©engin akyurt
 

 

 

 
 

 

 

 

Esquizofrenia



Todos os anos, os corredores deste lugar mudam de tom. Tudo está cinza, assim como os olhos daqueles que vagam por aqui.

Personagens esquizofrênicos, delírios de perseguição, pervertidos que se consideram poetas. Este hospital tem todos os tipos de loucura e aberração que a sociedade rejeitou. Todos os esquecidos residem neste lugar.

— Odeio este hospital psiquiátrico. Anos a fio, aqui apodrecendo.

Detesto os doutores e enfermeiros, detesto seus sorrisos hipócritas e seus coquetéis de placebo. Quero matar todos.

Quero manchar com seu sangue as paredes desse lugar. Vou despedaçá-los. Um dia! Um dia eu vou fazer!

— Doutora, isso que disse é muito sinistro — respondeu a paciente.







Depois do fim



Elas se beijaram, e a lua não pode deixar de embrandecer-se um pouco.

Valquíria tirou a blusa com lentidão cerimonial, como se um movimento abrupto pudesse destruir o planeta. Um par de lábios pousou em seus seios, muito perto da alma, com uma delicadeza sobre-humana.

Os dedos de Valquíria viajaram para seu lugar favorito: as costas de Helena. Os lábios de ambas roçaram novamente, como o amor e a morte costumam fazer. Uma chuva tempestuosa e agradável desencadeou entre suas pernas.

Um homem olhou tudo de fora, com a testa beijando a janela. Não havia luxúria em seus olhos, nenhum desejo, havia lágrimas. Duas mulheres gozando dentro da cabana e uma delas era a esposa dele.

Ele subiu no cavalo, que relinchou quando sentiu o peso do cavaleiro e o de sua tristeza. Avançou ao longo da planície na direção da lua e um segundo cavalo saiu atrás dele. Este foi impulsionado pela morte, que o seguiu atraído pelo perfume de um coração partido.

Seu orgulho como homem era uma arma que não poderia ser usada neste caso. Sua pistola deveria ser usada em uma guerra entre homens, a revolução, à qual ele estava se dirigindo. Aquele par de mulheres era intocáveis: ele não podia matar sua esposa, muito menos, sua própria irmã.







Oculto



"Por que você foi embora?" Diz uma mensagem no meu celular, enviada às 3 da manhã de um número desconhecido.

Eu já fui de tantos lugares e de tantas pessoas que não podia saber de quem se tratava.

Eu penso o dia todo, tirando e metendo o celular na bolsa, relendo uma vez ou outra a mensagem, como se algum momento fosse dizer mais alguma coisa.

Às 4 da tarde, respondo o que acredito ser a resposta à razão de qualquer partida "porque era necessário", imediatamente recebo outra mensagem do mesmo número "Quando quiser, pode voltar".

Não me atrevo a perguntar-lhe quem era e penso "Por acaso isso já não é um retorno?".

Pois de saber o nome da pessoa estaria pensando nela, mas ao não saber de quem se trata, de alguma forma e mesmo que seja por um momento, voltei a todos lugares onde fui e para os braços de todos, que me tiveram um dia.







Pandemia



Fazia trinta anos.

Trinta anos que Ernesto ligava para ela quatro vezes ao dia durante o trabalho.

Trinta anos recebendo flores ou chocolates uma vez por semana ou, em tempos de economia ruim, o convite ao jardim para sentar de mãos dadas e compartilhar a imagem da lua ou contar estrelas.

E agora o vírus o levou embora.

Ela sentiu sua cabeça girar. Que estava com náuseas. Que o ar não atingia seus pulmões.

Porém sabia que seria somente os primeiros dias.

Os primeiros dias sem Ernesto.







Quarentena silenciosa



A Morte bateu na porta e a pequena Giovanna foi quem abriu.

Desde o início da pandemia, era sempre assim, não tinha tempo a perder.

— Onde está tua mãe? — perguntou a Morte, em seu vestido preto, seus cabelos ruivos e suas pupilas de fogo cinza.

A garota já a conhecia. Ela a vira há dois meses, no dia em que sua avó não retornou mais do Tide Setúbal; agora o pai e a mãe com os mesmos sintomas, mas como explicar as marcas que o vírus não faz?

— Siga-me — disse a pequena Giovanna.

Elas caminharam até o final do corredor e chegaram a uma porta, que a garota abriu para demonstrar boas maneiras. O interior estava completamente escuro.

As cortinas fechadas e a janela trancada roubaram as cores da sala.

— Obrigada — disse a Morte em sua voz rouca e sensual. Ela entrou e saiu um minuto depois, com um coração em uma sacola de pano.

Quando a Morte foi embora, a pequena Giovanna foi até a cozinha, chegando ao exato momento em que uma mulher com o rosto machucado e ferido se jogou de uma cadeira. No entanto, a corda em seu pescoço, por algum motivo inexplicável, quebrou como se fosse borracha.

— Mãe — a menininha murmurou e a mulher virou-se imediatamente. Ela chorou envergonhada e abraçou sua filha como nunca antes.

— Mamãe, lê um livro pra mim?

— Eu não posso, Giovanna, eu devo cozinhar para quando seu pai acordar.

— Eu não me preocuparia com isso, eu não acho que ele se levanta — a garotinha disse antes de pegar um livro.







Votivus



"Por que eu quase não vejo mais você?" Perguntou o menino, sentado no colo da avó.

"A morte não nos deixa", respondeu a velha na cadeira de balanço.

O ritual foi uma pequena montanha de velas a foto. As chamas tremiam de frio. A noite envelhecia rápido.

"Mas eu quero ver você todos os dias, vó", insistiu o menino.

"Eu sei, pequeno". Mas a morte é inflexível, raramente abre exceções. Mas não se preocupe, sempre te vejo nessas datas.

