©ngo minh tuan
 

 

 

 
 

 

 

 

Vozes abafadas

 

 

Por mais que eu fuja ao pensamento,

por mais que eu tente, neste momento,

vítima de um acidente fatal

há um doente a morrer no hospital.

Há uma criança que passa fome

e esse fogo, que se consome.

Há um mendigo, sem nada seu

e um amigo que se perdeu.

Há um gesto de amor parado no ar

e tanta vida a desmoronar!

Há tantas setas no meu caminho

e tantas brechas no teu carinho!

Como saber? E sorrir? E calar?

E ainda mais: como fingir e calar?

Essa criança, esse doente, esse mendigo

e esse fogo, e esse amor, e esse amigo

sou eu, és tu e somos nós

quando calamos a nossa voz!

 

 

 

 

 

 

Coração deserto

 

 

Meu coração é sozinho

e vagueia desnudo.

É dia e pelo caminho

dispo-me de falsos recatos

e visto-me de sonhos tantos

de sonhos tamanhos

encanto-me

e vejo-te em mil formatos

e tão benfazejo é esse momento

que em riso se torna meu pranto.

Meu coração é vazio

e vagueia desnudo.

É noite e no leito macio

dispo-me de falsos pudores

e visto-me de beijos tantos

de beijos tamanhos

assanho-me

e vejo-te em todas as cores

e beijo-te em mil sabores

mas tão solitário é esse momento

que todo o meu riso se veste de pranto.

Meu coração é deserto

e vagueia desnudo.

 

 

 

 

 

 

Pescadora de estrelas

 

 

Coração magoado, alma ferida

Caminheira solitária de tristes andanças

Alimento uma réstia de esperança

Pescando estrelas. No firmamento da vida.

 

 

 

 

 

 

Carnavalha

 

 

Vou beijar-te hoje à noite

pois já será carnaval.

Enquanto isso, deixo que o vento

sopre nos meus cabelos

e o sol me atordoe em calorosos açoites

e me acenda o desejo.

Guardo as carícias de fogo

por entre meus dedos

e mais tarde, despidos da fantasia

transformo-te em algo concreto, real.

Navalha na carne. e a carne na carnavália

seremos sementes do bem e do mal.

 

 

 

 

 

 

Hoje, basta de dor

 

 

Quero a alegria plena

em linha reta;

chega de anulações e sacrifícios

nada de obstáculos ou de curvas.

Quero o altiplano

e se assim não puder ser

lavo-me das águas turvas

atiro-me à cova rasa

e que venham lobos famintos

e me devorem crua.

Deixarei a mesa posta,

estarei disposta — e nua

e farei do branco a minha cor.

Vejam: sentirei prazer

nesse meu não-ser

e se alguém discordar

que atire à cova

a primeira flor.

 

 

 

 

 

 

Nebulosidades

 

 

Nebulosos, seus sentimentos

seus pensamentos

se evadem das correntes

e rompem os grilhões do corpo

invadindo o espaço.

mostrando-se como nuvens

dando um toque especial à paisagem.

Entre o sentir, o pensar e a realidade

que se nos apresenta

há uma distância

muitas diferenças.

Qual será, de fato, a sua, a minha verdade?

O que será que se esconde

nos entremeios

de cada margem?

 

 

 

 

 

 

Intangível

 

 

Intangível, o sonho desfaz-se

deixando a poeira na face:

ao rés do chão,

jaz a folha despregada pelo vento

que no insano momento

enxergamos borboleta

junto à pedra falsa

que imaginávamos diamante;

na lata do lixo,

a farsa que intentamos boa prosa;

ao relento, sem cor sem perfume

o espinho

que pensamos pétala de rosa;

o Cristo no crucifixo

e, da música,

apenas a pausa.

 

 

 

 

 

 

Assim, a vida

 

 

uma folha seca, ao sol posto

que fosse levada

mesmo que pelo vento forte;

uma lágrima que caísse

e encontrasse em um rosto,

mesmo que triste,

o apoio

antes de dissolver-se;

um grão de trigo

que encontrasse abrigo

entre companheiros

mesmo que dentre esses,

algum joio;

uma flor caída

que achasse refresco

em algum arroio

no fundo de um vale:

Assim eu quisera,

em algum momento, a vida.

