©tante tati
 

 

 

 
 

 

 

 

ANATOMIA

 

 

Pesquisadores descobriram que os ossos dos camaleões brilham no escuro através da pele.

Os peixes têm ossos finos chamados espinhas.

As borboletas são revestidas por uma espécie de armadura que segura suas asas.

Os ossos dos homens quebram fácil com o passar dos anos.

 

Camaleões mudam de cor.

Peixes mudam de águas.

Borboletas mudam de flor.

Homens mudam de ideia.

 

Os camaleões fazem coisas absurdas com os olhos.

Os peixes fazem coisas absurdas com as brânquias.

As borboletas fazem coisas absurdas com as asas.

Os homens fazem coisas absurdas com os homens.

 

Camaleões são solitários.

Peixes morrem pela boca.

Borboletas são lagartas a caminho do céu.

Pesquisadores não sabem por que os homens demoram tanto para ver com o coração.

 

 

 

 

 

 

CARTAS MARCADAS

 

 

Eu estico meus dedos no abismo dos dias

e a história sempre se repete

não sei se costurar melancolias seja suficiente

para o estancar da sangria

dos tempos cada vez mais truculentos

depois desses dias absurdos

que se amontoam pelas nossas beiras

 

há quem diga que o rei está louco

— não —

o rei está enclausurado

o louco é o bobo da corte que usurpou as cartas

fazendo-nos caras e bocas

enquanto separa o baralho em partes desiguais

curingas guardados na manga

espalhando laranjas

festejando abacates

 

nem venha me dizer que novos ventos

haverão de soprar futuros

em promissoras colheitas

se a terra já é seca e a água rasa

somos apenas o povo sangrando o peito

no trabalho servil

no trabalho escravo

no salário escasso

somos cartas marcadas

deitamos joelhos

lambemos o chão

aos lobos homenageados

 

o meu rei está enclausurado

o teu louco joga as cartas

como quem brinca de memória barata

há quem diga que é o fim da mamata

mas eles nos roubam os sonhos

em requintes de crueldade

que nos custarão os olhos e a alma.

 

 

 

 

 

 

ESPÉCIES

 

 

Para cultivar orquídeas

é preciso da natureza

o nitrogênio, o fósforo,

cálcio, cobre,

enxofre, magnésio e zinco.

 

Para criar passarinhos

basta um grande horizonte,

asas abertas,

céu azul,

sol a pino,

nuvens esparsas,

tempestades,

belas tardes,

inteiras noites pelo caminho,

voos largos,

tempos livres.

 

Para ser humano

é preciso não ter feito

da estrada que ficou ao longe

um silêncio sem retorno.

 

 

 

 

 

 

CARDÍACAS

 

 

Já que não sei dizer

de outro modo

então eu escrevo

minhas insuficiências

 

(quem sabe,

n'algum dia eu caiba nos vazios

daquilo que

— eu não sei de nada

— eu só sinto muito)

 

 

 

 

 

 

C(ASAS)

 

 

Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,

verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,

telhados que acolhem chuvas esparsas,

uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,

chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

 

Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidos

a habitar minhas casas por trás das retinas,

que corressem livres,cantantes, felizes

— esses meninos e essas meninas —

entre o balanço das redes e o colher das amoras,

fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...

 

Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,

depois das costas, das omoplatas,

dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,

passeios noturnos indo dar na janela da alma,

quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito

e eu pudesse esconder toda essa 'minha gente' a salvo.

 

Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,

e 'os meus meninos e as minhas meninas' seriam crianças felizes,

sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,

amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,

no centro, nos cirros, nos nimbos,

cirandas e rodas e poesias e prosas,

risadas rosadas, espécies de esperanças eternas

em casas etéreas com tetos tão ternos,

deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...

 

Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada

— depois da lama, além do lótus —

haverá de nos caber um respirar em amor

onde 'meus meninos e minhas meninas'

sejam sementes e brotos e flores e frutos

de um deus mais decente.

 

 

 

 

 

 

NO REINO RASGADO POR DENTRO

 

 

Depois das sete

a gente segue a linha reta

na estrada torta,

os becos estão escuros

como buracos negros para depois dos muros.

