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A água bate de leve

Nos pequenos pezinhos 26

Imóveis

Os corvos aguardam a hora do jantar

 

 

 

 

 

 

Filha da miséria

 

 

Eram quatro quartos montados com o improviso da miséria

Separados por panos em farrapos de onde era possível ouvir o grito agoniante daqueles estômagos vazios

Eram quatro espaços diminutos onde a mãe contava histórias

Eram frestas nas paredes de retalhos que ao frio provocavam arrepios

Pés descalços, em feridas das pedras pontiagudas da vila

Pelo leite e pelo pão, as mulheres murchas envelhecidas faziam fila

Era pouco, quase nada, em lágrimas densas saía a mãe da mesa

Engolia o luto da vida perdida, do filho consumido de fome e pobreza

Havia o pó que subia sem dó quando passavam os carros dos poderosos

Era caminho das belas mansões que ao longe faziam silhueta

Nos vales com montanhas verdes e picos rochosos

Enquanto do lado de cá criança faminta marcava a sarjeta

Já nem cantava aos filhos canções de ninar

O sono só vinha quando o corpo faminto desabava de tanto chorar

Não quis o destino dar-lhe esperança

Encheu-lhe o ventre e a casa de rebentos sem instrução

Sofria com a expressão do desespero no rosto cansado de cada criança

A cada doença da água estragada e comida faltosa feria-lhe o coração

Diziam-lhe que era escolha sua porque se quisesse nenhum filho faria

O olhar de desprezo de quem desconhece a vida que leva, sem nem compaixão

Escrevia duas letras, se muito, nem mesmo seu nome de fato sabia

E dela esperavam cuidados que nunca quem julga foi capaz de ensinar

Mas é bem mais fácil na vida apontar o dedo e poder condenar

Ela, que só tinha coragem de catar nas lixeiras o que os ricos deixavam pra trás

Ela, que tinha seis bocas vazias em casa para alimentar

Os outros sucumbiram à fome, à dor e a miséria que nunca os abandonou

Ao contrário do pai das crianças que um dia partiu e nem se importou

Era ela contando com a sorte, testemunhando a morte que insistia em voltar

Sozinha no meio do nada, a vida acabada a sempre lembrar

Que assim o destino quisera, sem choro nem vela, amaldiçoar

Cada filho dessa vida ingrata, sob a miséria morrer e matar

Tiravam as chances da vida, por um pão aceitava qualquer humilhação

Menino criado como bicho sarnento e ainda cobravam ser bom cidadão

Nas vielas da vida, sem eira nem beira, ia ela implorar

Um prato vazio de comida sobre a mesa quebrada da casa que ia se esvaziar

Dos filhos, famintos, sem chance, os que viveriam iriam roubar

Ela, fraca e sem brilho, da vida maldita que Deus lhe deu

Abraçou o diabo com força, pedindo à benção de quem já morreu

Os panos que separavam os quartos testemunhariam sua depressão

Seu corpo entregue aos homens com bom dinheiro e sem coração

Debaixo de corpos pesados, suspiros molhados, chorava de dor

Ninguém se importava com ela, não havia na vida conhecido o amor

Jovem em corpo de velha, as marcas da fome eram tal cicatriz

Olhava pra trás na sua história e sabia que nunca tinha sido feliz

Agora, com filhos bandidos, ou mortos, perdidos, se viu sem razão

Da miséria guardada no bolso, a faca em ferrugem encontrou o coração

Morreu sem dentes na boca, barriga vazia e uma história sem cor

Morreu chorando baixinho, no seu cantinho, sem pedra bonita ou coroa de flor

 

 

 

 

 

 

Aos versos

 

 

Voltemos aos versos

Às armas que trago comigo

Entre rimas pobres e almas podres

Entre a imensidão do deserto e o oceano

Voltemos às estrofes mal acabadas

Bombardeadas, banhadas em sangue

Da alma inocente desprendida do corpo

Da ferida aberta, da boca gelada

Nas marcas que ficam, voltemos aos versos

Às súplicas de um perdão dispensável

Pelo crime jamais cometido

As balas do meu canhão são feitas de letras

Da pólvora, o cheiro queimado da inspiração

Da ponta da pena a estratégia rimada

Da mão do oponente, meu corpo ao chão

Voltemos aos versos, porque há de ter um belo epitáfio em meu túmulo

 