 

 

 

 

 

 

Revolução do lixo

 

 

No novo sistema desumanitário,

nada de humanidades, nada de humano

o que vale é a ganância.

Para que cultura, para que livros?

Estes estimulam o pensamento crítico, a inteligência,

mas, o que vale é o dinheiro dos grandes capitais.

e a verdade deve ser apenas

aquela manipulada pela grande mídia.

Para mentes doentes,

distribuir migalhas é suficiente.

Só pensam em obter lucros altos

enquanto a pobreza habita os casebres

dorme nas ruas

ou pede esmola nas esquinas do asfalto.

O lucro alto é de muito poucos;

e, quanto aos gritos dos excluídos

eles fazem ouvidos moucos

e a pobreza explode e se espalha.

e eles pensam que poderão safar-se

se, em vez de pontes, construírem muros.

Não há humanidade, nem perspectiva de futuro.

A nova revolução será a do lixo.

 

 

 

 

 

 

Luto – substantivo ou verbo?

em luto pelos incêndios na Amazônia

 

 

Animais queimados vivos

pela insânia dos muito covardes

pela ganância inconsequente.

E chora o Rio Amazonas

e choram seus afluentes

por nossa fauna

por nossa rica flora

que arde em chamas.

Isso atiça a fome, a sede de luta

contra os dementes

e inconsequentes.

Isso provoca em meu ser um estado de luto

no duplo sentido.

Luto — mais verbo e menos substantivo

Luta, sim, pelos seres vivos.

Quem abraçará essa luta,

quem a comandaria

antes que seja tarde demais

antes que de nada nos valham

os nossos ais!

Nossa rica flora — violentada

Nossa fauna — em extinção trágica

Luto — mais verbo e menos substantivo

é o que precisa o meio ambiente!

 

 

 

 

 

 

Incêndios insanos

 

 

Árvores se contorcem

sob a fúria das chamas;

queimados vivos,

animais selvagens

são domesticados pelo fogo

sem prévio aviso

numa terra em que tudo é um jogo

de vis interesses.

Enquanto isso, fazendeiros ricos

fazem rebuliço

comemorando o fogo destruidor

(insanos, mal sabem que mancham as mãos

com o sangue de animais inocentes).

Como enxergar ordem e progresso,

como vivenciar paz e amor?

 

 

 

 

 

 

Nuvens negras em brancas nuvens

— em luto pelo incêndio no Museu Nacional

 

 

Nuvens negras, pó preto, fumaça

levam de roldão, para o infinito

um acervo cultural inestimável.

Desfaz-se em cinzas o Museu Nacional!

Perplexo, o Brasil se liquefaz em prantos.

A negra tempestade é de tal força

que a nossa visão jamais alcança.

O que era luz faz-se escuro

*mas eu canto

e enquanto destravo meu pranto,

os rolos negros continuam no céu

a sua dança macabra.

Fruto do descaso,

que não combina com acervo tão importante

Difícil acreditar,

mas a verdade insiste

em subir aos céus em forma de fumaça.

Descaso, descaso

— mas descaso é trapaça!

São amigos íntimos

em dança macabra sobre a cara do povo

e em ritmos alucinantes

desconstroem a cultura

desmentem as histórias do Homem.

— Tragédia!

Crime irreparável, sem nome.

— Mas e o castigo? A punição não haverá?

— Pelo que temos visto e des-vivido, nuvens negras passarão em brancas nuvens.

 

 

Nota da autora: *Thiago de Mello

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maria Esther Torinho é capixaba, graduada em Letras (Português-Inglês) e Psicologia, com Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras e Academia Camocinense de Letras. Escreve poemas, crônicas, contos, ensaios e artigos acadêmicos. Como artista plástica, participou de algumas exposições coletivas no Brasil e duas em Portugal. Principais prêmios: 1º lugar no Concurso da Gazeta e Biblioteca Infanto-Juvenil de Vila Prudente, em 1988; prêmio em abril/2002 no 3º Concurso Blocos de Poesia, com o livro Gotas de orvalho; 3º Lugar no Concurso Nacional de Poesia — Prêmio Jacy Pacheco — promovido pela Associação Niteroiense de Escritores (ANE), em 2002. Publicou Pássaro migrante, Pescadora de estrelas e sementes de fogo, Liberdade para as borboletas (poesia) e Maré Vazante (crônicas e contos). Participa de diversas antologias nacionais e internacionais.