Homens



Homens gritam demais

Falam demais

Homens não se escutam


Homens proliferam demais

Se aglomeram demais

Homens não se tocam


Homens querem demais

Ferem demais

Homens não se sentem


Homens sofrem demais

Morrem demais

Homens não choram


Homens se degeneram demais

Se veneram demais

Homens não se entendem


Homens consomem demais

Se consomem demais

Homens não se satisfazem


Homens deliberam demais

Enumeram demais

Homens não se acham


Homens desesperam demais

Correm demais

Homens nunca chegam







Mais do mesmo



Será que escrevemos

Sempre sobre os

Mesmos três ou

Quatro assuntos?!


Será que são sempre

As mesmas palavras, 

Que se rearranjam

Para dar a impressão

De um novo poema?


Será que poesia é isso:

Uma rua sem saída,

Que dá no muro

Do escasso repertório

De vida do poeta?!







Poema encadernadinho



para Vinicius de Moraes



Livros. Melhor não lê-los.

Mas se não os lemos, como sabê-los.

Se não os lemos, que de vazio, que de silêncio...

Como os queremos.


Na praia, as páginas se enchem de sal e areia.

Vai estragar! Paciência, história boa não dá para largar.

Em casa: na cama, no sofá, no banheiro. 


Leu uma vez, não vai ler de novo. Passa adiante.

Eu não! Vou guardar.


A aporrinhação: Não cabe mais na estante! 

É livro no chão. Calçando a mesa.

Daqui a pouco não vai sobrar espaço pra você.


Livros? Livros.  Melhor não lê-los:

Noites de insônia. Olha a postura. Nos olhos secura.

Meu Deus, salvai-nos! Livros são o demo. Melhor não lê-los...

Mas se não os lemos, como sabê-los?


Como saber da maciez da página virando

Do cheiro viciante.


Livros ateiam fogo na ignorância.

Que coisa louca, que coisa linda

Que necessários os livros são!



[Do livro A poesia está em tudo. Patuá, 2020]



E então? O que é que você me diz?



Que língua é essa

Que fala a beça

Coisas que eu não entendo?


Quero quem te traduza 

Palavras, olhares, gestos, pensamentos.


E que traduza também

O pouco de mim no que você diz.


Que dialeto é esse?

Eclético, hermético

E repleto de insignificâncias


Quero um interprete

Que faça tradução simultânea

Mesmo do que não é dito

E repito


Quero um dicionário

Eu-você

Você-eu

Última edição


Tua boca fala de tudo

Meu ouvido não é de nada


Em que momento nossas línguas secaram

E nossa torre virou babel?


Quero um chip 

No meu cérebro

Que processe teus dados

Em significados


Quero legenda no teu pé 

Para poder ler o que der


Que língua é essa que você fala a beça?







Ralo



Tempo é ralo que escoa vida.


É aquilo que passa entre os dedos

Quando a mão fecha. 

É palavra viajando da boca ao ouvido. 


Tempo vem de dentro e, quando não esvazia, preenche.


É quase solidão. 

Algumas vezes, companhia. 


É balão que sobe.

É bola de ferro no pé.


Tempo é ontem, hoje, amanhã. 

Tempo é até.


O tempo passa ou o tempo é passo? 


Tempo e espaço.


Tempo é compasso.

É respiro.


É intervalo entre destinos. 

É caminho percorrido.


Tempo é roda em movimento.

É picada a ser aberta.


O tempo está aqui e já foi.

Está no tapa que não dói e no que dói.

Está no antes e no depois. 

Está em mim, em ti, em nós. 


Tempo desata. Tempo amarra.

Tempo Esclarece. Tempo confunde.


O tempo não tem ponto,

Não tem virgula, 

Não respeita as gramáticas do universo,

Mas está preso neste verso.







Calha



A calha acolhe a chuva,

Encalha a terra,

Encolhe a água,

Empurra cano abaixo,

Tudo tubo

Toboágua

Cai chorando cachoeira e

Quando chega água-espuma

Se espalha

Espelho d'água.



[Do livro Territórios. Scortecci, 2009]



Bode espiador



Do alto, se vê tudo

Do alto, se vê o mundo


Até bode sabe disso

Até bode sobe montanha


O mundo tá cheio de predador


Pra que dar o couro

Se a vida não devolve nada?


Pelo sim, pelo não,

Tem que fugir da tosa

Pra não virar tapete

Ou sapato que pisa parente


Não dá para levar sozinho

Toda a culpa da humanidade,

Nem todo mundo nasceu Prometeu


E rumina o bode:

Na vida, melhor ser espiador

Que expiatório







Embalado a vácuo



Do oco

Nasce o

Poema


Nasce

Do que

Falta


Tem que ter vazio

Para ser poesia


Que nem vaso

Poema tem que ter dentro 

Pra por flor


Tendo espaço

O leitor preenche


Completa o poema

Que começou no poeta

ou no oco.


Tanto faz

É tudo o ermo.







Belo



Tirou a roupa, penteou o cabelo,

Ficou em pelo e, pela primeira vez,

Em muito tempo se sentiu pleno.







Saideira



Já que tudo está perdido

Peça para o músico tocar 

Algo que não faça sentido


Ao garçom, um último pedido.


Brinde o fim do dia e do mundo

Tanto faz. Uma hora tudo acaba.


E antes de desocupar a mesa

Peça a conta de tudo o que não viveu


Porque o que não se faz, também se paga.







Um copo de tédio



O copo vazio, 

Na sua transparência, 

É mais vasto que 

O copo com vinho

Que o olhar coloca 

Contra a luz para medir 

A densidade do líquido 

De aroma sólido 

Em vidro frágil 

E depois, 

Ainda que num movimento tardio,

Leva à boca 

Para molhar o tédio. 







Coisando



Coisa é qualquer coisa. Menos bicho e gente.

Se existe e não respira, é coisa.

Se não existe também é.


Coisas acontecem na vida e não são poucas 

Algumas são até importantes. Grande coisa!


Uma coisa é certa: coisa serve para tudo. 

Vira até verbo quando a gente precisa


E a gente sempre precisa pra dizer o que tem que ser dito

E a coisa não ficar pela metade


Essas coisas de gente que não fala coisa com coisa

Ou coisa que o valha.



[Poemas inéditos]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Armando Liguori Junior nasceu em 12 de dezembro de 1964, em São Paulo. Formado em jornalismo pela PUC-SP, e artes cênicas pelo Teatro-Escola Célia Helena. Trabalha como redator, roteirista e ator em eventos e vídeos corporativos. Tem três livros publicados, dois de poemas: A poesia está em tudo (Patuá, 2020), Territórios (Scortecci, 2009) e um de dramaturgia: Textos curtos para teatro e cinema (Giostri, 2017). Participou da antologia Ruínas (Patuá, 2020). Escreveu, adaptou e atuou em diversos espetáculos da Cia. Os Tios (da qual é um dos fundadores), entre eles: Dentro do Bosque, do filme Rashomon, de Kurosawa e Matteo Perdeu o Emprego, do livro de Gonçalo M. Tavares. Atualmente, mantém um canal no YouTube, Armando Liguori, dedicado à leitura poética de diversos autores brasileiros e estrangeiros.