©martin pyško

 

 

 

 
 

 

 

 

§

 

nomear a cidade nessas pedras

[ a voz ecoando tua perda ]

& a tarefa de trazer de volta

as túnicas lembranças da mãe

rígida como uma parede

a enfrentar o alvorecer das ruínas

 

a cidade e a mãe

tão pentecostais nas maneiras de espreitar manhãs

com suas dimensões de afagar memórias

 

mas, igual a ninguém,

curam aquele gesto de sazonar o desamor.

 

 

 

 

 

 

§

 

o que dizer ao morto

a respeito da dramaturgia das flores?

[ inventário seminal de confissões ]

 

decerto, não perguntará

pela última elipse

ornada de ombro e canção

para calar horizontes

 

tão pouco pela cadeira vazia

estendida entre ninar a infância

e o velho prelúdio das mãos

no acontecimento de confidenciar histórias

 

depois de novembro

o morto apalpará um amor

que nunca poderá ver

 

em seu coração, quintais insustentáveis,

demandam meridianos

auferem ensaio a ocidentalidade

aberta a equação e o desespero do sacrifício

 

a patonomia do morto

providencia um repertório irredutível pela verdade

 

ecumênico, caligrafa a cartografia do signo

& o íntimo de seu mapa são sete

eternos palmos de solidão.

 

 

 

 

 

 

aos mortos de sempre

 

 

feito imagem e semelhança da significação

todo morto leva incertezas

& a tarefa de amar o vazio

 

em profundidade naufraga entre terras

[ escuridão de descansar segredos ]

sem saber horizontalizar a candura

das mãos no atravessar de fronteiras

 

com as retinas banhadas em nudez

alonga alguns diferentes infinitos

como quem nunca acaba

de cantar a ferida aberta

na garganta sequiosa da escuridão

 

para todos os mortos fecharam janelas

porque há silêncios demais

a circundar a saída da casa

que eles nunca mais entrarão

para revirar a clandestinidade

de esquecidas palavras.

 

 

 

 

 

 

§

 

recolhidos dentro da orquestração

ontem a cicatriz material

[ abraçada a insuportável fonêmica do túmulo ]

acinzentou os mortos cobertos de germinações

 

os mesmos mortos

que sabem apanhar chãos

com lições de asas em destroços

têm suas casas imersas

em testemunhadas pronúncias

 

traz ainda fórmulas

com ossatórias perguntas:

como desabraçar as dóceis ênfases

penduradas na couraça de deus?

 

é como se todas as manhãs

os mortos menosprezassem escuros quintais

onde estão artefatizados companheiros

& seus pesos dialetais

a arrastar impiedosos caminhos ao mar.

 

 

 

 

 

 

§

 

o que fazer para amanhã

a contundência das pedras

& os humanísticos pés de deus

[ alicerçados no ofício em desuso ]

exemplifiquem como sarar o amor

erguido sob a capacidade de ser triste?

 

nesse tempo, quantos homens

sabem escutar janelas abertas?

 

quantos e tantas rupturas

desistem de tanger pássaros?

 

e outros, sem compaixões,

comungam com as mãos

nos amontoados nomes sem barbárie?

 

na garganta do verbo

amanhã, dentro das cidades, nascerão flores

onde nem todos sabem escrever esperanças.

 

 

 

 

 

 

§

 

é difícil inaugurar um velho rosto

[ pendendo de afetação aberta da memória ]

a depor chuvas e diásporas

feitas de muros desertos

quando naufragar fosse encontrar chegadas

 

percute em nós uma inundação

desenhada em direção às mãos de deus

quando o naufrágio fosse tarde demais

para mostrar como deixamos

a voz hasteada de rio

& a distância entre ser triste na tarde

 

intumesça meus olhos, pai

tropel vazio de perguntar pelo envelhecimento

sem amaldiçoar o mundo.

 

 

 

 

 

 

§

 

não é fácil nomear o mundo

carregar essa vertebrada arquitetura

[ sem derramar delicadeza ]

na inútil tarefa de consolar túmulos

 

com a boca suja de ferrugem

& qualquer salmo incompleto entre os dentes

pronto para apedrejar a pronúncia madalena, pergunto:

 

será se deus e seu desígnio

abraçará o escuro dentro do homem

depois de semear coisas que sempre morrerão?

