O Brasil, hoje, se assume como um país cuja maioria da população é preta ou mestiça. Isso significa que, se vivêssemos há dois ou três séculos, o país teria mais da metade da população escravizada pela minoria branca. Mais do que o Haiti, o Brasil é uma África do Sul com apartheid. Ou, ironicamente, o Brasil é o que os Estados Unidos ainda são também: uma nação racista e desigual, que violentou milhões de nativos simplesmente por um detalhe dermatológico.

Por mais que consideremos ridículo um indivíduo perder a condição de humano por apresentar um pigmento de coloração marrom, cuja principal função é proteger o DNA contra a ação nociva da radiação emitida pelo sol, a nossa História escreveu vários capítulos manchados pela escravidão. E reforça a moda bolsonarista de imitar costumes e políticas ditados por americanos. Uma maneira de visitar o sofrimento imposto a negros no país que se orgulha em se definir como um free country é ler o comovente híbrido de romance, autobiografia e manifesto Incidentes na vida de uma menina escrava, da americana Harriet Ann Jacobs.

Trata-se de uma história real. Longe de ser uma A escrava Isaura, que idealiza a menina branca que sofre como uma escravizada negra, aqui o enredo é de carne e osso, escrito por Harriet nas horas de descanso (horas livres?) de uma vida em que trabalhou, apanhou e foi humilhada por seus donos brancos no sul escravizador de uma América que se escondia na hipocrisia do cristianismo. Sem poder cuidar de e proteger seus filhos, foi violentada em silêncio por seu dono, que a ameaçava com punições aos filhos. Mesmo assim, contra todo o opressor sistema dos estados do sul, Harriet foge e se esconde em um cômodo apertado, onde permanece anônima por sete anos, praticamente sem mexer as pernas. Sequelas permanentes acompanharam seu corpo em busca de liberdade. Sequelas incuráveis se instalaram em sua alma, que apenas rezava em uma Bíblia, cujas palavras lia, mas não ouvia sair da boca de brancos cristãos.

Incidentes na vida de uma menina escrava é uma leitura que provoca o leitor. Raiva, pena, redenção. Escrito por uma jovem que não deveria ter aprendido a ler e escrever. Escrito por uma jovem que nascera apenas para obedecer e apanhar quieta. Harriet se supera e consegue extrair passagens que, mesmo na tradução para o português, carregam um lirismo militante em momentos como estes: "Os segredos da escravidão são tão ocultos quanto os da Inquisição"; "A liberdade é mais valiosa do que a vida"; "A crueldade é contagiosa em comunidades não civilizadas"; "A escravidão é uma maldição para os negros, assim como o é para os brancos"; "Fiquei só com meus pensamentos — tão sem estrelas quanto a escuridão da meia-noite ao redor"; "Não há laços tão fortes quanto os que são criados no sofrimento conjunto". Assim como o mulato Machado de Assis, contemporâneo de Harriet Ann Jacobs, ela escreve conversando com o leitor, provavelmente um leitor branco, para quem ela tenta explicar o que é ser uma escrava negra, olhada com preconceito e violência por olhos sem melanina.

Para um brasileiro, ler Incidentes na vida de uma menina escrava é como se olhar no espelho e descobrir, com vergonha, que nós imitamos nos irmãos da América do Norte o legado mais cruel que eles se autoimpuseram. Harriet Ann Jacobs dá um tapa na cara de cristãos hipócritas que escondem o racismo e o fascismo herdados sob versículos de um Deus que juram enxergar acima de todos. Os incidentes na vida de uma menina escrava são também incidentes na vida de um país subalterno da América do Sul escravagista, que se recusa a ver o pigmento que tem como principal função proteger humanos da ação nociva da ignorância sem cor.



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O livro: Harriet Ann Jacobs. Incidentes na vida de uma menina escrava.
São Paulo: Todavia, 2019, 288 págs., RS$ 38,90
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dezembro, 2020