©jerzy górecki 
 
 
 
 
 
 
 

ELEGIA 2014

 

 

Entre cismas e sismos,

hesito: eu podia ter matado o déspota

e enforcado o último clérigo em suas tripas.

 

Em vez disso,

peregrino de bar em bar

e venho dar na sua porta com um poema novo:

este, em que digo uma coisa

e faço outra.

 

Entre a vodca e o tédio,

vacilo: eu devia tocar fogo no Congresso

ou na Associação Comercial

e pichar os muros da cidade com um relâmpago:

eu sou o deus do fogo e minha amada é uma cicuta.

 

Em vez disso,

encontro um amigo e lhe falo de meus planos,

um livro novo, uma viagem

e as pessoas que há tanto já não vemos.

 

Entre caracteres e confetes,

oscilo: conto a verdade e me dano

ou me dano e sonego a verdade?

Enquanto isso, engulo as pequenas mentiras

do cotidiano

com que adiamos para outro século

a felicidade coletiva

e individual.

 

 

 

 

 

 

FLORES VOTIVAS

 

 

Eu

não tenho

medo da morte.

Eu tenho medo quando uma coisa cai

e quebra

como porcelana,

 

seja uma velha amizade,

um novo amor

ou o sentido — fortuito — dos orbes.

 

Aí vem o vazio,

pior que a morte,

que não cola mais os cacos espalhados no chão.

 

Eu

não tenho

medo da morte.

Eu tenho medo da ode

inconclusa, da carta interrompida,

do beijo suspenso,

seja este poema — que em si nunca estará completo —

seja a vida, esta obra sempre aberta...

 

Por que o medo então,

se tudo é acidental

e acidentado? Por que não assumir de vez

que este medo — que me paralisa no trabalho, na fila do banco, no amor —

não é, no fundo, no fundo, o medo da própria morte?

 

Talvez seja

para não dar o braço a torcer

a esta velha desmancha-prazeres

que corta os brotos

antes das flores, ou, quando não,

colhe as flores antes dos frutos

— e as oferece ao Nada.

 

 

 

 

 

 

BLUES

 

 

                            "When the train, it left the station

                                   with two lights on behind.

                                   Well, the blue light was my blues

                                   and the red light was my mind".

Robert Johnson

 

 

Ela se foi.

Estou só:

o último cara

no último bar.

 

Ela se foi.

Restou só a noite

dentro e fora de mim.

 

Ela se foi.

E com ela foi-se tudo

o que um dia eu fui.

Ficou só a minha dor,

a minha gaita

e este blues.

 

Ela se foi:

o dia que vai nascer

sobre a estação deserta

será o mais azul

e o mais triste

do mundo.

 

 

 

 

 

 

MEMORABILIA

 

 

                            "Mirar el río hecho de tiempo y agua

                                   y recordar que el tiempo es otro río,

                                   saber que nos perdemos como el río

                                   y que los rostros pasan como el agua".

Jorge Luis Borges

 

 

Olhar o rio e compreender que o tempo

é um rio que flui e não retorna, e, se retorna,

será, num tempo outro, um outro rio.

Olhar o rio e compreender também

que, se as suas águas as nossas mágoas

levam, é nesse rio, além da foz,

além do mar, além da noite extrema,

que as nossas lágrimas se transfiguram,

iluminadas não das mágoas mortas,

que destas já não há nenhum remédio,

mas daquelas que ainda surgirão,

pois se há fluir, se há correr, se há viver,

sempre haverá sofrer, e pena, e mágoa.

 

Olhar o rio e compreender que o tempo

é o rio sem fim em que nos batizamos,

irremediavelmente naufragados,

todo dia, toda hora, a todo instante.

Olhar o rio e aceitar que não podemos

nos agarrar aos ramos e às raízes

da encosta — e que os barrancos nem sequer

a fantasia da estabilidade

nos podem, despencando, transmitir.

 

Olhar o rio e compreender enfim

que, se a sina de todo rio é o mar,

o fim de toda gente é navegar,

ai, sem cartas, sem ferros, sem correntes,

em direção do insofismável mar,

na imensa noite que da noite outra

cai, silente, solene, generosa.

 

Olhar o rio e, mais que compreender,

reconhecer que o fim, no fim de tudo,

é se deixar levar por essas águas,

sem reservas, sem medos, sem paixões,

até que, num rio outro, além da noite última,

possamos vir à tona, como arcanjos,

nas águas límpidas do não-ser.

 

 

 

 

 

 

CORPO SANTO

 

 

Exausto das lides do amor,

lavo teus olhos

em que ficaram impressas

as imagens do dilúvio que nos afogou

e cujas pestanas se fecharam sobre o meu corpo torturado.

Escaldo teus pés

que conheceram as errâncias de muitos caminhos

e calcaram a cabeça da serpente numa tarde de maio.

Banho o teu dorso

dócil às minhas mãos maduras

e acostumado aos trabalhos nas galés.

Com a água das primeiras chuvas do outono,

enxáguo teus lábios

que proferiram blasfêmias de intrépido encanto.

E finalmente banho o teu púbis,

escuro como a noite primeira,

e, dentro dele,

o fabuloso sol

que me incendiou.

 

 

 

 

 

 

AMOR ADENTRO

 

 

Adentro teu corpo

como quem adentra o mar

e, mar adentro, adentra a noite:

lemes, velhas cartas de navegação, astrolábios

são inúteis para me guiar. Não sei se descobrirei Américas, Atlântidas

ou se me afogarei. Sei apenas que o mar

tem gosto de lágrimas

e o amor é salgado.

Adentro teu ser

como quem adentra o mar à noite

e, mar adentro, noite adentro, adentra o mistério dos seres,

sem âncoras, sem bússolas, sem nenhuma orientação.

Não sei se ouvirei sereias, preso ao mastro como Ulisses,

ou se serei arrebatado como Elias.

Sei apenas que é tarde,

muito tarde,

e que todo amor é amargo.

 

 

 

 

 

 

SACRAMENTO

 

 

Teu corpo é belo

não porque seja perfeito

segundo a régua

de olhar alheio.

 

Teu corpo é belo

(ainda que frágil)

porque é o lugar

da manifestação de tua presença

— única e irrepetível —

no tempo e no espaço.

 

Ora, o tempo

escorre

e o espaço

se transforma

sempre. Mas a graça

que se mostra em ti

a cada instante

se renova

em novíssimas formas.

 

Por isso,

cada veio

que se abre,

cada veia

que se mostra

nada mais são

do que sinais

(ainda que frágeis)

de um deus que se revela

para além das aparências.

 

 

 

 

 

 

SANGRAMENTOS

 

 

atenção:

 

cada palavra

é uma arma

branca

 

calada

vira mágoa

 

falada

vira chaga

 

nos dois casos

ela sangra

 

 

 

 

 

 

IN FINES

 

 

no fim

você está sempre só

como no fundo

sempre esteve

 

no fundo

você está sempre nu

como no início

sempre esteve

 

 

[Do livro Cosmogonias. Curitiba: Kotter, 2018]

 

 

setembro, 2019

 

 

Otto Leopoldo Winck. Nascido no Rio de Janeiro, capital, criou-se em Porto Alegre, mas vive em Curitiba desde 1982. Em 2006, foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2012, foi galardoado com o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia. Em 2017, lançou pela Editora Appris o ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza. Seu último livro, Cosmogonias, de poesia, saiu em 2018 pela Kotter Editorial.

 

Mais Otto Leopoldo Winck na Germina

> Poesia