ANA À ESQUERDA

 

 

"O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra". (Machado de Assis, "O Espelho")

 

 

Lavo, seco, passo-me. Agora, sou um homem que se pode pôr numa vitrine. Para alguém se amar ao espelho, importa cuidar também do que ali não aparece: as meias alvíssimas sob o cromo germânico, a obturação no molar esquerdo, o suco gástrico obrando o filé de há pouco. Tudo pronto, portanto, para que eu retire o pano com que venho cobrindo o espelho da sala, como se estivesse descerrando as cortinas de um monumento a mim mesmo. Na geladeira, o pote de caviar, a terrina de foie-gras e finos doces marroquinos me aguardam em fila indiana. Mas não sei se vou me animar a comê-los.

Há três noites tenho dificuldade em dormir. Domingo foi a folga de Ana Ecila. Na segunda, uma segunda-feira cinzenta como os pelos de um gato, ela não veio, nem deu satisfação. Hoje, 20 de fevereiro, festejo seu aniversário de trabalho: é minha empregada há onze anos, desde 1991. O que vai inventar para justificar a falta? Dirá, com certeza, que passou mal, que o inchaço nas pernas voltou e a impediu de caminhar, que teve de ir ao velório do vizinho do cunhado da prima, que. Só espero que retorne logo e, mais uma vez, esteja pronta para fazer, com discrição cúmplice, todo o necessário para combater a desordem da casa. Cabe a ela recolher, limpar ou descartar os apetrechos que vou largando pelo chão: as luvas cirúrgicas, a máscara submarina, as condecorações militares, as perucas ruivas e loiras, as batinas, os cetros, as cabeças empalhadas.

Ana faz falta, ainda que não abra a boca. Com ela eu gosto de conversar comigo: seus ouvidos são ótimos para criar o eco ideal de minha voz. Gozando o silêncio serviçal, sinto-me imperador. Há quatro dias, porém, o silêncio não provém de Ecila, é apenas meu. Ou, talvez, nem seja só meu: é, também, da torneira que não goteja, dos ponteiros emperrados no relógio sem pilha, dos livros sufocados sob o couro grosso da lombada, da begônia imobilizada nos centímetros da tela.

Gostava de provocá-la. De verificar até onde iam sua memória e obediência às diretrizes domésticas. Nisso, sou quase maníaco: desde criança, nunca admiti que alguém pudesse deslocar um objeto do lugar preciso que lhe impus. Para testá-la, nos primeiros meses, todo sábado, assim que Ana deixava o apartamento, pouco depois de 1h30 da tarde, dava-me ao trabalho de refazer a casa pelo avesso: punha livros na geladeira, esparzia alpiste no aquário, as baixelas de prata acolhiam sórdidas cuecas. Segunda à noite, antes de lançar-me ao leito, efetuava a lenta inspeção do trabalho de Ecila e constatava, feliz, que tudo voltara à ordem: lá estava o telefone no cesto de roupas, a lata de ervilha junto às gravatas, os óculos no freezer.

Ana: espanador na mão, da esquerda à direita, da direita à esquerda, inevitavelmente Ana. Fecho os olhos, para que nenhuma coisa na casa consiga me ver neste momento. De olhos trancados, torno-me inodoro para a bandeja de frutas, invisível para os quadros que dardejam uma luz suja e oleosa. Me sinto um bicho inexistente no meio de um mundo escuro. Abro os olhos? Vontade de outra vez ir ao chuveiro, como fui ontem, às dez da noite, sem saber se me limpava dos reflexos do dia grudados no corpo ou se me lavava de mim mesmo, até sentir-me um nada ensaboado, esvaindo-se em borbulhas pelo ralo.

Ando de um lado a outro, impaciente. Sem Ana, ignoro o que o espelho da sala pode me aprontar. Ele nunca vai morrer: sobrevive, esvaziado de todas as imagens que engoliu, e de nada vale destruí-lo, pois iria reproduzir-se inteiro em cada miúdo estilhaço. Especulo, então: e se fôssemos nós o reflexo deles, os malévolos? Se ali a vida acontecesse, e, do outro lado, apenas repetíssemos os gestos a que eles nos obrigam, quando fingem imitar o que na verdade determinam?

Para escapar deles, melhor não deixar que adquiram firmeza e identidade. Melhor deixá-los confusos, sem perceber direito o que se passa à sua frente. Em nome disso comprei as máscaras, por causa disso iniciei-me em trajes e trejeitos.

