Ele era apenas um rapaz latino-americano. Mais do que apenas americano, era sul-americano. Mais do que latino-americano, ele era também em latim. Mais do que em português e latim, ele era o Brasil em português. Mais do que o Brasil, ele era o Ceará. Mais do que o Ceará, ele era apenas a pequena Sobral. Belchior, o "rapaz latino-americano sem dinheiro no banco", sobrava nas artes. Mais do que um cantor e compositor, ele era um pintor. Mais do que um pintor de músicas antológicas, Belchior foi apenas um poeta que experimentou a poesia em uma vida de intensos 70 anos.

De fato, ouvir Belchior talvez não seja dedicar a ele o melhor dos nossos sentidos. Ele escrevia poemas e, depois, os cantava. Ler as canções de Belchior é ler a vida — em Sobral, no Ceará, no Brasil, na Idade Média, em latim, em inglês, no mundo em constante transformação. Belchior soube se transformar e soube ler as transformações do mundo que habitou. Foi no calor da hora da morte de Belchior que o jornalista cultural Jotabê Medeiros lançou a biografia Belchior, Apenas um Rapaz Latino-Americano, pela Todavia. Um livro que fica mais gostoso se lido enquanto ouvimos Belchior cantar ao fundo. Aliás, escrevo essa resenha acompanhado do som do blues de Belchior no background.

Aliterações, metáforas e intertextualidades: as composições do rapaz sem dinheiro eram construídas com o pé na sua cidade natal, Sobral, mas com a cabeça no tempo passado, no seu presente e com grande capacidade de captar o Zeitgeist que o cercava. As músicas de Belchior são uma singela crítica à ditadura militar, uma ode ao amor, um desafio e uma homenagem a Caetano Veloso, um embate permanente com o seu parceiro, inimigo e conterrâneo Raimundo Fagner. Além disso, ouvir Belchior é conversar com Chico Buarque, com Luiz Gonzaga, com Bob Dylan, Stanley Kubrick, Rimbaud, Baudelaire, João Cabral de Melo Neto e com Dante Alighieri. Portanto, Belchior era muito mais do que "apenas" um rapaz. O livro de Jotabê Medeiros é uma boa introdução ao vasto universo do cearense Belchior; muito bom para quem quer ser apresentado a sua obra, mas pouco aprofundado para quem já o conhece. Os fãs, certamente, irão aplaudir.

Dividido em capítulos, a biografia acompanha a jornada de Belchior em ordem cronológica. Da adolescência, internado por anos em um mosteiro de freis capuchinhos, onde é apresentado ao latim e à cultura erudita, passando pelo desencanto com Deus, à entrada no curso de medicina (que abandonou no último ano para se dedicar à música), às apresentações festivais, à mudança para São Paulo, ao sucesso e ao reconhecimento de sua música por grandes nomes que o gravaram, como a essencial Elis Regina. Mulheres, muitas mulheres foram a consequência de uma imagem que o construiu como um improvável sex symbol. Filhos, algum dinheiro e um surpreendente "desaparecimento" da imprensa, da família, dos fãs e dos shows nos últimos anos de vida até a repentina morte, que o tirou definitivamente de campo aos 70 anos. A biografia de Jotabê é uma tentativa de não deixar que Belchior permaneça no ostracismo a que que ele mesmo se impôs no final, talvez por não aguentar conviver com a pressão do sucesso a todo o momento. Jotabê Medeiros levanta algumas hipóteses para seu comportamento errante.

Capaz de traduzir seu sentimento em versos do mais alto lirismo, Belchior surpreendeu ao se afastar dos filhos para sempre e ao descobrir, com frieza, meses depois, que a mãe havia morrido. Belchior foi um Meursault, o frio protagonista de O Estrangeiro, de Albert Camus. Belchior foi um Rimbaud, que saiu de campo aos 19 anos após escrever os mais potentes versos na França; foi um engenheiro de melodias que conversam com o hoje, com o agora e com o ontem. Belchior, Apenas um Rapaz Latino-Americano mostra ao leitor, ainda em luto, que ele foi um artista genial, mas que também foi "apenas" humano, demasiado humano.


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O livro: Jotabê Medeiros. Belchior, Apenas um Rapaz Latino-Americano.
São Paulo: Todavia, 2017, 240 págs., RS$ 59,90
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julho, 2020