 

Nossos corpos desgastados

contrastando fomes já costumeiras pelas calçadas,

nossas almas derrotadas

destilando indiferenças corriqueiras.

 

As brechas dos nossos abismos

espiam meninos aguardando novos tempos,

enquanto os homens atiram balas

em oitenta tiros destemidos,

avisando escusos reinos

no perfurar das alheias desgraças.

 

Penduramos esperanças em varais rasgados:

quem se importa

se a estrada ficou torta

depois da linha reta...

 

Já era noite nos tempos cinzas

quando nossas certezas foram mortas,

no descascar das feridas

outras tantas histórias perderam a rota.

 

Diluídos em moedas falsas

não valemos nada

— somos apenas o povo do reino —

quem se importa

se depois das sete

o povo cala na própria desgraça

as dores em preto e brancopreto.

 

(Nesses tempos insuficientes

andei perdendo o jeito para lidar com superfícies

— o meu sonho morava por dentro —

no fundo... o poço)

 

 

 

 

 

 

EM 'EME'

 

 

Abri a mão em palma:

a linha seguia em 'eme'

até virar ao dorso

(nenhum gesto afoito)

— os dedos ficaram perplexos!

Encontrei sulcos atravessados

avisando-me que a vida anda em percalços:

talvez seja aquele passo em falso,

quando o coração escorrega,

cai de cara no asfalto escuro,

arrebentando veias,

sangrando tristezas armazenadas

em sacolas lacradas.

(Esqueci se dizer que houve um rasgo escuso).

Sem agulha

não sei costurar melancolias estrangeiras

— por isso renego o grito,

a palavra maldita —

prefiro engolir silêncios em seco

do que naufragar profundidades sem solução.

 

— A água na comporta dos olhos jorrou sem medo pelo desvio padrão costumeiro (e nem era mais tempo de verão).

 

 

 

 

 

 

EXTINÇÃO

 

 

Somos pedra, somos sopro — e somos o próprio tempo

somos sempre — e somos por enquanto

estamos tardios

destruímos a madrugada

voltamos à escuridão dos dias

as noites nos são lágrimas amargas

nossas mãos estão fracas

os caminhos não mais indicam promissores ventos

tempestades estão anunciadas

somos rasgos no horizonte

ambiguidades desmedidas

esquecemos as regras, as regas, as podas.

 

As flores na varanda estão secas.

 

 

Somos poeira — e somos ventanias

estamos confusos

as barbáries estão nas ruas

estamos cegos ao longo, ao largo

não vemos a distância — nem perto

miopias de hipótese

de pensamento

e de entendimento.

 

As sementes no quintal já não querem o broto.

 

 

Somos perdas — e somos restos

estamos arredios

dispersos, raivosos

destruímos a ternura

mergulhamos em varreduras

corações hipotecados

por nenhum preço estabelecido.

 

As crianças, sem horizontes, estendem tristezas endurecidas.

 

 

 

 

 

 

JARDIM DO ÉDEN

 

 

Fugirei da tempestade.

Há de haver algum lugar

onde o sol ainda aqueça

bons corações de brotar esperanças.

Levarei comigo um punhado de arroz,

sementes de girassol

pra plantar meus quadros de Van Gogh,

na tentativa de abater meus desesperos.

Não entregarei os pontos.

Nem soltarei as pontas.

Farei muitos nós de marinheiro

com as cordas de meus sapatos gastos

— por certo serão bastante úteis

a segurar possíveis inundações

de um coração em reconstrução.

Não arriscarei trancar as portas.

Há de haver alguma fresta

para um bom vento e um alento.

Buscarei a mão amiga,

um abraço apaixonado,

um olhar esperançoso

e a alegria tão intensa da criança na varanda.

Não perderei de ouvir a canção a tocar no rádio.

Cantarei e dançarei a canção do rádio,

ainda que seja o meu último presságio.

Deixarei o telefone desligado.

Buscarei conversas de realidade

bem acesas de luz e claridade,

sem rusgas ou entrelinhas mal traçadas.