Perguntava a Ecila: "O que está vendo ali?". No começo, me respondia: "Mim mesma". "Preste mais atenção", eu replicava, com vigor na voz e alguns trocados na mão. "Dois bois e um coelho", ela corrigia. Sorria, vitorioso, e sentia um cheiro de capim e de estrume se espalhar na sala. Ana já se salvara. Eu precisava, então, salvar o coelho e os bois da memória do espelho. Seria difícil introduzir tais espécies de animal em meu pequeno apartamento, imaginava o escândalo que os vizinhos fariam ao ver uma vaca sendo içada janela adentro do 1001. A única saída era fazer o contrário: levar o espelho ao local onde pudessem estar vivendo as imagens que ele já aprisionara.

O porteiro me ajudou a embalar cuidadosamente o vidro, quando, num penúltimo dia de março, a Kombi deixou-me no Sítio da Arara. Numa estaca enlacei Meia-Noite e Maravilha, nos braços eu retinha com firmeza o trêmulo Cartola. "Boi vem, vem boi", cantarolei a esmo. Diante de nós, e de minha múltipla música, o espelho parecia se nublar. Não sei se convenci os animais — "Boi foi, foi boi" —, mas, para mim, tudo se tornava cristalino: na superfície polida vi boiarem dois nacos sangrentos de alcatra, além de uma cenoura roída pela metade. Eu já podia voltar para casa.

Freneticamente me empenhei em inúmeras batalhas para iludir o espelho. Deixava que ele mal me visse de barba grisalha e no segundo seguinte trocava a barba postiça pela peruca loira. O único perigo era que, ao impedir que ele me reconhecesse, eu também acabasse me estranhando, no frenesi dos disfarces de que me servia para lográ-lo. Entrava no banheiro coronel, saía escafandrista. Deitava-me tuberculoso, e dos lençóis emergia um hipopótamo. De canguru a protético era um pulo. Ana zanzava de cá pra lá, recolhendo os pedaços que meu presente sem memória espalhava, continuando.

Chego perto do espelho, que, desde sábado, está vendado com uma toalha negra. Só vou retirá-la quando Ecila voltar. Hoje não quero encará-lo. Meu medo é que ele tenha me aprisionado no jogo que armei para vencê-lo, e eu passe a me identificar apenas como um intervalo entre duas máscaras. E se eu for mesmo esse intervalo? Começo incomodamente a perceber que o espelho não é um lugar, é um tempo. É combustão pura e desmedida de um relâmpago, onde o tempo trisca, sôfrego e inalcançável. Não consigo domá-lo, sou o espelho do que me espelha. Dois reflexos, ele e eu, alinhados em posições idênticas e opostas: a minha é aquela que aponta para a morte.

Desanimo de vez. Um filete de suor escorre da testa, valho-me da ponta do pano preto para enxugar o rosto, tendo o cuidado de manter o vidro inteiramente coberto. Estou faminto. Dirijo-me à cozinha, abro de chofre a porta da geladeira, recebo na cara um frio mortiço e inóspito. Sem querer, descubro minha imagem, diluída na superfície de uma colher de sobremesa: eu côncavo de mim. Entre mim isto e eu aquilo, um ríspido abismo me prende do lado de fora de tudo que não chego a ser, e pouco a pouco escurece a miragem de um espaço que, ao mesmo tempo, contivesse os dois lados do mesmo lado.

Da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, rabisco a giz no pano preto uma frase qualquer. Seco de raiva coloco no colo caviar e doces.

 

 

 

 

 

SANT'ANTÔNIO DAS PALMAS

 

 

Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai,

não era homem, era um coco bem maduro, oi-oi.

Não era coco, era a creca de um macaco, ai-ai,

não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi.

(Cantiga de Espantar Males)

 

 

Porém o fato é que, naquele antigo tempo, Antônio desacreditava em feiticeiros. Aprazia-se na mofa: que ninguém, ou Quem Fosse, pudesse alterar o reto caminho humano. Proprietário de uma fazenda, de duas mulheres e três filhos, gostava de duvidar. "Amanhã não chove", apostava, apóstolo dos oráculos metereológicos, trazidos todas as manhãs pelos mais modernos jornais.

Era aquela uma aprazível natureza.

