O escritor Chico Lopes, nascido em Novo Horizonte/SP, radicou-se em Poços de Caldas/MG, em 1992 e, desde então, vem seguindo uma carreira literária, que inclui o trabalho como tradutor, em vários gêneros. Mas essa carreira teve início, com acolhida crítica sempre positiva em todo o território nacional, com os contos. Em 2000, o Instituto Moreira Salles (Poços de Caldas/MG), lançou seu primeiro livro no gênero, Nó de sombras, seguido por Dobras da noite, em 2004. Em 2010, Lopes lançou o terceiro, Hóspedes do vento, pela Nankin Editorial/SP, e sua carreira foi se abrindo para o romance, a poesia, a crônica, as memórias e os ensaios. Em seu primeiro romance, O estranho no corredor, ele foi premiado com um Jabuti. Completando quinze obras publicadas, Lopes retorna aos contos e lança o quarto livro do tipo, A passagem invisível, pela editora Laranja Original, de São Paulo. E sente-se feliz com o retorno. [Silvana Guimarães]

 

 

 

 

Silvana Guimarães - Sua carreira vem sendo marcada pela versatilidade: dois livros de poesia, um de memórias, um de crônicas, dois de ensaios, dois romances, mas só nos contos você agora chega a quatro. A preferência é clara. Pode nos falar por que os contos o interessam tanto?

 

Chico Lopes - Eu comecei por eles. Eu era de escrever poesia, em Português e Inglês, na minha juventude, no auge dos Beatles e do Tropicalismo e depois nos anos 1970, de tanta efervescência cultural. Naquela época, eu e amigos de geração queríamos mesmo era escrever letras de música popular jovem, ser Chico e Caetano ou Lennon e McCartney. Mas eu queria escrever prosa, e a primeira coisa que escrevi foi um conto, imitando abertamente o meu ídolo de então, Dalton Trevisan. Outros vieram, mas sem importância, pretensiosos, e fui rasgando (durante muito tempo não fiz senão rasgar tentativas de ser um escritor de prosa). Penso que eu sentia, intuitivamente, que me daria melhor com formas curtas. Venerava e ainda venero o conto, por seu poder de síntese, de atmosfera, de visão compacta e drástica do mundo.

 

 

SG - A passagem invisível contém oito narrativas. Há uma delas que quase chega a ser uma novela, passando de 40 páginas. A questão da extensão do conto, geralmente visto como algo necessariamente curto, não o afeta?

 

CL - Nunca penso nisso. Persigo uma ideia, uma determinada linha intuitiva que pode me levar ao curto tanto quanto ao longo, porque meus quatro livros, até aqui, mostram isso. Na verdade, cheguei ao romance (O estranho no corredor, publicado em 2011 pela Editora 34) como se estivesse praticando a dilatação de um conto. Penso que os padrões convencionais para cada gênero vêm sendo explodidos há muito tempo, pela contemporaneidade, e me sinto à vontade com essa liberdade toda que a literatura atual conquistou. Só que é preciso não exagerar e, a meu ver, se contos muito longos já deixariam de ser contos, os minicontos que às vezes leio por aí me parecem meio forçados, desastrosos, um tratado mais de preguiça que de concisão. Só que a justa voz, a justa medida, é caso pessoal e cabe a cada autor descobrir.

 

 

SG - Por que o título A passagem invisível? Parece sugerir algo próximo à ficção-científica ou a algum conceito religioso ou metafísico.

 

CL - É o título do conto que abre o livro. Não posso falar muito dele, porque não quero roubar ao leitor o possível prazer de lê-lo, mas, de certo modo, ele tem uma vaga atmosfera de ficção científica, pois é situado numa metrópole de distopia, de pesadelo, onde acontece de tudo, inclusive execuções de pessoas e linchamentos patrocinados por refrigerantes. Penso que o título acaba sendo uma metáfora — por onde fugir de um mundo que se tornou medonho? A fuga, a saída, qual seria? Algo que ninguém, ou algo que apenas uns poucos vissem. A proposta fica em aberto.

 

 

 

 

SG - Pode falar de outros contos do livro?

 

CL - Sim. Há narrativas sobre homofobia, racismo, perseguição política, marginalidade, violência, educação destruída, e esses contos, que eu vinha escrevendo havia anos, ganharam uma inquietante atualidade com o agravamento dos problemas brasileiros que já eram trágicos, mas que ficaram mais trágicos ainda sob esse governo horrível. Sou, em geral, tido como um escritor sombrio e não faço pactos para tornar a realidade um doce que não é nem nunca será, pois confio na inteligência e na sensibilidade dos meus leitores. Acho que o realismo não exclui a beleza. E, aliás, nem pratico o realismo num sentido muito estrito e tradicional, nenhum escritor contemporâneo se sujeita mais a essas camisas de força estéticas e ideológicas. Gosto de uma prosa aberta para a poesia, para o mistério.

 

 

SG - Que pensa da literatura brasileira atual? Tem outros projetos em andamento para 2020?

 

CL - Tenho amizade com muitos autores novos, alguns conhecidos, outros não, e o Facebook e outros meios eletrônicos nos oferecem alternativas para uma solidariedade possível. Nunca seremos sucessos comerciais, por certo, mas não é uma ambição que, frustrada, nos impeça de continuar.Acho que a literatura brasileira está vigorosa, com esses autores novos, as pequenas editoras publicando (mesmo com todos os obstáculos), os encontros de grupos e outras atividades alternativas acontecendo. Quanto aos projetos, tenho um novo romance inédito (o mais longo que já escrevi, o terceiro) inscrito num concurso e meu livro de crônicas O abraço dos cegos (Editora Penalux), publicado em 2018, concorre ao "Prêmio Oceanos". Inéditos eu sempre produzo. Escrevo o tempo todo. É obsessivo.

