1

 

 

no píer do meu peito

ancoram naves e pousam navios

o amor é ave que faz ninho

 

 

 

 

 

 

2

 

 

agora que sou outra

tão ilha e ainda tão longe

imersa no mar que não tem dono

cê some

agora que sou o novo

comem-me

 

 

 

 

 

 

3

 

 

esta representação de mundo está morta

os afetos que só figuram desvios

as setas que não apontam caminhos

as mãos que não abrem portas

 

eu quero incendiar esta configuração de mundo

inventar as palavras que desarmam tudo

somar a meus muitos e diminuir os que nos fazem poucos

eu quero a potência que acorda o corpo

 

 

 

 

 

 

4

 

 

cabe em um poema

o acolhimento do absurdo

crises crinas metais pesados

cristais

 

em um poema cabe

a celebração da forte chuva

entender que água lava

e entender que ela inunda

 

em um poema

certamente

mora a dúvida

 

 

 

 

 

 

5

 

 

eu não me habituo com o medo

nem com o que esperam que

os corpos pretos acabem sendo

pouco a pouco cada vez mais tento

,

politizar o incômodo e acariciar o verbo

soprar no rígido comportamento

suportar a contradição de que o lido mínimo

é quem redesenha o tempo

'

cada vez mais

pouco a pouco aprendo

a ser sujeito com o vento

 

 

 

 

 

 

6

 

 

minha história vai embora agora

junto ao ônibus que ancora

na precária rodoviária às seis

descalça como um leão no mato

minha memória ainda caça entre retratos

os meus junto aos enfrentamentos do país

no interior do centro oeste

entre as existências não hegemônicas

minha herança agora descansa

e soma segredos à minha matriz

 

 

 

 

 

 

7

 

 

eu quero viver a contradição inerente à vida

estudar o futuro com idosos

e com o conselho consistente das crianças

aprender sobre esperança

eu quero desapegar da moral

como um animal

 

, eu quero crer

sem ver

 

 

 

 

 

 

8

 

 

ninguém para uma mãe que enfrenta três dias

de viagem de barco pra levar sua filha ao enem

nem

o sonho da filha de ser advogada

a primavera defende o sertão

o desejo não define o que é árido

 

não

secretamente

por terra ou por água

só se desloca quem ama

tudo para quando o encanto chama

 

 

 

 

 

 

9

 

 

foi no bnh da ilha que eu aprendi a chupar mel de flor

e no centro da cidade eu aprendi a me perdoar por me perder

valadares da pedra negra e do largo rio doce

do minério de ferro do coiote covarde e da água podre

minha paisagem de mercúrio

onde o sol força fazer refúgio

minha língua índia minha estrangeira figueira

minha insubmissão ao dólar à hipocrisia e à franca fronteira

canto que com negros não há zelo

onde mulheres indecisas decidem

e muitos homens cultuam o medo

valadares

você quer me manchar de lama

mas mesmo na mina

eu estudo a dança

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Mariana de Matos é artista visual e poeta. Mineira, do Vale do Rio Doce, sua terra foi habitada pelos índios botocudos, que resistiram por décadas ao domínio dos colonos. Atualmente, reside em Recife, a cidade dos rios e do mito da democracia racial. Graduou-se em Artes Visuais na Escola Guignard (UEMG) sem ter tido professores negros e pesquisa a contribuição da poesia negra para a decolonialidade, no mestrado em Teoria Literária (UFPE), onde ainda não há professores negros. Exercita o tensionamento entre versão oficial da história e contranarrativas polifônicas; hegemonia, relações de poder e novos contornos para antigas estruturas. Investiga representação, delírio da modernidade, invenção da diferença, subjetividade, narrativa de si e ferida colonial. Atua em linguagens híbridas, se interessa na emoção como sistema de fruição do mundo e se dedica à fusão entre os campos da imagem e da palavra. Publicou Para acabar com as obras primas ou sobretudo o verso (UEMG, 2009], Prosa e Verbo (Bendito Ofício, 2010), Meu corpo é um esconderijo (Penalux, 2014), Meta (Bendito Ofício, 2016) e Poesia pra Pixo (Bendito Ofício, 2017). Desenvolve, desde 2010, o projeto Poesia como Paisagem, procedimento poético urbano. Fundou o selo de poesia expandida Bendito Ofício e a organização MUNA (mulheres negras nas artes). Atualmente, desenvolve o projeto AS poetas do Pajeú, no sertão de Pernambuco.