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A arte da interpretação nos permite acessar sentidos e saberes. E o teatro é em si um grande portal. Em cena, atrizes e atores ganham mais do que luzes e aplausos, recebem a responsabilidade de escolher partituras corporais e verbais, pois é também por intermédio dessas chaves que a interpretação acontece. E ao ver um espetáculo, qual é a missão da crítica especializada na arte?

Percebemos que a estética filosófica propicia uma ampliação necessária. E a crítica só existe quando se baseia na filosofia. Observamos, por exemplo, que André Bazin ao defender que o papel da crítica "não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte" nos convida a pensar eticamente na nossa função social. E é nessa perspectiva, que agora penso sobre o espetáculo teatral Violetas.

Em cena, a atriz, cantora e pesquisadora Mayra Montenegro orquestra os instrumentos do próprio corpo. Ao escolher falar da história da sua avó materna, a dona Wilma, por ser mulher e compreender a estrutura social na qual ela, sua mãe e sua avó nasceram, Mayra tece, por meio das suas memórias emotivas, uma narrativa que nos leva a pensar e a sentir a importância particular e coletiva do feminismo.

Mayra Montenegro

 

Quando pensamos na mulher moderna, quais as leituras que nos chegam? Distante da modernidade das Sufragistas, a TV e o rádio, durante um tempo, venderam a imagem de que mulher moderna é aquela que tem seus eletrodomésticos atualizados. Dona Wilma, uma das Violetas e também avó da criadora Mayra, viveu esse tempo. Mas de acordo com o espetáculo, dona Wilma respirava arte e magia, não conseguiu trabalhar profissionalmente como cantora e atriz, mas lutou para que outras gerações de mulheres se realizassem, alimentou a poesia na própria vida e cantou em seus infinitos sonhos...

Dona Wilma

 

E é cantando que Mayra Montenegro inicia o espetáculo Violetas. Mayra canta as canções imortalizadas pela História, mas também anuncia a vivência de um novo tempo. Pois a primavera feminista que evidencia o poder da mulher nas artes, nas ciências, na filosofia e nos diversos saberes, reafirma-se na voz de Mayra, celebra a voz de Eleonora, faz ecoar a voz de dona Wilma, e reforça o coro das violetas que continuam a florescer na vida do século XXI. A Cia Violetas é protagonizada por mulheres, fundada por mãe e filha, e agora oferece esse espetáculo dirigido a partir da mimese corpórea exercitada pela Raquel Scotti Hirson (Teatro Lume). E a flor, inclusive, que simboliza a relação com a espiritualidade, parece nos convidar ao processo de meditação e respeito às nossas ancestrais.

Mayra Montenegro e Eleonora Montenegro

 

Dentro de Violetas, Montenegro conta que ao ver uma apresentação da atriz Bibi Ferreira, a sua avó (dona Wilma), em meio aos ensurdecedores aplausos finais, disse "Sou eu! Sou eu! Como é que eu posso me aplaudir?". Na literatura, o século XXI se inaugura com uma enxurrada de livros a partir da autoficção. Entre eles, lembramos-nos do livro A chave de casa, escrito pela Tatiana Salem Levy. Nessa obra, a autora se conecta à escrita a partir das suas raízes ancestrais, mas também reafirma seu lugar de fala. E seja na literatura, no cinema, nas artes visuais ou nas artes cênicas, quando a conjuntura se torna absurda, serpentear entre a arte e a realidade pode ser uma forma de encontrar novos sentidos.

Uma violeta, Bibi Ferreira, Mayra Montenegro

 e Ana Gouveia

 

A filósofa Maria Zambrano, em seu livro Filosofia y Poesía, provoca imensas reflexões sobre o poder da palavra. A voz, foco de pesquisa de Mayra Montenegro, realiza um teatro que se pensa enquanto arte, mas faz com que a sociedade se pense enquanto humanidade. A voz da artista, pode ser acolhida por sua esplendorosa beleza se exercitarmos a leitura a partir do juízo, pode ser reconhecida pela sua técnica, pois demonstra domínio de suas cores... Todavia, ao pensar a partir do micro e se expandir pelo todo, nos propicia a pensar o espetáculo numa perspectiva estética mais ampla, pois gera harmonia em sua forma, essência e existência, mas também inquieta, já que demonstra as limitações do decadente modelo patriarcal.

Em maio de 1955, a revista Housekeeping Monthly publicou um artigo chamado "O guia da boa esposa". Ao se inspirar nesse fato, pela ironia e sarcasmo, a artista demonstra o absurdo de uma sociedade que se fundamenta no silenciamento das mulheres. Mas "a palavra significa a abertura total de uma vida a quem em seu corpo, sua carne e sua alma, até seu pensamento só servem de instrumentos, modos de se estender entre as coisas. E uma vida que ao ter liberdade, só a usa para voltar onde pode encontrar-se com todos." (Zambrano, 1996: 115). Por isso, ao assistir Violetas, escutar Mayra falar da sua história, da história da sua avó e das diversas mulheres que perpassam os sons do seu corpo, notamos que quando uma mulher conta a própria história, ela convida a seguinte à assumir a autoria da própria vida.

 

 

Ficha técnica do espetáculo

 

Raquel Scotti Hirson na direção, Eleonora Montenegro na assistência da direção e Marcelina Moraes com a Amora produções. Violetas se apresentam em diversos lugares do Brasil. A Cia. Violetas já esteve em Viena (Áustria) e também guarda em seu repertório o espetáculo "De janelas e luas". Pode ser acompanhada e contratada pelas redes sociais: www.instagram.com/ciavioletas e  www.facebook.com/ciavioletasdeteatro.

 

 

junho, 2019

 

 

Eunice Boreal é filósofa, produtora e artista. Nasceu em 1984, na capital paraibana. Pratica arte desde os nove anos e hoje, a partir do seu conceito de Poesia TransForme, desenha, dirige filmes, canta, atua e promove o método com inspirações interdisciplinares. Realiza cursos e palestras há anos. Já recebeu diversos prêmios, realiza projetos e publica em revistas nacionais e internacionais. É a fundadora e diretora geral do Lavip – Laboratório de vivências poéticas. Mais em www.instagram/euniceboreal e www.instagram.com/estudiolavip.

 

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