§



O vestido dela era amarelo feito cor de jabuticaba

feito Manuel Bandeira e sua voz anasalada

ao ler Pasárgada

e mesmo que fosse bonita, mesmo sendo bonita,

a leitura em voz alta, o som do poeta, era ainda

mais bonito quando só palavra impressa preta

pequena num livro velho folheado guardado

amarelado esquecido

a voz do poeta são letras







LUA ESCRITA



Suspiras.

Perdoa se já não posso contê-las

as palavras

e fazes ar de cansado,

de quem já me sabe tanto,

e queria que eu chegasse

aí na cama, ao seu lado,

mas hoje não é noite para se fechar os olhos.

Ouvidos muito atentos

faço uma fogueira, que, embora invisível

afasta mau-olhado

e atrai palavras, desejos suspensos,

rumores de terra e céu,

com uma certa beleza,

de noites silenciosas, de amores de rua.

Perdoa, meu bem,

se hoje, não sou sua.







§



Tempte-se. Arranque as pétalas feias,

arranque os galhos-bebês

tire o excesso e preencha em volta

com folhas verdes e galhos

e outras peças

que se ajeitarão

agora tudo que vejo na minha frente

um acúmulo de caules 

acumulados.

Não, já não são mais flores

é este movimento com as mãos

centrífugo

um galho depois outro e outro

uma gérbera amarela

uma laranja

uma rosa esbranquiçada

uma após a outra

segure firme com as mãos, sem apertar muito

distancie do corpo para que os olhos possam ver

redondo, está? Quase, assim,

umas folhas mais à direita, sim,

quem sabe ainda uma outra

pionísia, destas já muito abertas

prestes a murchar

num buquê

vão.







§



Obscena. Praga e alguns dias de solidão me

deixaram sonhando com beijos luxuosos e

carícias. Sonhos perigosos. As coxas nuas do

menino na porta ao lado. Certo constrangimento

pela manhã diante de um desconhecido. Se

ele soubesse as mãos que sonhei. Um dia se

passou quase inteiro em silêncio. Algumas

palavras trocadas com estranhos, "uma cerveja,

por favor", "a conta", "onde é o banheiro?".

Caminhando por esta cidade como se ela não

fosse de verdade de tão bela e diferente. A

língua tcheca aumenta a irrealidade das coisas.

Pernas cansadas, encontro o que queria.

Poucas fotos, pois tudo é cartão-postal. Quero o

músculo, o cheiro, o inteiro. Tudo em que sonho

avesso. O silêncio me faz pornográfica.







ALHEIO VULTO



o lenço caindo da poltrona era você?


com o tempo

minhas dúvidas se tornam

pétalas







PEIXINHOS



Que dia triste. Ganhei um casal de peixes. Peixes

pretos escuros. Nunca tive peixes nem sonhava

como cuidá-los. Mas disseram que estes peixinhos

eram simples, peixes de poça, só precisavam

de um pouco d'água. Coloquei-os em uma bacia

transparente. E coloquei uma planta. E estava

começando a admirar a pequena beleza dos peixes

pretos e escuros na bacia. Não levo mais que um

minuto para começar a adorá-los. E chamo alguém

para ver, pensando — ter peixes! Mesmo que sejam

estes peixes pretos... escuros. E num apuro, como

quem quer demonstrar amor por alguém que já se

sabe amado, por um exagero, ou simplesmente

porque sempre tive as mãos desajeitadas, resolvi

tirar um pouco da água do aquário. Afinal, eram

peixes de poça. Não sei como soube que morreu,

olho de peixe morto é que não tinha. O peixe preto

coloriu-se todo. De vermelho, verde, azul. O peixe

morto embelezou-se, do preto do dia-a-dia, agora

morto, encheu-se de cores. Para que nós, os vivos,

o soubessem. E foi assim, por esta estranha lógica,

que soube, entendi, que quando peixe preto e escuro

se apruma e colore, se faz visto, é que morreu.







