INFORTÚNIO

 

 

meu pedido é simples:

quero ouvir Brodsky lendo "A song"

 

o youtube fala em investir milhões

o youtube não me entende

 

fala em investir milhões

e eu procuro pela milionésima vez

a entrevista de Drummond

para Leda Nagle

 

eu só queria ver o Rosa

dando entrevista aos alemães

Clarice explicando Lispector

ou Auden in his own words

mas o youtube interrompe tudo

e fala em ganhar milhões,

multiplicar, fazer fortuna

 

procuro a voz de Maiakóvski

Diadorim se despindo para Bethânia

o violão do João, um verso do Macalé

mais uma dose de Van Zandt

voltar a "Ribeirão" uma outra vez

 

mas sempre entra alguém

incrivelmente otimista e sorridente

cuspindo cifras

cobrindo tudo com juros

à sombra das grandes contas

que movem tudo — e nada

 

são quatro, cinco segundos

antes do abismo do poema

 

são quatro, cinco segundos

e tudo pode desabar

atrás de algumas moedas

que nunca vão nos pertencer

 

 

[poema inédito]

 

 

 

 

 

 

TEORIA DA POESIA

 

 

é pouco o que as poças dizem

sobre a chuva, é mínima a memória

que os mapas guardam do mundo

 

o suor na camisa, na calça, nas meias,

tudo trai a violenta passagem do sol

 

 

 

 

 

 

À FLOR DO ASFALTO

 

 

(1)

 

você nunca me disse o nome

das ruas que nos levam ao engano

você nunca quis saber

do que são feitas as horas

que deixo cair na calçada

 

(você, talvez eu, talvez ninguém)

 

na rua estreita encontro

o cheiro do fumo do meu vô

que nunca vi

e é como se pudesse dizer

lar e mascar no peito

as lascas de seu tempo

de sua distância

 

alguém que talvez pareça

com minha vó que nunca vi

me olha através da cortina de linguiças

velas buchas tiras de couro

e parece me chamar

para uma conversa

a que nunca dei ouvidos

 

então entro lento

e saio levando-os na pele

à flor da pele, à flor do asfalto

em carne viva

 

 

(2)

 

ninharia, ninharia

você gasta assim a fortuna

dos seus dias

deixa em cada esquina

mais do que leva

 

você já reparou

que o cheiro da tarde

vai embora com o sol

e que a noite

quando apaga sua pressa

acende outro universo

nas suas narinas?

 

não há placas que indiquem

os grandes riscos do dia

você anda e não sabe que os ruídos

dos carros e pregões e aflitos

vão morar para sempre

entre as ruínas da sua memória

 

você não sabe que seus mortos

estão sentados nas cadeiras

que o velho ajusta

no meio da calçada

 

que eles calçam os sapatos

desprezados no conserto

(uma parede inteira de passos perdidos

guardados para pés que nunca virão)

 

que eles se protegem

entre as hastes do guarda-chuva

costurado pacientemente

aos pés da multidão

 

você não vê que seus mortos fogem

com as sombras (como sombras)

numa rua com nome de flor

perdida no centro da cidade

 

você não rega seus mortos

 

 

(3)

 

o retrato de família

talvez

ou outra coleção de escombros

vai embora na caçamba

aqui ficava uma casa

ali outra e outra e outra

havia nomes dentro das casas

havia homens dentro dos nomes

mulheres moravam sob essas telhas

janela adentro havia amores

havia guerras nos cobertores

e as manchas todas da noite

havia sombras e ainda há

 

você ainda ouve o relógio gritar

você ainda se assusta

com os mesmos fantasmas

sob as muitas camadas de tinta

sob as muitas camadas de tempo

 

os golpes da marreta revelam

que o mundo sempre esteve ali

bem abaixo dos seus pés

intacto esperando que você acordasse

 

nu

sem nada que o proteja

paredes pisos cimento tinta

ferro asfalto telhas panos

borracha pele palavra

 

e você o despreza

migrante

sem saber de onde

ou pra onde

 

 

 

 

 

 

CAPTCHA

 

 

não sou um robô, juro

mas nem sempre distingo bem

uma rua e outra

placas de trânsito

fachadas do comércio

 

dos postes, por exemplo,

desvio o quanto posso

porque em toda a cidade

espalham fios, ordens

e os convites que não cabem

nos rumos que a tarde morna

toma (o amor quebrado

que volta rápido, o ouro

mais bem pago, as multas

apagadas, a melhor

travesti da cidade)

 

não sou um robô, creio

mas talvez não tenha

para lhe convencer

nada além de um jeito de ler

o céu quando o sol se afasta

e essa desconfiança

da noite que invadimos

e nos invade

 

 

 

 

 

 

EXAMES DE ROTINA

 

 

imigrantes ilegais ateiam fogo ao próprio corpo.

bombas apagam sinais de vida no território inimigo.

o desespero varre para o mar centenas de refugiados.

exército garante a realização de eleições democráticas.

novo ataque a mercado matou menos que o anterior.

novo ataque a hospital. novo ataque a bairros mortos.

vivas, epidemias erradicadas desmentem dados oficiais.

escravidão é reinventada no olho das grandes cidades.

desempregados ganham chutes. manifestantes, chumbo.

fronteiras — cada vez mais — precisam de muralhas.

o vocabulário é persistente: fome, seca, sede, guerra.

por seu turno, líderes mundiais lideram o mundo

(atores sempre atuam). o poema, estranhamente, mudo.

 

 

 

 

 

 

AR LIVRE

 

 

o olho caça sem força

bromélias acácias ipês

 

florescem farmácias

ao longo do caminho

 

nas dobras do jardim

há sempre algum soldado

 

brotam gestos brutos

de todas as sementes

 

os caules já hasteiam

a flor do desespero

 

pássaro e aço rimam

na manhã entreaberta

 

as plantas consomem

o que não queremos ver

 

e descansam nos sulcos

de que a mão desistiu

 

: aparo a febre do dia

sem esperança de fruto

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Tarso de Melo é poeta e ensaísta, nascido em Santo André/SP em 1976. Lançou, entre outros, Íntimo desabrigo (2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (com Carlos Augusto Lima, 2018) e Alguns rastros (2018). Em breve lançará a antologia Rastros, reunindo grande parte dos poemas que publicou desde sua estreia, há vinte anos. Advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Colaborador das revistas Cult e Quatro Cinco Um. É curador de "Vozes Versos" na Tapera Taperá (com Heitor Ferraz Mello), de "Passaporte: Literatura" no Goethe-Institut SP (com Marcelo Lotufo) e de "Algaravia! poesia na Mário e nos bairros", da Biblioteca Mário de Andrade.