Azougue-dos-pobres, baratas, batráquios, cobras, dilúvios, doenças, estrias, ficínias — lá não existiam. Havia o haver comum, no trivial dos bens bons: figueiras, estrelas-do-egito, dengos, dálias, colibri-rubi, besouros, batata-branca, amor-do-mato. E os dias andando devagar, para a aurora não embicar com o crepúsculo.

Seguro de sim, Antônio decretava o que fazer, quanto comprar, quando vender. Aumentava-se, quase científico. Pés de alface, patas de bois, ciscos de pintos, de tudo se compunha a terra. Ele, de conta-gotas, ia dando de beber ao futuro.

Quando Flor se findou, mal quis concordar que ficara semiviúvo: enterrou-a com frases molhadas de "não, não". A faixa, no adorno da coroa, cintilava uma longa saudade: "Inglorio sera Flor viver sem ti". Ana, meio esperta, calculou que passaria a ter o dobro de marido. Afonso, Fabrício e Fulgêncio estavam longe, respirando o giz da escola. Dois deles choraram, Afonso emprestou-lhes a ponta seca de um lenço, prometendo que Ana seria a mãe dos três.

Incréu que era, nem pensava em missa de semana para a finada Flor. "Na lembrança, ela é minha, diária e mensal". Disseram, mas, que era mau para o morto espírito não se cuidar desses detalhes. A contra e a desgosto, que viesse o padre. Veio. Passava em ferro embrasado as palavras, que voavam, altas anjas em canto e plumagem, por sobre o cimo do topo da cúpula: martírio e morte, ressurreição. Começou o padre, de preto, a súbito falar bem baixo, até que nada mais se percebeu: palavras dele ou som qualquer, circunsperto. Um silêncio sem molas ou chilreios, oco impávido dentro de si, fábrica do inútil, colher de alpiste oferecida a um cachorro. Antônio estava surdo. Surdo como uma janela, com fechaduras de frente e verso, todo incapaz de distinguir o branco do vermelho, ainda que à concha de seu ouvido lhe soprassem as palavras "açucena" e "rosa".

Inflado de tanto silêncio, decidiu, tristíssimo, morar no lugar menos múrmuro do mundo: as coisas do redor sendo mudas, não teriam modo para xingá-lo de surdo. Escolheu esconder-se num descampado, fora da fazenda, um sítio seco situado atrás da Serra do Psiu.

Daí a dois dias e meia-hora, beijou os cabelos e o choro da mulher, e foi andando no meio da trilha. Logo apareceram os dois moleques, com as palmas, as cordas, as pás e um coco. Eram malévolos, de uma ruindade invicta. Arnaldo, eis o nome do pretinho. Ari era o outro. Tinham sido contratados na véspera, e agora levavam a bagagem de Antônio, indo na frente, nu coberto de capa e chinelos, sem olhar coisa nenhuma. Apertava na mão uma lasca de vidro, o sangue indicaria aos meninos o caminho de volta. Pagava no vermelho os pecados da descrença, jurava que se ficasse de novo audível, mesmo que só de um lado, construiria uma igreja tão grande que nela caberiam, além de doze santos e muitos fiéis, uma orquestra inteira, mais dois pianos, um lustre de cristal e um maestro.

A fazenda se afastava. Pararam na beira de um vazio. "É aqui onde o senhor vai estar?", perguntou Ari. Antônio, com gestos de girassol, fez que sim. Agora, ele não dizia: só apontava. Arnaldo começou a cavar. Dez centímetros mais tarde, o homem enfiou os pés no buraco. Estavam preparadas as raízes de Antônio. Cobriram-nas de terra, amarraram-lhe as palmas sobre o braço e penduraram, em volta do pescoço, o coco maduro. Os meninos teriam, semanal, a obrigação de mudar as palmas; quando a seca fosse braba, viriam regar os pés e o coco de Antônio. Depois de prendê-lo, furtaram-lhe a capa e os chinelos. Partiram rindo, horríveis de alegria.

Na manhã seguinte, o filho Afonso mostrou-lhe um pote de lágrimas: Ana, dorida, fizera uma coleta noturna pelo quarto dos serviçais da fazenda. Quase todos pingaram uma ou duas. Pediam, numerosas, que ele não ficasse.

Ficou. Tímidos, os primeiros namorados vieram descansar à sua sombra insone. Reclinavam-se no tronco, trocavam promessas e mordidas de amor. Em pouco tempo o corpo de Antônio estava repleto de corações, e dentro deles, em tosco talhe de canivete, as iniciais dos mais verdes amores.