O GATO



me olha do fundo da cozinha. Seus olhinhos

brilham, e lá vem ele aproximando-se outra

vez; vai se enroscar nos meus pés, pedir algo

que se diz apenas com um miado — que eu não

entenderei — mas passarei minhas mãos sobre

seu pelo, direi também palavras dessas que não

se entendem, e depois ele se deita e se enrosca

um pouco mais. Ele me olha, não sei o que vê em

mim, talvez companhia noturna, como se eu fosse

gente como gato para quem não houvesse noite

nem dia. Nos fazemos companhia. Os gatos têm

lá seu jeito de pedir as coisas, é feliz aquele que

as entende. E agora sou como o gato que, de um

jeito sem palavras, pede. O gato responde de um

modo disperso, me deito, ele se afasta para outros

afazeres, mas depois volta. Tento colocá-lo ao meu

lado, mas ele não quer, levanta, procura o espaço

entre as minhas pernas, e é ali, entre coxas, pernas

e sexo, que ele fica. Não levo a sério malícias de

gato, mas com seu instinto felino, quer as coxas e

as pernas, e aqui, deita-se. Cochilamos. De repente

acordo. Bruscamente levanto-me, esquecida

do gato entre as minhas pernas. Ele se levanta,

O gato passeia para longe, eu acendo um cigarro, busco

um papel, tenho a caneta. Escrevo e não reconheço.

Hoje, nesta noite nova, com mais esperança do

que todas, a rua silenciosa, hoje, o que me cabe,

são dois olhos, brilhantes, de um gato, que agora

me olham, mudos, muda a mulher, mudo o gato,

mutuamente dois pares de olhos se olham como

sábios, com a tranquilidade de quem sabe que

todos os pedidos são sempre atendidos. Há noites em que o

pedido é um gato. E as pernas se enroscam.







TRÊS POEMAS SOBRE O PÓ



Volto ao pó,

entre tragadas na praça

e o canto do chinês

ao ar, à tarde

tudo são cantos alheios

num vagão de trem.




Bebo coca-cola

faço chá.

Ela sonhou que morava a alguns passos do mar

por duas noites seguidas.

Os casais vizinhos vivem a brigar

não é mar, é uma criança

preta e gorda.

Já não cheiram mais.




Cheirei três vezes

na primeira na Bahia

virei noite peguei ônibus

dia noite madrugada

adentro pra chegar na Diamantina

sexo com um homem que tinha um pau enorme

e transformava-se ao inalar

na segunda Icaraí

bobagem

amigos bobos

tagarelice dia seguinte

segunda trabalho

na terceira Flamengo

dois amigos um banheiro

pra não ter sono

volta a pé pelo Aterro

belo belo belo

se não tivesse me esquecido

dois amigos eu cama

ascensor para cadafalso

um amigo se levanta

um me toca

mas afasto

dedos noites dia

não







§



Hoje quando acordei

a primeira coisa que pensei

foi nos seus dois olhinhos

redondinhos

cor de mel

e a pequena mancha branca do olho esquerdo.

Lembrei dos seus sapatos de couro bom

dos seus dentes tão bem cuidados

em como você diz 'querida',

em como você me apresenta à família.

E quando te vi

reconheci os sapatos

mas os olhos, meu querido,

sempre tão redondinhos

cor de mel

dois olhos

e a pequena manchinha

— seus olhos pareciam de cego.







POEMAS ANA C.



Ao Leo M.



Nos seios de Ana C.

me vejo

pálida face abstrata da poeta que não fui

e que chutou em baldes

a vida passando ao lado




Os seios de Ana C.

para quem o prosador

bolinou um poemeto

espermas e mel

em que me farto

escorrem das minhas pernas

e dedos

que não sendo poeta

chupo depois




Sugo o leite dos poetas

a bela sem a fera

andarilha pilotis

reflexos nostálgicos

do que eu nem ela sou



[Do livro Da Ilha. Editacuja, 2009]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Beatriz Bastos nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou Areia (Aqueronta Movebo, 2000), Pandora — Fósforos de Segurança, em coautoria com Fernanda Branco (Azougue, 2003), Da Ilha (Editacuja, 2009) e Balaclava (no prelo, Coletivo Janga). Fez mestrado e doutorado em tradução de poesia, na PUC-Rio (2014).  Traduziu, em parceria com Paulo Henriques Britto, uma primeira antologia brasileira de Frank O'Hara, Meu coração está no bolso (Luna Parque, 2017). Traduziu, juntamente com Ismar Tirelli Neto, o livro Silêncio de John Cage (Cobogó, 2019). Faz parte da Janga, coletivo de poetas e editora independente. Trabalha como tradutora e professora.