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Riscos verdes e vermelhos que nos acompanham

- Raul Bopp

 

I

Campo branco – catarata – lençol de linho – miolo de pão – ilhas esbranquiçadas num mar azul: alcateia de nuvens – sol de janeiro – pela janela do avião.

 

 

 

II

(Iansã, senhora-dos-raios-e-dos-ventos, agita o eruexin – zona de turbulência.)

 

 

 

III

Do branco ao verde – caminho de bambus – verdes arcos estirados ao céu – do verde ao branco da praia – o mar misturado ao sol.

 

 

 

IV

Praia de Itapuã (a) – pedras negras, limo verde, areia sem cor – casal passeia de mãos dadas.

 

 

 

V

Praia de Itapuã (b) – coqueiros, muro branco do farol, menina corre para o mar, versos de uma canção.

 

 

 

VI

Visita à casa de Vinicius: retrato de Iemanjá, máquina de escrever, violão, telefone, foto de Mãe Menininha, sereia de barro com os seios nus.

 

 

 

VII

Na primeira pousada em que nos hospedamos – eu, Scheila e Bibi –, em Stella Maris, escrevi este haicai:

 

Árvore de flores vermelhas

faz sombra

para o gato.

 

 

 

VIII

Esta é a terceira vez que visitamos Salvador. Roteiro amoroso, entre praias e igrejas, moquecas, bobós, acarajés. A cidade, suas cores e cheiros: tudo parece mais vivo e sanguíneo, música da pele que ensina o sol a dançar.  

 

Ao som do berimbau

meninos jogam

capoeira de verão

 

 

 

IX

Caminhos do Rio Vermelho (a): dia de festa da senhora das águas. Atabaques, batuques, flores brancas e azuis, tatuagens decotadas de negras, muvuca sagrada.

 

 

 

X

Caminhos do Rio Vermelho (b): blocos de foliões saúdam Mamãe Janaína, filhos de Gandhi e filhos de Marx trazem espelhos, fumo, perfumes, foice e martelo, Odoyá, Iemanjá!

 

 

 

XI

Após a festa da dona das águas, seguimos para o Hotel do Convento, no Pelourinho. Meninas tocam tambores no Carmo. Baianas posam para fotos com turistas, entre quiosques de cocada. Malandros oferecem rezas contra o mau-olhado.

 

 

 

XII

Na Ladeira do Paço, onde Anselmo Duarte filmou o Pagador de promessas, ponto de encontro de skatistas, grafiteiros, acrobatas e tocadores de tambor, escrevi mais um haicai:

 

Nos degraus

da escada de pedra

acrobacia de verão

 

 

 

XIII

Feira na Rua da Cabeça. Scheila escolhe flores para o buquê, entre cheiros de alecrim, manjericão, alfazema, hortelã, rosas brancas e frutas frescas. Aqui você encontra de tudo, até o que não deseja comprar.

 

 

 

XIV

Convento do Carmo, no centro do Pelourinho. Casamento barroco, após a festa de Iemanjá. Bibi enfeita o portão da capela com fitinhas azuis e espalha pétalas de rosas pelo chão. Pedro Costa toca Led Zeppelin ao violão, na entrada dos noivos. Scheila toda de branco, vestido branco, brincos brancos de pérola, Claudio de branco e azul, os ladrilhos portugueses, também brancos e azuis. Juiz de paz realiza a cerimônia junto a um pequeno móvel japonês do Período Nanbam. Beijos e cliques.

 

fitas azuis

no portão da capela

o amor é azul

 

 

 

Escrevi também um poema mais longo para o casamento, chamado "Mapa do Céu":

 

Lua-de-mim

amor-em-pele-de-oxum

moça-de-olhos-quase-céu

acende a palavra vermelha

no mais fundo de mim

sempre comigo sempre contigo

amor-em-pele-de-oxum

lua-olhos-lua-boca-lua-pele-lua-pés

no mais fundo de mim

anoitece-me enlouquece-me

moça-de-olhos-quase-céu

sempre comigo sempre contigo

Lua de mim

 

 

 

XV

Caminhos do Rio Vermelho (c): Scheila atira as pétalas do buquê de casamento no mar, oferenda a Iemanjá.

 

Fitas azuis

flores brancas

flutuam no mar

 

 

 

XVI

Durante a viagem, soubemos da tragédia em Minas Gerais. Rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, centenas de mortos e desaparecidos. Meus olhos pensam: tanta beleza, tanta tristeza. A Vale é uma das maiores empresas de mineração do mundo, privatizada por FHC nos anos 90 por uma fração mínima de seu valor de mercado, e pouco se importa com medidas de segurança e proteção ambiental. Revoltado, escrevi os últimos haicais dessa jornada, antes de voltarmos ao ponto de partida:

 

Criança suja de barro

aperta no peito

filhote de cão.

 

 

 

Chuva de lama:

animais atolados

são mortos a tiros

 

 

 

Moça coberta de lama:

nem vemos

o seu rosto

 

 

 

Olhos, pés, mãos

bocas de lama:

mortos ou vivos?

 

 

 

Rio sem peixes:

fluem escombros

na água escura

 

 

 

Bombeiro socorre

velha senhora

presa na lama

 

 

 

Aldeia indígena

recebe rejeitos

de lama tóxica

 

 

Nota do autor

Haibun é um gênero literário japonês, semelhante a um diário, que combina a prosa narrativa com a poesia, como o célebre livro de viagem Sendas de Oku, publicado no século XVIII por Matsuo Bashô, que intercala passagens descritivas e narrativas com haicais de sua autoria e de seus discípulos. Sempre fui fascinado por essa obra, pelo criativo diálogo entre a prosa e a poesia. Depois de publicar Fuyu — Poemas de inverno, uma plaquete de tankas (o poema japonês formado por duas estrofes, um terceto de 5-7-5 sílabas e um dístico de 7-7 sílabas) e um livro com cem haicais, intitulado Portão 7, senti-me motivado a escrever um novo trabalho, dessa vez no gênero haibun, o que aconteceu durante minha viagem de casamento e lua-de-mel a Salvador, em fevereiro de 2019, evento feliz que coincidiu com a tragédia de Brumadinho. Os dois fatos, o amoroso e o ecológico-social, inspiraram os textos reunidos aqui. Espero não ter fracassado totalmente em minha iniciativa. [Outono de 2019]

 

 

junho, 2019

 

 

Claudio Daniel é poeta, tradutor e ensaísta. Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), foi curador de Literatura e Poesia do Centro Cultural São Paulo, diretor adjunto da Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura — e colunista da revista Cult. Atualmente, coordena o Laboratório de Criação Poética. Publicou mais de vinte livros, entre eles Cadernos bestiais e Portão 7, ambos pela Lumme Editor.

 

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