©gerd bonfert
 
 
 
 
 
 
 
 

§

 

 

Um animal peçonhento

fez um ninho

no meu peito.

 

Nasceu de uma mulher

e se alimenta

dos farelos da minha esperança.

 

O bicho mastiga minha alma

e cada mordida é como se

um punho se abrisse

dentro da garganta,

unhas compridas.

 

O animal inquilino

está dormindo agora.

De barriga cheia

ele me deixa escrever.

 

 

 

 

 

§

 

 

Não ferem os amantes

as frestas

entre as frases.

 

Na língua em repouso

o desejo se dilata

até tocar o indizível.

 

A ausência das palavras

é o palco dos olhos,

dos hálitos,

dos hábitos despidos.

 

Peles, pelos e peitos

entrelaçados,

bêbados de presente.

 

Um espetáculo

em que as proposições

são espectadoras

e aplaudem atônitas

a eloquência dos corpos.

 

 

 

 

 

 

Bula da alma

 

 

Após incontáveis estudos científicos,

pautados pelos mais criteriosos métodos,

descobriu-se que a alma humana é composta por três elementos.

 

O primeiro, apesar das madrugadas mal dormidas,

ainda não foi catalogado pelos especialistas

e equivale a noventa e seis por cento da alma.

Como bibliotecários analfabetos,

é sobre este material que debruçam os psicanalistas,

os pastores evangélicos

e os gerentes de Recursos Humanos.

 

Três por cento da alma equivalem a um tipo raro de pedra.

Densa, áspera, resistente.

Por mais que se invistam forças,

ela não se entrega a refinamentos;

é avessa a modelagens.

 

Há, contudo, a parte de argila:

volátil, inicialmente amorfa.

Ao contrário do que afirmam os renomados pesquisadores,

é neste um por cento que se deve empregar as atenções,

a única parte esculpível da alma.

 

Mas um alerta:

de nada adianta observar passivamente.

É preciso fornecer as ferramentas adequadas ao oleiro

(que umas crianças arteiras deram o nome de tempo)

 

 

 

 

 

 

Estiagem

 

 

As lágrimas secam-me por dentro.

Mas não se trata de uma secura sertaneja

com as trincas da alma à mostra.

 

É uma secura que

cega as foices do remorso.

 

Uma secura que

lava as ausências

feito feridas.

 

Uma secura que

exorciza as súplicas.

 

Uma secura fértil:

o orgasmo dos olhos

como sêmen

do momento seguinte.

 

 

 

 

 

 

Cidadão de bem

 

 

O cidadão de bem

é patriota.

Pede ordem e progresso

com a garganta dos âncoras televisivos.

Grita que sua bandeira não será vermelha,

despercebendo que ela nunca deixou de ser:

sangue de negros, índios e pobres.

 

O cidadão de bem

sai às ruas.

Mãos ao alto,

pedindo por justiça.

Faz carreata,

caminhonetes tracionadas

por correntes de WhatsApp.

 

O cidadão de bem

é conservador.

E leva isso tão a sério

que conserva sob a bainha carregada

os privilégios e os valores invertidos.

 

O cidadão de bem

acredita em Deus.

Um deus moldado à sua imagem e semelhança,

túnica camuflada e escopeta à mão direita.

Um deus que odeia Drummond.

Um deus que não sabe dançar.

 

O cidadão de bem

nem sempre é cidadão de bens,

mas se considera empreendedor.

Tem a meritocracia como sagrada

e, mesmo excomungado,

ora pela bíblia dos bancos.

 

O cidadão de bem

chama ditadura de regime.

Talvez porque

ela tenha emagrecido a liberdade

a ponto de deixá-la pele e osso.

E, quanto aos ossos,

muitos ossos,

esses foram encontrados

sob a manta verde e amarela

ao fim da "Revolução Democrática".

 

O cidadão de bem

se olha no espelho

com orgulho de ver um cidadão de bem.

O orgulho que o priva de saber

o que seja cidadão e o que seja bem.

 

 

 

 

 

 

Procura-se

 

 

Em que parte do corpo

se encontra a clemência?

Consultemos, para o resgate,

os manuais da criação humana!

 

Estaria camuflada

sob a língua

que profere verbos imperativos?

 

Estaria presa

às cavas do peito

que prefere morte em vez de afeto?

 

Estaria desmaiada

no assoalho do pulmão

que suspira ares

de quepes, coturnos e castração?

 

Estaria no caminho

de volta ao cérebro,

desejo de um estado pré-fetal,

ao descobrir que se tornara obsoleta?

 

A clemência está desaparecida.

Mas pouco adianta pregar

placas pelos órgãos oferecendo recompensa.

 

A clemência não aparecerá

enquanto os homens

continuarem com chorume nas veias.

Enquanto os homens

não virarem do avesso

o que chamam de vida.

 

 

 

 

 

 

Análise poética

 

 

Na visita ao analista,

a poesia reclamou dos amantes,

do arco-íris,

das íris coloridas,

dos céus estrelados,

dos lados luminosos,

dos postais, pontes e poentes.

 

À mostra com os dentes,

estava decidida a lançar um olhar

alijado de flores e frases feitas.

 

Agora, quer rastejar pela lama,

trocar a dama pela puta. O amor pela secreção.

— Mais genitália e menos coração, senhores!

 

Pretende enfiar o sol no bueiro,

arrancar os testículos do absoluto

e esfregar o cu na cara do sossego.

 

Sim, ela precisa espedaçar a esperança.

E, na dança, descalça, rodar pela praça

sem seguir receitas ou procurar piedades.

 

Vai, então, poesia!

Crava a língua na carne crua do presente.

Sobe a saia, goza com o sublime

e arremessa a eternidade na sarjeta.

 

 

 

 

 

 

Mutismo

 

 

                            A Adolfo Bioy Casares

 

 

E de repente

as bocas foram convidadas

a deixar os rostos.

Às que não aceitaram,

línguas decepadas.

 

De repente, não!

Muitos viram o facão sendo amolado.

Muitos pesaram a mão do carrasco.

Muitos inflaram sua garganta,

o sangue a escorrer pela voz.

 

Agora,

as bocas apátridas,

por detrás do muro verde-oliva,

velam as línguas que se decompõem

no subsolo da memória.

 

Mesmo o carrasco desaprendeu a gritar.

 

Os rostos,

que não beijam mais,

que não mais clamam por justiça,

ainda podem chorar.

E choram muito.

Choram inclusive

porque não conseguem sentir

o gosto da saudade.

 

 

 

 

 

 

Perspectivas

 

 

Fui superestimado pela vida.

Fardo pesado arrancar o dardo

do ventre do mundo,

vale inundado

de sonhos secos,

de olhares estreitos

feito estradas do interior.

 

Por isso desisti de violentar o tempo

com entulhos ou promessas.

Troquei o destino pelo delírio

e ainda devolvi troco:

deixei as verdades penduradas

no dedo frígido de Deus,

que, pesado,

não pôde mais me proibir.

 

 

[Poemas do livro um clitóris encostado na eternidade. Patuá, lançamento em setembro de 2019]

 

 

junho, 2019

 

 

Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Patuá, 2016) e dos livros de contos Amortalha (Patuá, 2017) e Violeta velha e outras flores (Patuá, 2014). Também colabora com artigos para vários portais e revistas. 

 

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