ESSA CASA NÃO É MINHA

 

 

Minha chave aqui não cabe

desconheço a fechadura

e a metragem desta sala.

O teto não me diz nada

o ar da cozinha é estranho.

Claro que não é o meu quarto

onde me deparo agora.

Nunca dormi nesta cama,

nem me sinto bem aqui

depois de todos esses anos.

 

Ser poeta não é opção

é sina ou é maldição.

 

 

 

 

 

 

ELA

 

 

A mulher loura, em pé no ponto

de ônibus, tira da bolsa o esmalte

vermelho e faz as unhas da mão

enquanto o ônibus não chega.

 

Ela não vai descansar.

A palavra descanso não faz

parte do dicionário de sua vida.

Ela pode algum dia atingir

quase o limite de suas forças.

Mas ela dorme, recupera as

forças e segue em frente.

E esquece a palavra cansaço.

Porque há muitos jovens que

já nasceram cansados e andam

cansados o dia inteiro. E porque

depois há toda a eternidade

que é um tempo que nem passa

pela sua cabeça.

 

 

 

 

 

 

SURFE

 

 

Todos nós viemos da água

e temos duas opções:

 

enfrentar as coisas sem pensar

ou observar a natureza.

 

Por exemplo, às vezes é preciso

entrar pela porta dos fundos.

 

Se olharmos com atenção

sempre existe alguma saída,

 

como uma circulação termoalina —

já que medo e pânico são diferentes.

 

 

 

 

 

 

ERRÂNCIA

 

 

Eu me lembro de sair perto

da mão forte de meu pai

(era como um escudo).

Ele ia beber no pé-sujo

e eu ficava solto pela rua

brincando com o disco voador.

Lembro também de perguntar-lhe

qual carro era mais complicado

para dirigir. (Eu queria ser presidente

e dirigir o carro mais difícil).

Lembro depois na festa do colégio, no dia

dos pais, que era o único a ficar com a mãe.

Foi quando abandonei a infância.

(Ninguém me pediu, mas

preferi pôr o mundo nas costas).

Só lembro de acordar criança de novo

por volta dos vinte e poucos anos.

E assim virei vagabundo, sur-

fista medíocre e ex-advogado.

Subi o morro da Mangueira

certa noite e quase morri

por não respeitar os protocolos

da bandidagem.

Mas gostei do espanto de andar

na corda bamba.

(E aprendi de vez que não havia

quem segurasse a minha mão).

E aí para mim ficou claro

que nunca mais ia deixar de

ser criança nessa vida.

 

 

 

 

 

 

DOCE VIDA

 

 

são

dias

meses

anos

luta

medo

sonho

pedra

nada

mais

sobra

sopro

&

pronto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ODE A WALLY

 

 

adentramos a neblina

deixemos de lado

a fumacinha photoshop

essa minha ilha de edição

vamos para outra coisa

arame farpado, por exemplo

é útil para espantar inconveniências

é uma facada quando

vem em sinais do seu amor

mas pode ser algo mais leve

como a fatalidade de um empurrão

um corte superficial antecipado

um aumento de aluguel

ou uma curva em s

no meio da neblina

 

 

 

 

 

POR VOCÊ

 

 

por você, eu limparia os trilhos do metrô

eu iria a pé do Rio a Salvador

por você, eu roubaria uma velhinha

eu dançaria tango no teto da cozinha

por você, eu adoraria a disciplina japonesa

eu aprenderia a fazer cara de surpresa

por você, eu viajaria a prazo pro inferno

eu tomaria banho gelado no inverno

por você, eu hoje deixaria de beber

eu enfrentaria um lutador de caratê

por você, eu ficaria rico em um mês

eu dormiria de meia pra virar burguês

por você, eu só sentiria essa febre

eu conseguiria até ficar alegre

por você, eu viveria em greve de fome

eu mudaria a grafia do meu nome

por você, eu pintaria o céu de vermelho

eu teria mais herdeiros que um coelho

por você, eu aceitaria a vida como ela é

eu desejaria todo dia a mesma mulher

 

 

 

 

 

 

SENHA

 

 

passos na consciência

a rotina de limitações

o equilíbrio impossível

se fazendo real

 

a aceitação do indizível

o prazer de ficar pequeno

a fragilidade impensável

se fazendo poder

 

cada instante tem 220 volts

cada lembrança é uma orquídea

na sala

 

 

 

 

 

 

LED ZEPPELIN

 

 

                            Para Dick Petra

 

 

novas terapias

chegam cada vez

mais rápido

ao mercado

das almas

sedentas por

um happy end

 

orgânicos, graviola

canabidiol, cannabis

uma palavra bem colocada

feijão no almoço e no jantar

 

exercícios específicos

melhoram a condição

na hora do sufoco

 

(o choro incontido

no encerramento da sessão

traz Deus para mais perto)

 

um novo ciclo começa agora

uma era de congressos imaginários

uma aula de química que eu perdi

um sonho de acordar diferente

 

há sempre um jeito

ingênuo de se expressar

 

 

 

 

 

 

PLANO SEQUÊNCIA

 

 

neste momento tenho

muito tempo

mas não há tempo

a perder

 

menos muros

mais pontes

dentro de mim

 

 

 

 

 

 

FILHOTE

 

 

você é a principal causa de

eu estar pleno na luta

de estar lúcido

para saber que

tenho de lidar com

a mente a razão

a doença a loucura

aqui e agora

e de dizer que

estou forte sim

não apenas na palavra

 

orgulho da sua altivez

do seu amor explícito

um poder que hoje

recebo dos mais

diversos canais

vibrações amigos

é tudo muito intenso

com você eu aprendo

em nossos encontros

trocas declarações

e que sejam sempre

imemoriais

 

uma ruptura abrupta

tanto abre uma cratera

no entendimento

quanto traz uma luz

que o sol nos ilumine

e me permita a emoção

de estar incontáveis

vezes com você

sorrindo como duas crianças

das coisas boas ou não tão

boas da vida

e nada mais

 

 

 

 

 

 

HADES

 

 

28 dias de uma

Vida desfeita

Certeza insólita

Somos todos água

Para os chineses

ancestrais

O intestino representa

a alma disse o doutor

Fiquei doente da alma

Minha alma ficou

doente de mim

Dos meus medos

Do meu rancor

Da minha mágoa.

Ainda bem que

me resta o amor

vestido de ilusão

E o esquecimento

de todas as regras.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Mauro Santa Cecília é poeta, compositor e artista. Autor dos livros de poemas A todo o transe, Olho frenético, A sombra do faquir, Errância, baião de 2 (este em coautoria com Leoni) e Decolageme dos romances Cão de cabeloe Argos. Tem músicas gravadas por nomes como Barão Vermelho, Frejat, Hyldon, Blues Etílicos, Picassos Falsos, Rodrigo Santos, Sideral, entre outros. É letrista das canções "Por você" e "Amor pra recomeçar". Em 2013, lançou o disco autoral Vou à Vila. Participou de quatro exposições coletivas, com fotografias e poemas. Criou, com o guitarrista Maurício Negão, o projeto experimental Célula Mater, que mistura música, poesia e cinema. Lançou, em 2019, o disco de samba Hoje o dia raiou mais cedo, em coautoria com Agenor de Oliveira e Rogério Batalha.