 

 

SG - Na primeira resenha de A passagem invisível, Daniel Brazil [danbrazil.wordpress.com] destaca que "Chico já confessou, em entrevista, que sua literatura fala de perdedores, de marginalizados" (...) "Em seus contos, desde que publicou seu primeiro livro, se aventura pelos becos mais tortuosos da alma humana, pisando em terreno onde o sórdido e o sublime podem germinar lado a lado". "Movidos pela angústia" é o título dela. Então, como Clarice Lispector perguntou um dia a Pablo Neruda (1969), quero saber: Chico, escrever melhora a angústia de viver?

 

 

CL - Não melhora, não. Mas a destila, filtra, dá-lhe uma direção — a estética. Que é parcialmente salvadora sim. Eu seria bem mais infeliz se não escrevesse, se não tivesse o poder de projetar e exorcizar meus fantasmas pessoais e os fantasmas coletivos que me assediam. Mas, de vez em quando, penso que não sou o escritor típico, visto que sou também pintor. A Pintura me dá uma espécie de alívio quanto às tensões da escrita, sendo sensorial, imagética, inocente até, podendo dispensar grandes reflexões; materializa imaginações de outro modo, acho que mais tranquilizador (ao menos a minha). Corro para a Pintura para me poupar dores do pensamento, que às vezes remetem a becos sem saída terríveis. Não é que não pinte quadros dramáticos, às vezes, mas no mais estou preocupado é com a cor, com visões mais líricas (pássaros etc.).

 

 

SG - Krishnamurti Góes dos Anjos, no prefácio do seu livro, afirma com precisão que seu conto "White Christmas" (...) "é exposição nua e crua de nossa doença da violência". (...) "A estupidez que todo brasileiro sabe qual é, e que abate os mais fracos porque pobres. Ali estão personagens (vítima e algozes) bastante emblemáticos da violência policial brasileira, muitas vezes até aplaudida por outros monstros à paisana". Você crê na função social da literatura? No papel político do escritor?

 

 

CL - É terreno minado, esse. Se você crê estritamente nessa função social, perde um tanto como artista criador. Naturalmente, tenho uma ideologia, ainda que difusa e, como sou filho de um espanhol de Málaga, costumo dizer que "hay gobierno, soy contra" desde pequeno. Tenho horror a figuras de autoridade que, só por estar nessa posição, julgam-se acima da humanidade comum, podendo ser inclusive imbecis. Sempre detestei isso profunda, visceralmente, e até, nos meus tempos de estudante, dava um jeito de não desfilar com as classes nos 7 de setembro, porque me parecia sumamente patético ficar "marchando" uniformizado. Eu me sinto sempre na oposição e, quanto à Literatura, se ela não pode ceder demais às ideologias, acho que não pode ignorar o tecido social em que estamos todos inseridos tampouco. O escritor alinhado com poderes oficiais para mim é o que de pior existe. Penso que nós, escritores, temos que ser convictos filhos do Não. Filhos do Não, aliás, era o título que eu queria dar inicialmente ao A Passagem Invisível.

 

 

SG - Segundo o poeta Antonio Carlos Secchin, na apresentação do livro, "em A passagem invisível, nada é óbvio, na contracorrente da onda neonaturalista que parece dominar boa parte de nossa ficção". E ressalta que, em cinco das oito narrativas que compõem o livro, a "passagem" é para a morte. Você acredita que em alguns contextos a morte pode ter uma conotação positiva? Seja como fim ou recomeço?

 

CL - Outro terreno minado. Se eu disser que às vezes acho a Morte a solução mais natural e tranquila possível, vão pensar que estou pregando o suicídio. Penso que me atrai a morte serena, a morte daqueles que já enterraram as ilusões tolas da vida, os laços mais grosseiros, e já entenderam que estamos todos destinados à perda. Vejo uma grande sabedoria no desprendimento progressivo, e ele vem mesmo, com a idade. Com 67 anos, meu distanciamento a coisas que me angustiavam e me deixavam constantemente preocupado na juventude é enorme. Penso que a frase de Secchin é fruto de boa observação, mas que as várias "passagens" que o livro traz podem ter diferentes significados e implicações em cada conto que ele observou.

 

Acho que há uma depuração em minha visão dessas coisas. Não que eu não tema a morte. Mas a ideia constante da morte é muito útil a um ser humano consciente de fato, a meu ver, elimina futilidades e imprime aos atos um senso maior de nossa realidade humana, que é limitada, e promove saudáveis danos no ego, nosso grande inimigo; nossa vaidade e nossas paixões têm um destino certo: os vermes; isso pode ser desanimador, mas pode ser libertador também. Penso que assimilei muito das leituras de Schopenhauer e dos existencialistas, nesse aspecto.

 

 

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setembro, 2019

 

 

Chico Lopes, nascido em Novo Horizonte/SP, desde 1992 radicado em Poços de Caldas/MG. Começou como pintor e jornalista e se dedicou a essas atividades até chegar à publicação de seu primeiro livro de contos, "Nó de sombras", aos 48 anos, em 2000, já residindo em Poços. Publicou quinze livros até aqui, incluindo poesia, biografia, ensaios, memórias, crônicas e contos. É também tradutor, tendo traduzido 37 livros de ficção em Inglês. Em 2012 seu primeiro romance, O estranho no corredor, venceu um prêmio Jabuti.

 

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Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Escritora, participou de algumas coletâneas, entre elas, duas que organizou: 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas (Terracota, 2009) e Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte e do site Escritoras Suicidas. Vive em Belo Horizonte.

 

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