 

 

 

 

 

De manhã

 

 

Era manhã, embora sob cinzas fosse sempre madrugada

Não havia a luz do sol ou uma noite enluarada

Já não tinha mais futuro, mas um destino abandonado

Eram sobras de uma vida, eram restos de um passado

 

Era manhã mas era noite, porque o clima era denso

Nos parques haviam restos, árvore com um homem suspenso

As flores de outrora deram lugar à terra crua

À noite já não haviam mais estrelas e não havia a lua

 

Há muito o cenário era de caos e morte

Há muito aquele povo havia perdido o norte

Já nem se sabia para onde poderiam ir

Já nem sabiam se ainda eram capazes de sorrir

 

Gerações foram passando sem nenhuma explicação

Matavam e morriam com ódio no coração

Famílias inteiras se acabavam

Na potência da explosão

 

 

 

 

 

Entrelinhas

 

 

Dos espaços vazios, a brecha ao desentendimento.

Não há nada mais perigoso que as entrelinhas.

 

 

 

 

 

 

O artista

 

 

Que fique o artista onde pertence

Nas sarjetas da vida, chamado bebum, tal qual merece

Que sua arte me encante quando aparece

Mas que sua alma, em trapos, da minha vista desaparecer

 

Some daqui, vagabundo insolente

Esconde a caneta, guarda o sorriso, quebra tua lente

Me importo contigo — diz aquele que mente

Enquanto o vadio expõe a alma transparente

 

Dane-se o artista, o que importa sou eu

Foge da vista, esconda-se no breu

Desculpa, seu resto, fique da porta pra fora

Pegue tua migalha, não reclame direitos e vai-te embora

 

Artista, não esquece, preciso de ti

Deixa tua arte e some daqui

Teus sonhos, projetos, quero tudo pra mim

De ti, vagabundo, só quero teu fim

 

Tua alma quebrada sujando o tapete

Te some, em pedaços, ou te levo um porrete

Te agacha na lama e recolhe teus cacos

Desaparece daqui e não enche meu saco.

 

 

 

 

 

 

Procura-se

 

 

É procurado

o pobre coitado

que ficou calado

enquanto o chão desabava

a tormenta chegava

o mundo acabava

debaixo de suas fuças

 

 

 

 

 

 

Queda

 

 

Então eu multipliquei as dores do meu corpo.

Do coração que sangrava, sangrei a pele

Da alma de doía, converti nas células.

Então dobrei meu sofrimento

E hoje me acolho na dor que me resta

Talvez a amiga mais antiga a abraçar meu corpo

Alegra-me que ainda me julguem forte

Simplesmente porque o mundo

Não deu a mim a opção de cair.

 

 

 

 

 

 

Progresso

 

 

O poder é o que corre nas veias

Já nem importa o que mais

Quantas vidas se perdem

Quantos sonhos são deixados pra trás

Na ponta da caneta vem a ordem

E progresso é ilusão

O zumbido na passagem

É o sinal da destruição

Apertos de mãos e bons negócios

É a terra prometida

Vale escravos prisioneiros

Uma terra dividida

De um lado estão barões

Do outro o pé rapado

Abafadas as reações

De um povo indignado

O poder corrompe a alma

Empatia morre aos poucos

Assina o tratado com calma

Encarcera e mata os loucos

Os grilhões deixam as marcas

Nesse povo aprisionado

Não há sequer a esperança

 

Há um futuro arruinado

E a cada 4 anos eles fazem fotos com crianças

 

 

 

 

 

 

Surto

 

 