Viam-no de boca aberta, a engolir vento e insetos, cujos zuíns pareciam não lhe incomodar. Assim sobrevivia, conservado em formato de saúde. Outras nuvens passaram. Ana descascava cebolas e chorava na cozinha, já sob a proteção dos braços peludos de Alfredo.

Com a chuva, desceram as gotas enormes. As palmas tremiam de arrepio, águas cachoeiras rolavam pela barba de Antônio. Nas noites do frio, dois sabiás cantaram de amor, nele quiseram fazer abrigo. Áspera, sua pele era ninho de bicadas. É das árvores a discrição na dor.

Mas o público precisava de mistérios. Fizeram preces, queriam crer em Sant'Antônio das Palmas. Uma paralítica conseguiu comer. Um cego começou a dançar. Um bandido aprendeu latim. Tudo devia ser por causa do Árvore. O povo, aos pares, cortavam os pulsos e fecundavam com sangue as palmas do coqueiro. Em seguida, de costas, recitavam o nome dos mais próprios e pesados pecados. Depois beijavam a casca do coco e afastavam-se, de olhar enviesado. Muitas prendas se fizeram: adubo, receitas, moedas, testamentos. Tudo marchava para o bolso de Aníbal, dono do sítio seco e do coqueiro.

Gastou-se menos de um ano. As pessoas voltavam ao vem-vai da vida. Fabrício e Fulgêncio fugiram, desenredando-se de uns amores por certas pessoas erradas. Ari era operário em uma fábrica de tamancos. Afonso especializou-se em canos e ralos. Ana ia para a cama com Amaro, mas só no mato, escondida de Alfredo. Arnaldo era sempre visto em companhia de um bezerro. Em Antônio o coco era caco. As palmas murchavam na fraqueza de seus braços. Ninguém mais vinha ver o Bobo-em-Pé. Faziam-lhe companhia três tocos de vela.

Nũa madrugada honesta de estrelas, Aníbal decidiu. Era seu, de lenda ou de lei, o metro onde Antônio estava plantado. Bastante aguentara, em troca das oferendas que recolhia em pecuniário êxtase, como empresário vitalício de Das Palmas, sem falar em um ou dois milagres que o inquilino operara em seu favor. Agora, queria aprumar o terreno, deixá-lo limpinho, semear a fortuna em novos plantios. Antônio não se moveu ou não entendeu o que lhe berrava Aníbal — as árvores são surdas e lentas. O dono, por fim, decidiu: um golpe em cada perna, derrubaria o Árvore. Antônio olhou a lâmina feroz. Segurou as folhas amarfanhadas. Por elas chamava a morte, no audaz mais belo. Aníbal atendeu o pedido, com um golpe forte que lhe rachou o tronco. Forte, tão forte, que ele agora está aqui, com suas palmas e um coco velho, completamente surdo e feliz no meio das outras plantas de Meu Paraíso.

 

 

 

 

 

 

MAL DO SÉCULO

 

 

Casimiro adentra no quarto, atrasou-se vinte minutos para a entrevista que marcamos. Sabes que horas são?, pergunto-lhe, tentando disfarçar o suor ansioso que meu rosto inunda. Quase meia-noite em Paris, responde-me sorrindo, e despe o paletó.

É um menino. Examino-lhe as mãos. Dedos finos como devem ser os de uma fada.

Tenho tido muitos sonhos, e nada pior para um poeta do que sonhar de verdade, na cegueira da noite. Os restos dos sonhos me perseguem durante o dia, e não sei o que fazer com tantas cenas estúpidas. Já não basta tê-las sofrido no pesadelo? Precisam retornar à luz do sol? Ontem sonhei com o baile. Na extremidade esquerda do salão, aquela mulher me obrigava a desejá-la. Cabelos, olhos, leque e véus — negros, negros. Levei-a à valsa. Rodamos ao som da orquestra, em doidas espirais. Aproximei-a de meus lábios. Quando ia beijá-la, percebi que seu rosto se transformara numa caveira. A nosso lado, quatro pares de esqueletos também dançavam. Tíbias, metatarsos, perônios e fêmures cobertos por finas rendas e sedas francesas. Fugi apavorado, atravessei uma alameda, pulei uma cerca de arame farpado e só me tranquilizei ao perceber que finalmente chegava a um ambiente familiar: logo reconheci a paisagem de Paris. As estáveis estrelas se estilhaçavam ao arrepio das águas do Sena. O vento invernal uivava nas frinchas das portas. Meu Deus, mas que voz era aquela, que recortava como agudo estilete o negrume noturno? Aproximou-se de mim o vulto, sempre cantando, e de sua boca saíam canções que já ouvira na infância: era Isaura, antiga mucama da casa. Não entendi o que uma escrava saída de Niterói vinha fazer em Paris. E só encontrava uma explicação: ela viera cantar para mim. Sentou-se no chão, as costas largas apoiadas contra a amurada. Deita, Nhonhô. Dorme aqui no meu colo.

