©henri cartier-bresson
 

 

 

 
 

 

 

 

LARGADOS NO MUNDO

 

 

Deslocados refugiados largados

Sem ter lugar onde cair cem

Vidas atiradas ao mar como isca

Pescados como peixes à beira da morte

O terror içado no corpo e a fome

Os músculos em colapso e o choque

O caos como estado de vida e o filho

perdido no caminho

 

 

 

 

 

 

OS MORTOS SOBRE A COLINA

 

 

Os mortos estão sobre a colina

velando os vivos ao pé da encosta

 

Cospem murmúrios dalém-vida

lamentam o clima contínuo de festa

 

"Eles mal podem esperar por isso aqui",

disse uma ossada fragmentada

"O tédio eterno sempre vence no fim"

disse o fantasma sarcástico

 

 

 

 

 

 

ALBERTO MORAVIA

 

 

A foto de Alberto Moravia velho,

sentado, com as calças arregaçadas,

a camisa aberta, o peito à mostra,

os pés descalços, a barba eriçada,

Uma moça deslumbrante ao seu lado

O espanto de um garoto quando pela primeira vez

viu um escritor famoso e nem sabia

O que aquilo significava.

 

 

 

 

 

 

DIGITAL INFLUENCER

 

 

Gibrair é digital influencer

 

Em seu mundo imaginário de riqueza e fartura

Tem uma Kombi para fotografar as pessoas do rolê

Em São Sebastião da Oração Imaculada

 

Posa na rede com o cão de raça emprestado

Fazendo tanquinho na academia que não paga

Veste peças descoladas do magazine do Tião

Mas diz que tudo é importado do outlet.

 

O pai Dorico não saber mais o que fazer

— Queria que ele trabalhasse na oficina comigo

Mas olha o Gibrair, vive só nesse celular

fazendo essas coisas de internet.

 

Gibrair disse que ainda vai ficar rico,

Tudo por que é digital influencer

 

 

 

 

 

 

EU QUERO CONHECER O POETA

 

 

Eu sempre quis conhecer um poeta

Saber como ele se comporta o que fala

Passar uma tarde com o poeta

Saber o que diz o poeta

 

Viajei mais de mil quilômetros

Para passar uma tarde com o poeta

 

Deixei luxo, casa cinematográfica com vista paradisíaca,

Casamento perfeito, família nutrida, viagens pelo mundo,

Mas nada me satisfaria se não conhecesse o poeta

 

Sento-me à frente dele,

O poeta me encara com tristeza

Eu peço que diga algo

 

A tarde inteira olho a olho

E nada saiu

Da boca do poeta

 

 

 

 

 

 

SENTENÇA DE MORTE

 

 

Sua cidadania como sentença de morte

Está estampada em sua pele,

em seu bolso,

em seu endereço

 

A cada dia, o fuzil apontado como aviso,

Ele está na esquina, na porta de casa,

Ali, bandeira hasteada,

 

Bastou um estopim,

uma faísca,

um desentendimento,

um arranjado engano,

 

Abatido na esquina de infância

Na ida para a padaria,

a caminho do trabalho,

em busca da namorada,

antes do rolê de sábado.

 

 

 

 

 

 

MAIANA

 

 

Maiana morreu por dentro

Algo a consumiu em seu íntimo

Corroeu como encanamento vencido

Dilacerou tudo como ácido

Deixou tudo inválido, carcomido

 

Naquela manhã não ouviu Dire Straits para lembrar o pai

Não colocou ração para o gato, nem lhe disse bom dia

Não abriu a janela para sentir o sol na pele branca

 

Não entrou na rede social para curtir a amiga

Não ouviu pela última vez o recado da amada

 

Maiana desistiu da vida

Numa lírica manhã de domingo

 

 

 

 

 

 

INVASOR

 

 

Aqui é o invasor

Eu não quero nada

Eu só preciso de dinheiro

Eu posso ser um bom homem,

Desde que não chame a polícia.

Eu sei onde você mora,

O que você faz, não tente me enganar.

Tenho fotos suas comprometedoras,

Que vão te queimar.

Você até que tem um corpo bonito,

Mas essa não é minha intenção.

Eu poderia cuidar de você e ser até o seu marido,

Mas preciso de dinheiro,

Deposite 500 até amanhã na Casa Lotérica

Eu acho melhor você cumprir a tarefa,

senão te procuro

e me apaixono.

 

 

 

 

 

VAI, MENINO

 

 

Vai, menino, ali no muro, chamar teu pai.

Desde que largou todo mundo e veio morar nesse barraco,

Desde que entregou a vida para a espelunca,

Desde que foi morar na terceira margem do rio,

Vai, menino, ali no muro,

chamar teu pai, ali, no meio do atoleiro,

Ele vai demorar para acordar,

Vai aparecer sem camisa, a pança branca, a cara estragada,

Vai dizer "não precisava",

Vai pegar o bolo que tua mãe fez,

Vai dizer "como estão bonitas as crianças" e "deus te abençoe",

Vai virar as costas

E vai voltar para o seu mundo

do impossível.

 

 

 

 

 

 

OS INDIOS

 

 

Os índios pedem ajuda on-line

Estão sendo acossados e mortos por mineradores

Acobertados por um governo covarde

O chamado dos índios pode ser visto em streaming

A mulher do cacique em close desfocado

Tem o terror estampado no rosto transparente

Seus olhos como dois curumins fuzilados

Ela pede ajuda para a terra tomada à força

Os brancos estão matando sem clemência

Acobertados por um governo sanguinário

Os índios pedem ajuda on-line

Num de últimos momentos

de vida

 

 

 

 

 

 

QUIS

 

 

Quis sair,

Rasgar o mundo

Quis sentir,

A chama esturricar a pele,

Quis desafiar,

A existência ao sol a pino

Quis temer,

A navalha na alma

Quis

O amor como prova de vida

Quis sair

 

 

 

 

 

 

A POESIA

 

 

A poesia aquele derradeiro intenso propenso belo lírico insano insumo

Lírico telúrico dinâmico ávido límpido sujo ímpio universal labiríntico

Magnético magnânimo natural verbal oral escrito cantado sussurrado

Berrado amado avoado inteirado beirado libertado sexuado vigoroso

Grito

Contra o fascismo

 

 

[Poemas inéditos]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcio Dal Rio nasceu em Mococa/SP, em 1973, e vive em São Paulo. Participou das coletâneas Palavras de Poetas 3 e 4 (Physis, 1994 e 1995), Transitivos (Off Produções Culturais, 2011), Curva de Rio (Giostri, 2017) e Carne de Carnaval (Patuá, 2018). Em 2016, venceu o Prêmio Maraã de Poesia, promovido pela Editora Reformatório, com apoio da Academia Paulista de Letras, por meio do qual teve seu primeiro livro solo publicado, Balada do Crisântemo Fincado no Peito (Reformatório, 2017). Desde 2006, escreve o blogue Bloganvile, atualmente alojado no site www.marciodalrio.com.br