©s. hermann & f. richter
 

 

 

 
 

 

 

 

§

 

 

Água

transforme minha dureza

em correnteza

 

Água

transforme minha queda

em cachoeira

 

Água

transforme meu medo

em corredeira

 

Água

me transforme em vapor

me alivie por inteira.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Senhora das terras sangrentas de marte

amolo no esmeril a faca cega da paixão

o que amorteço queda em mim

feito chuva fina.

 

Quem eu sou e quem eu era

cabem no mesmo espelho

no mesmo rosto

no mesmo peito.

 

Mas não me reconheço

some a memória de mim

bicho escroto me devora

não entendo mais agora.

 

Cato meus pedaços

me colo com rio,

terra, lama, mangue

quero a pele molhada (d’água)

o cabelo de terra, folha, graveto

quero ser árvore.

 

Minha boca é santa

pela boca tanta

loucura, doçura, sofreguidão

não minto e não digo a verdade

me gasto muito para viver

gasto muito papel para escrever.

 

Amanhã faço tudo direito

hoje vou dormir com os pés sujos.

 

 

 

 

 

 

Palavras

 

 

Uma palavra lasciva: delícia,

uma palavra dengosa.

 

Duas palavras alegres: peteca e

manhã.

 

Uma palavra tensa:

tempo.

 

Uma palavra firme: chão.

Duas palavras tristes: dor e saudade.

 

Uma palavra livre:

beija-flor.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Do coração

à boca

o rastro

é curto.

 

Engulo palavra

Cuspo fogo

Engulo fogo

Palavra, eu cuspo.

 

 

 

 

 

 

O Peixe, as Mulheres, a Menina e a Flor

 

 

À beira da água do rio

eu vi três mulheres sentadas

três mulheres plantadas

três mulheres caladas

à beira da água do rio.

 

Beirando a água do rio

uma menina de cabelos cacheados

colheu uma flor amarela

para uma das mulheres belas.

 

À beira da água do rio

a menina deu a flor porque quis

seu nome é Beatriz.

 

 

 

 

 

 

Rosacéu

 

 

O motivo para a poesia

é a vida rubra,

rosácea de dengo e lamúria.

Esse roseiral inundado

de corolas dobradas e

pétalas de incontáveis perfumes.

 

Rosa-menina, rosa-louca,

rosa-de-cão, rosa-dos-ventos.

No Rosário de Ifá procuro meu rumo.

 

O motivo para a poesia

é a rosa rubra.

Esse brasão que imprime

em incontáveis vermelhos a minha loucura.

 

 

 

 

 

 

Palavras 2

 

 

Tenho umas palavras pra dizer só pra você.

As palavras têm endereço.

Essas nasceram

pra eu ter a chance

de lhe olhar mais de perto e

me queimar na faísca

da sua pele.

 

Inventar uma história, um enredo,

um brinquedo

de tatuar em seu corpo

minhas palavras

palavras-beijo

palavras-amor

palavras-cheiro.

 

 

 

 

 

 

Cigarras

 

 

Cigarras são palavras femininas

mas é no abdome do macho

que os timbais implodem.

 

O canto estridente masculino

convida as fêmeas para a morte.

A lamúria das cigarras

é só dos machos.

Será remorso?

 

O grito cortante

lamenta as ninfas que descem

e se enfiam, e se escondem e se enterram

para em silêncio sugar

a seiva das raízes.

 

As cigarras ignoram suas asas

grandes, transparentes e bordadas,

agarram-se aos troncos e galhos

para espalhar em uníssono

seu canto doloroso e amargo.

 

Ao entardecer,

hora mais triste do dia,

os machos choram

até rebentar minhas costas.

 

Sob o canto lancinante

das cigarras

eu e as lobas uivamos

dolorosas.

 

 

 

 

 

 

§

 

 

Sua pele negra

sua bata branca

 

Sua pele negra

sob a bata branca

 

Minha mão por baixo

da sua bata branca

 

Minha mão em cima

da sua pele nua.

 

 

 

 

 

 

O homem de gelo

 

 

O que não combinava

era o homem de gelo parecer um mouro,

não na beleza, mas na cor.

O homem de gelo sentou-se

em frente a mim

e me olhou.

Com seus olhos

frios de gelo.

Nada disse.

Por força da tentativa

aproximei minha alma dele.

Doeu.

Você já tentou aproximar sua alma

de um homem de gelo?

Não tente.

Queima.

Não como fogo, mas como gelo.

Em frente ao homem de gelo

as palavras perderam força.

E eu que sou mulher de palavras

me desfiz.

Marulhosa, eu marejei.

Fiz silêncio.

Desci pelas escadas,

vertiginosa, espiral,

com a mão na parede para não cair.

 

 

 

 

 

 

Saudade

 

 

o que me mata

é o silêncio

e o beijo

não ser na boca

 

o que me mata

é a falta

de seus olhos

nos meus

 

o que me mata

é a ausência

de mãos

e palavras

 

o que me mata

é esse breu.

 

 

 

 

 

 

A voz é como um rio

 

 

Na cabeceira desse rio

a terra firme cede

sob meus pés.

 

A chuvarada traz

a voz do seu peito

Minha bacia aceita.

 

Porque chama com gosto

meu nome

oferto meu colo

Entre minhas curvas

suas lágrimas correm.

 

Nas entrelinhas

a sedição do seu silêncio.

O maior dos perigos

seu torrencial silêncio

conduzindo o arroio

dos meus fonemas.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Martha Galrão (Salvador/BA), poeta, professora, graduada em Psicologia. Dentre outras, participou das antologias poetas@independentes (2007) e Mulheres Poetas & Baianas (Caramurê, 2018). É autora de A Chuva de Maria (Kalango, 2011), Muadiê Maria (Coleção Cartas Bahianas, P55 Edições, 2013), Um rio entre as ancas, Coleção Pedra Palavra, (2013) e do livro para crianças, Uma menina chamada Nina (2017).