Dedos finos. Treze anos, e, como as fadas, ele também não tem barba. Mas, diferente delas, escreve poemas. Veio a meu quarto mostrar seus versos. Enquanto me passa um caderno manuscrito, percebo que não consegue desviar o olhar do anel de ametista que uso no anular direito. "Treze primaveras" é o título que deu ao caderno, numa caligrafia bem talhada e masculina. Começo a folheá-lo. Casimiro se ergue da poltrona e vem sentar-se a meu lado, na cama. Faço esforço para me concentrar nos versos.

Não gosto dos poemas. O rapaz já leu muito, mas leu mal. Como é possível aceitar que alguém, aos 13 anos, rime "ananás" com "tra-lo-ás"? Decerto é influência do pai dele, português e verdureiro. Prossigo a leitura. Casimiro achega-se ainda mais, como se quisesse acompanhar minha reação a cada um dos versos. Virgens, sonhos, desmaios, será que a poesia é só isso? O que lhe parece, Manuel Antônio? Não tenho coragem de lhe dizer a verdade: ele jamais será um poeta. Possivelmente daqui a dois anos estará trabalhando de peito nu e tamancas na quitanda do pai, e as folhas das "Treze primaveras" servirão para embrulhar bananas. Quem nasceu Casimiro nunca chegará a Maciel Monteiro. São ótimos os poemas, afirmo. Estou certo de que serás um grande escritor. É impressionante a tua cultura literária. Faz muito tempo que...

Deita, Nhonhô. Dorme aqui no meu colo. A lembrança volta a rodopiar na minha cabeça. Distraído, aproximo em demasia os poemas da chama inoportuna de uma vela. Nossas mãos rapidamente se tocam no afã de impedir que o caderno se queime.

Casimiro José se levanta, ajeita as folhas, dirige-se para a porta. Não sei se acreditou no que eu disse, ou se desconfiou de que eu repetia o mesmo elogio para todos. Peço: Não partas tão cedo! Insisto: Vamos falar mais de poesia.

Teatralmente, acendo um charuto e, andando à roda do menino, recito-lhe "Se eu morresse amanhã!". Entre as estrofes, simulo uma tosse discreta, para dar mais drama à leitura. Ao vê-lo em êxtase, emendo com "Lembrança de morrer", e aí sou eu mesmo que acredito na história, terminando em lágrimas a declamação. Recomponho-me rapidamente, e, num impulso, abro a gaveta da escrivaninha e dela retiro um maço de papel. Toma, vou te emprestar meus últimos poemas, a parte quatro de um livro que se chama Lira dos vinte anos, mas peço-te que m’os devolva até o próximo domingo, 25 de abril, quando vou partir em viagem. Há muito tempo venho escrevendo o livro, mas o que fiz recentemente me leva a querer jogar fora todo o resto. Leio, então, o primeiro poema da nova seção: "Meus oito anos". Belíssimo!, entusiasma-se o rapaz.

Com meus originais sob o braço, prepara-se para sair, segura a maçaneta. Por três segundos ponho a mão sobre a dele, tentando impedi-lo de completar o gesto. Percebe que estou confuso. Vira-se de súbito e nossos rostos ficam milimetricamente próximos. Faz um gesto carinhoso em meus cabelos, os corações são trezentos tamborins. Casimiro aperta o meu ombro, e depois, deixando com delicadeza os dedos percorrerem o meu braço, suavemente me diz: Não.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Antônio Carlos Secchin, além de poeta e ensaísta, é ficcionista bissexto. Publica, então, esses contos porque em 2020 fevereiro tem 29 dias. Doutor em Letras, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras.