da tristeza

Buscava alguém que fosse casa, ponte, abraço, cangote

E pensou que pudesse ser eu o seu porto seguro

Só porque eu estava ali e o escutei

Só porque eu também falava de amor







Números em mim



Eu sou

28 anos de desespero

Presos em 165 cm de melancolia.

Sou 55 kg de poesia

Que não cabem em lugar nenhum do mundo

Senão nesse corpo que me pertence.

Eu sou um grito de raiva preso entre meus 28 dentes.

Eu sou 86 bilhões de neurônios

Que se confundem com o universo.

Sou um coração que bate mais de 100 vezes por minuto

Cheio de esperança em um futuro melhor

Onde eu encontre um amor que sempre sorria ao me ver

E que me deixe dormir em seu peito quando eu estiver cansada de existir.







Solidão



Tem dias que a solidão me encontra

Dentro de uma garrafa de água gelada

No cheiro de um travesseiro

Entre as cores das nuvens

Tem dias que a parede azul me encara por longos minutos

E o silêncio é uma paz brutal que me sufoca

E o sol parece castigo

Tem dias que eu não quero sair da cama

E tomo banho como se fosse o último

E tomo café como se fosse o primeiro

E quando saio de casa não quero mais voltar

— E que lugar eu chamo de casa?

Tem dias que a solidão me alisa o cabelo

E me dá o colo que normalmente não tenho

E me chama pelo nome

E diz que vai ficar tudo bem...

Vai ficar tudo bem.







Grito de guerra



hoje acordei

e me olhei no espelho

sem medo

e sem vergonha

vi que no meu peito

o coração

já não sofre

pois nele bate

um amor sem dúvidas

por mim mesma

e no quarto o meu nome ecoa

como um grito de guerra

de quem sobreviveu

a todo tipo de miséria

E no fim eu sou apenas

o que eu faço

para me tornar

quem eu quero ser

todo dia é uma batalha dentro de mim

Mas eu não tenho medo de sangrar

Porque sou mulher

 

 

 

 

[imagens ©michael gaida]

 

 

 


 

 

 

 

Bianca Grassi nasceu em Jacobina, Bahia, e cresceu no sul do Brasil. Formada em publicidade e propaganda com ênfase em marketing pelo IPA em Porto Alegre/RS, é designer, ilustradora e representante da Comissão de Diversidade e Inclusão da Avast Software. Desde a adolescência escreve contos e poemas. Aos 16 anos, teve o seu primeiro conto publicado no livro Algumas Ficções, Editora De Leon. Atualmente mora em Praga, na República Tcheca.