E as horas foram passando, e o menino abraçou a avó para se lembrar dela o ano todo. Ele a ouviu cantar para ele e sentiu a mão dela acariciando seu cabelo.

Ao amanhecer, a luz iluminou a oferenda e a fotografia do menino no centro.

Um rastro frio foi deixado no colo da velha.







Quimera



O céu de Miragem acinzentou depois da sesta. Um apagão! Um acontecimento não inventado, o deslumbre: uma revoada de ventos arranhava os cabelos, quase todos crespos, e os corações, quase todos secos, da gente. Não sabíamos se era nervoso, se era um nevoeiro perdido, se era falta de costume ou vontade de começar logo a chuva, porque as agonias eram de criança e a fé era de quem tinha acabado de ver Deus. Já se tinha, como prenúncio, o sumário, a demora de meses em que não se pingava nenhum molhado. Apenas neblina enganada. E nada, nadinha! Era o quase sertão de sempre e tinha que parecer sofrido e faziam parecer. Acreditávamos! O turrão era o tijolo no barranco, quase uma anemia de chão. Era pedra esfarelada na mão como se fosse farinha de beiju. Endureceu tanto, que morreu como poeira. Convalesceu sem misericórdias, sem condescendência. E não era sozinho no velório. Tinham outros tantos moribundos: gados inteiros, alqueires inteiros e lembranças inteiras morridas assim ao léu. Tudo porque foi dito que com sertão não se brinca, mesmo que fosse um quase sertão. E que era sempre lugar de gente que urra, de labutas, de gentes crentes de fé e de castigo. E vinha na memória o cisco e as recordações de quando apanhávamos como malinos em recreios de rua, de depois de mainha gritar: corre pra dentro, peste! Um frio na barriga, quase de barrela. Ardia e pulsava dentro, dando choques e brilhinhos. Era assim que senti quando escureceu o céu. E começaram os trovões. O som, do que estava pra armar no céu, fazia a gente querer sombrear a gente mesmo. Pra ver a festa, a esperança de ter um lajedo, mesmo que fosse só até perder o olhar. Esperávamos como santos ocos na certeza de festejos. Demorava derramar. E mais outro trovão. Depois da pintura de tons gris, os relâmpagos. Eram trocados. Primeiro um, depois o outro. Rasgavam a lonjura os raios. Era tão bonito de se ver, que dava uma sensação estranha de que tudo começaria de novo, e de novo. Invertido! E que se faria separação da luz e das trevas no primeiro dia ou seria novamente o ardido da explosão do início, dos elementos dos entendidos das letras. A mistura! Que algumas coisas estariam recomeçando, talvez os mesmos erros. E era isso que sentíamos. Sem a menor consideração pelos costumes. Era tudo rebeldia. A cada estrondo os bichos aquietavam. Era o silêncio. Só ouvimos o que tínhamos dentro de nós e era bem pouquinho. Uma ninharia. Era quase nada, igual a isso tudo ao redor. Juvenal tentava puxar sua tropa para os coxos; Dona Amélia, já octogenária, brincava feito filhote desmamado atrás dos vagalumes atordoados pelos mexidos dos matos; Bigode latia o desespero e a confusão das folhas que tufavam perto da cancela. Parecia final de ano, quando a gente sabia que amanhã seria sempre a mesma coisa, mas que hoje parecia só com hoje. O rebolado de dentro já fazia redemoinhos, já eram maremotos e salvem-se quem puder. Mas nem uma gota descia. As lamparinas já inflamavam a escurecida tarde mágica. Os baldes postos, as gamelas todas desemborcadas. Os meninos já estavam peladinhos para o banho, para as bicas. Corava a gente a esperança que engrandecia pequena e depois desmedida. E mais um rasgo do céu e outro trovão. Num instante tive a impressão de que o chão tremeu apavorado com o suor que estava por vir. E veio ansioso o tardio. Pingou o primeiro caldo doce de Deus. Depois mais um, dois, três e a testa já lacrimejava. Não sabia se era de dentro o choro ou se era banhado. Caiu feito parido. De uma vez. Não era nem fria, nem de vez a água. Era sonhada. E os barulhos e os alumiares harmonizaram. Eram juntas e siamesas. E do derramado veio o sereno, a chuva acalmada que molhava os pés da gente, depois molhava os pés do chão e, ainda mais depois, os pés dos sorrisos parcos. Vó Luzia já tinha falado que iria ir sem ver arco-íris, mas se viu encantada ao ver que as cores dele nunca tinham morrido e eram iguaizinhos ao que era antes, quando menina. Ficou sentada na cadeira, cúmplice, bem na porta da rua, e só deixando os pés molhando debaixo da chuvarada. A quentura se foi tomando afrescos, se lavando, boiando para outra margem e aí veio aquela certeza de que tudo começaria de novo e de novo. Foi tudo rasteiro e o sol veio num estalo. Primeiro secou o caminho, depois a janela, e seguiu o varal até esturricar os matos, os pelos, a garganta e o sono, que veio suave, estiando até parar no acostumado.

Foi tudo numa tarde e acordei da sesta, querendo que o acinzentado fosse verdade, mas só ficou o gostinho de mar nos dedos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, e atua na área de Economia da Saúde. Publicou contos em revistas literárias do Brasil, Portugal e Alemanha. Participou, em 2019, como jurada do prêmio VIP de Literatura (Categoria Contos). Colaborou nas coletâneas Conte Outra Vez, um tributo aos 30 anos da morte de Raul Seixas, e Mitos Modernos I, que recebeu o prêmio Le Blanc de Literatura e Arte Sequencial, como melhor Antologia de 2018. Atualmente, organiza uma coletânea de contos sobre realismo mágico/fantástico.