 

 

 

 

 

 

§

 

no espelho residem a comunhão

& o hábito de desenterrar

a beleza enfrentada pelo pai

e o caminho a entoar manhãs sem mães

 

retiro dos túmulos

observações nas coisas irremediáveis

[ hoje termino com a palavra ideia ]

não aprendi desentristecer a solidão

 

a bandeira que ergo, grita:

será se deus amanhã

saberá soletrar a tarefa

de ouvir a miséria nos homens?

 

 

 

 

 

 

§

 

é como a velha casa reaberta

[ ressonância de habitar abismos ]

em quotidiano perdulário de lembradas renúncias

 

aprofunda a saudade

a maneira de cintilar albergues

pois, falta verticalizar o remanescer de tua existência

no desesperar da epiderme de coisas ausentes

 

a casa pertence ao outro lado

hálito abatido

para arrastar tua humana figura

entre trapos & vigílias matutinas

perante alguns vagos jardins sem definições

 

materialmente a memória reacende candeeiros

ao silêncio da casa

e outras janelas fechadas

estão impedindo te acordar

para essas tragédias escrituradas

no calendário de agora.

 

 

 

 

 

 

§

 

das unhas não dirá talvez

nelas plantaram calçadas

& epidêmicas madrugadas

[ ressoam outras partes ]

de cerradas janelas

 

o envelhecimento não te importa

 

há incêndios nos dramas

à revelia de traduzir

cada estandarte

na vingança de teu algoz

 

antigamente, cultivava confissões

para desagonizar silêncios

 

enterrado

o estopim das flores

ignoram teu corpo entre vermes

raízes

e o crivo do coração cravado de saudade.

 

 

 

 

 

 

§

 

dando sombra ao rosto do morto

a tampa do ataúde

colocou entre deus e eu

um hemisfério entristecido

 

só assim descobri

que jardins envelhecidos

inclinaram sem perguntas

[ sobre a ferida gerúndio ]

à serventia das rezas

 

se fosse deus

& o arqueológico argumento

de comover o clérigo e as flores de maio

meditaria um pouco mais diante do grito

deixaria o verbo morrer inconcluso

para sacramentar não só lázaro

e todos teriam seus pentecostes.

 

 

 

 

 

 

para meu pai, Raimundo Gonçalves

 

 

insone e sem razão irreversível

meu pai conduziu estações a menos

 

ao dormitar há uma triste distância

impossível calcinar acenos

ou outra coisa à maneira de amar

chegar-lhe tão perto

 

sob seu peito

[ a profusão de um solo ]

a fome de promessa a pisar o mundo

inflamam a descalça distância

 

traço tristezas

na folha inútil

 

com os olhos em imprevisibilidades

assombro o instante e os acontecimentos

 

meu pai habita a dicotomia

& eu vou lambendo angústia

na distração da tragédia.

 

 

 

 

 

 

para o poeta Charles Trocate e seus gestos no mundo

 

 

 

dos fantasmas que roem

os ossos da tarde

somente um quer navegar

pela solitude dos barcos

porque há ainda a paisagem

[ a digladiar ramificações ]

nos corações de poucos homens

 

afeito a idade do medo

esse mesmo fantasma

ensaia com espanto o que ver:

são os primeiros dias, sem ternura,

no anonimato de deus & suas agruras.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Airton Souza é poeta e professor. Nasceu em Marabá, no Pará. Já venceu diversos prêmios literários, entre eles: Prêmio Dalcídio Jurandir de Literatura 2013, com o livro de poemas Ser não sendo, 4º Prêmio Proex de Arte e Cultura, com o livro de poemas manhã cerzida, III Prêmio de Literatura da UFES, promovido pela Universidade Federal do Espírito Santo, com o livro de poemas Cortejo & outras begônias. Em 2017 esteve entre os vencedores de mais de dezoito prêmios literários, entre eles venceu o 1º Prêmio de Poesia Cruz e Sousa, promovido pela Editora Do Carmo, de Brasília e o Prêmio Vicente de Carvalho, promovido bienalmente pela da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro. Já em 2019 venceu mais de dez prêmios literários, entre os quais o Prêmio Mário Quintana 2019, pela segunda vez consecutiva, promovido pela Sintrajufe, do Rio Grande do Sul e o Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, nas categorias Ensaio e Literatura Juvenil. É mestre de Letras, com ênfase nos estudos literários, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Seus poemas já foram traduzidos para o espanhol, o inglês e o alemão.