Senti os caminhos de cada manhã como os galhos pontudos que rasgam minha pele

Meu coração apertado bate descompassado com medo que meu corpo inteiro congele

Sob a lua escondida da noite sem fim, sinto o vento gelado tão perto de mim

Sei que o tempo já urge, espera que eu pare, que eu aja assim

Não reconheço meu rosto no espelho, meus dedos se movem sem eu controlar

Eu paro perdida no meio do nada, com a alma ferida, eu quero gritar

Sei que nada disso é verdade, to presa em minha mente, ninguém vai me salvar

Seguro meus braços em prantos, meus dedos malditos me farão me matar

Minha mente que grita assustada, perdi o controle, não sei pra onde ir

As vozes que gritam nervosas, me xingam e exigem que eu saia daqui

Já não sei o que faço, não mando no corpo que age sozinho a desobedecer

Estou presa em mim mesma, eu peço socorro, eu quero morrer

O peito explode em agonia, em cada noite fria eu vou percorrer

Não sei mais o que faço, meu corpo implora mas eu quero viver

Saboto minha própria vontade, a vida me cobra que eu consiga vencer

Penso nos amores perdidos, tantos zumbidos a me confundir

Aperto meu corpo em um abraço, digo que me amo e não quero fugir

Os monstros não são aliados, parecem irritados e insistem que eu vá

Pego a faca afiada, escondo da vista, não vou me entregar

A floresta que cerca meu corpo se encolhe em silêncio, perderam outra vez

Retomo o controle do corpo, pouco a pouco, venci vocês

A alma apertada no corpo exige respiro pra sobreviver

Rompo um pouco de pele, liberto a ferida que tá dentro de mim

Rubro, escorre aquecido, corpo umedecido já posso prever

Que a dor dessa vez foi embora, os monstros partiram, chegou ao fim

Mas sei, por bem não iludo, eles sempre sabem onde me encontrar

Me armo de amor e esperança, eu sei que isso cansa, mas vou superar

 

 

 

 

 

 

Suspiro

 

 

O silêncio marcava o compasso da dor

Nos passos errantes, no traço inconstante, o olhar de terror

Fumaça de pólvora nova no cano da arma

Dois passos, joelho na terra, venceu o seu carma

Os olhos vidrados no céu, pedindo perdão

Num campo cercado de corpo, encontrou em si mesmo a pior solidão

Guerreiro, sem trunfo ou medalha, caído no chão

Preso, em meio à batalha, não foi campeão.

 

Na garganta, a secura da alma prendeu seu último suspiro.

 

 

 

 

 

 

Trapos

 

 

Das vestes surradas, se escapam os olhares de súplica

A dor estampada nos olhos enquanto o frio engole a alma

Perdido, num canto cercado de nada por todos os lados

Seus olhos encontram repúdio nos rostos que permanecem calados

Nada, um nada de nada que sobra nas pedras da cidade concretada

Um corpo inerte na rua que vagueia invisível feito alma penada

Arrasta nos pés da miséria, sua alma paupérrima transita dilacerada

Na lata suja do tempo vai contando os trocados pra fila do pão

O cabelo mal aparado, todo desgrenhado, passou a noite no chão

O corpo de restos de restos, de lixo do lixo, não encontra perdão

Dormiu sob a marquise da loja e o vento forte levou seu papelão

A noite que chega manchada das luzes nas ruas e na alma a escuridão

Acorda em meio à fumaça, seu corpo em chamas procura a redenção

Enfim, o resto do resto foi visto perdido no frio da calçada

Queimando, sob risos estranhos, bate no corpo, esforço em vão

Desaba, já sem dor e sem vida, naquele segundo findou sua estrada

O riso que antes se ouvia agora se convertia em mero descaso

Azar de tal vagabundo, perdido e imundo, vestido de trapos

Agora o homem queimado, sem futuro ou passado, ou história possível

Voltava ao seu posto de resto, de nada com nada, um homem invisível

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maya Falks nasceu Márcia, no dia mais frio de 1982. Começou a criar histórias aos três anos, ditando as narrativas à mãe. Escreveu seu primeiro romance aos sete anos, o segundo aos 10 e a primeira antologia poética aos 14, nenhum deles publicados. Atualmente, Maya é publicitária, jornalista e autora dos livros Depois de tudo, Versos e outras insanidades, Histórias de minha morte e Poemas para ler no front.