Minha tristeza será bem lavada,

esfregada até o arrancar da alma.

Dizem que a água da chuva

lava muito bem as tristezas passageiras.

Naquelas permanentes darei um jeito mais indecente:

deixando-as quarar ao sol e ao sereno

por muitos invernos, primaveras e outonos

(darei folga ao verão desse trabalho tão insano).

Não ficarei sozinha.

Estarei com meus iguais em nossos rituais de afeto.

Onde um traço, um risco, uma caneta, um pincel

farão de nós profetas de um futuro incerto

num passado a descoberto.

Deixarei a relva crescer,

a flor abrir,

o fruto madurar azedo,

até deitares a alma cansada para um sossego.

O violão esperará silente a tua visita,

até que o faças cantar tua cantiga tão bendita.

Servirei aos amigos água pura e limpa,

um bom café passado na hora,

brindaremos o resto da vida tão inteira

com palavras borbulhando em vinho tinto

a nossa incansável poesia.

Não desistirei da nossa busca,

ainda que d'antes disso

sobrem corpos caídos de terrores alheios esculpidos.

Faremos deitá-los em honradas lápides

e saudosos epitáfios.

Mesmo tão tarde

choraremos nossas dores

— ainda que nos batam à parede,

quebrem nossos ossos,

façam sangrar o peito

com facas de tantos gumes —

mesmo assim seremos lumes.

Eu e você e ele e nós.

Seremos muitos.

Cada vez mais.

Nossos singulares multiplicando outros plurais.

Poderemos chorar.

Precisaremos gritar.

Nada nos fará parar.

Na barriga nunca mais a suástica.

Na capoeira nunca mais a faca.

No armário nunca mais o corpo.

Sobre os pés na calçada

nunca mais a roda do carro.

Nunca mais do pó ao barro.

Trocaremos por gargalhadas vermelhas

a nossa dor:

Há de haver algum lugar de amor.

 

 

 

 

DESCUIDO

 

 

Não tenho jeito

sou desatenta

espalho pedaços de mim

por onde vou

depois

quando volto

tropeço em meus restos

quase caio

desequilíbrio vizinho dos pés à cabeça.

 

Outro dia dei de cara comigo

fazendo estrelas no vidro embaçado

eram cacos eram rastros

poeira despencando dos olhos

lágrimas desavisadas

em estado pós-traumático.

 

Pulsações cardíacas costuram saudades

nos passos que um dia sonharam asas.

 

Não tenho jeito

sou desajustada demais

quando se trata de caminhar sobre o amor.

 

 

 

 

BRINDE À POESIA

 

 

Hoje é dia de brindar à poesia

a poesia — triste sina

escolher a hora certa

morder a isca da palavra bem dita

abocanhar em cheio o vazio da alma

e o aperto dilacerando todo o peito.

Bendita palavra que grita

nessa mudez entorpecida dos dias

— a palavra que escancara os horrores dos dias

que sangra a dor de inteiras noites recortadas

na insônia absurda da voz silenciada

dos desejos engolidos em seco

pela fome mal parada —

o brinde é amargo na garganta

nem desce, logo tranca,

não há esperança que se encante

que se garanta,

que resista assim doente

à insana agonia desses dias…

 

— será que a poesia ao menos salva?

 

 

 

 

 

 

POST MORTEM

 

 

Ouso encher a boca com a palavra,

ainda que depois de morta a carne

sejam formigas a roubar-me a língua,

e a palavra volte como graveto seco

— um lápis em puro (des)apontamento —

rasgando sulcos distraídos

no misterioso voo da alma.

 

(deus, por que você nunca me avisou

que o voo sempre esteve implícito nas asas?)

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Nic Cardeal (Brusque/SC). Formada em Direito, atuou como assessora jurídica junto à Justiça Federal por 27 anos. Estudou astronomia, parapsicologia e artes plásticas. Hoje, colabora na administração de uma livraria em Curitiba. Tem participações diversas em antologias e projetos coletivos. Publicou Sede de Céu (Penalux, 2019). Seus textos podem ser lidos em Escrevo porque sou rascunho.