Devolver o barulho à palavra

Ao tempo presente

Desenterrá-la

Devolver a palavra à pedra

O futuro ao esquecimento

Destituí-lo

Trazer os dentes para dentro do mundo

Moê-lo

Devolver o barulho à rua

Aos mortos a saudade

Tudo que já não é

Devolver à vida a possibilidade da derrota

Negar o corpo à máquina

Negar o armistício

O fim do barulho

Negar o fim do poema

E a palavra

Devolvê-la aos tigres.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Arriscar-me

— não um raio; risco

tênue da lâmina

a cortar o espaço

entre pelo

pele

e pescoço

ao revés do espelho

equilibrando

a má luz do reflexo.

 

Um lance de dados —

ressurgir depois

da porta

o mesmo homem —

jamais abolirá o acaso.

 

 

                            [para Mallarmé]

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Tenho pena dos carros

Miseráveis

Dentro do túnel

Entre buzinas agudas

E o ronco do motor

 

A morte imóvel do tempo

Sinal vermelho lá embaixo

O ponto do ônibus

O eixo viário, rodoviário

Entroncamentos, desencantos

No trevo da má sorte.

 

Tenho pena dos carros

Bêbados de gasolina

A seco, sem gelo

Condenados a seguir

Um gps que não sabe onde vai

E as pessoas, que desaprenderam a voar.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Para onde se vai, na chuva, com a cabeça descoberta?

Talvez à rua sem saída,

Quem sabe tomar a cachaça aço do dia.

Porém, não cabe a garganta a cachaça.

Para catedral incendiada de Notre Dame?

Nunca fui, não vi.

Não me sabe Paris, dela também não sei.

Não li Rimbaud no original,

Como disse Vinicius, o bom burguês.

Só leio traduções, as piores

As mais baratas feitas de mutilações.

Nelas encontro a poesia me arde os olhos.

Não vi Notre Dame, não tenho fotos. Só viajo de ônibus.

No entanto, não me tomem por bárbaro, ignorante. Digam que lamento.

Mandem condolências.

Acontece. Pode acontecer.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Ante o espaço,

A visão do espaço:

Silêncio. Um passo ao lado.

Deixar ver a supernova,

A cara do buraco negro,

O lenço quadriculado

Da moça que trouxe o café.

Deixar-se cansar —

O cansaço de estar vivo,

E receber a noite pela boca do sono,

Os pés descalços de marinheiro,

Agora astronauta,

Que persegue o mar no dorso nu das estrelas.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Acordei tão cedo que pude ouvir os relógios dormindo nas paredes, o rosto grave de quem teme perder o horário. Todos intranquilos, já velhos, mesmo quando novos. Confundidos entre o olho que vigia e o prego que aprisiona.

De todo modo, atravessei a sala macio para não acordá-los — não serei eu a apressar o tempo, e assim o hoje começou um pouco mais tarde.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Oitenta e oito tiros

Matam há oitenta e oito anos

Mais de oitenta e oito milhões de negros

Dos oito aos oitenta

Todos os dias do ano.

Acontece, magistrado

Há séculos acontece.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

quando a gente for pagar aluguel

e morar juntos

num apartamento de 47 metros

no terceiro andar de um prédio

sem grades na frente,

não vou trocar teu primeiro nome

pelo de amor.

vamos seguir nos olhando,

pupila caleidoscópio em transe,

com duas gotas de surpresa e suor

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Colocando o trem na frente dos trilhos,

os bois na frente do tempo,

os bárbaros diante Roma.

Talvez eu vá, talvez,

por isso mesmo, fique.

Desapareça.

Os mortos andando em círculos,

O espírito da cidade,

às vezes uma criança da guerra.

A noite foi feita pro sono,

porém nem sempre eu sonho.

Às vezes é fome — uma fome de sonho,

às vezes fogo, os cães ladrando.

Às vezes eu durmo, apesar do olho insone.

 

 

 

 

 

~

 

 

Desejo escrever um poema

De dez minutos e alguns segundos

Um grande poema dos séculos

Um grande poema preto

Um homem poema de unhas negras

 

Um poema pra limpar da boca a era da técnica

Pra sujar a boca com o gosto do barro

Pra cutucar o dente até sair sangue

Uma mandinga

Filho da pressa e da preguiça

Negativa de Angola contra o capital

 

O poema não tem solução

Cresce das pancadas que recebe

Transforma a ferro a raiva que acumula

E os versos arremessa

Contra os muros do mundo

 

 

 

 

 

 

~

 

 

um poeta preto ao sul do mapa

ao céu do Morro

refugiado no verso

e se lhe falta

uma qualquer coisa

de recurso

mestrado ou títulos

o aval crítico da academia

(nem Deuleuze e Guatarri

lhe salvam)

de sobra os cabelos brancos

tempo percorrido

da periferia ao centro

horas de voo e asfalto

de malícia e couraça

mandinga a proteger o coração

suburbano apaixonado

sentado à janela do ônibus

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Penso que Fernando morreu Pessoa

E por mais que eu tente

Não me resta também muito tempo

 

Li Fernando expressar seu racismo,

Em minha defesa me ponho a ler Ricardo Aleixo

Poeta preto brasileiro

 

Chorei sentado no banco ouvindo Tabacaria

Lembrei que pouca coisa me consola no mundo

 

Penso, com a cabeça pesada que me cabe

Em Fernando morrendo na caligrafia de seus versos

A realidade plausível a se desfazer

As tabuletas, a tabacaria, Esteves

Apagando-se no Universo sem metafísica

 

Vejo Fernando descalço a caminhar pelo tumulto

Laborioso das ruas do centro, o sol de quase dezembro

Talvez liberto de carregar a si mesmo, vejo-o com nitidez

Desejo-lhe sorte enquanto abro mais um botão da camisa

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Não me chame, aos berros, de amor

para que o vizinho não veja

a morte dentro das vozes

pacíficas que ressoamos

o rancor metálico

se distendendo no ar

 

Não me chame de amor

para que o céu não fique imóvel

ferido em seus azuis

 

Não me chame de amor

Não nos chamemos de amor

como quem esconde o aço

debaixo das unhas

dúzias de corpos

enterrados no jardim

 

Tenhamos cuidado com o vento

e a saúde do cão

 

Me chame apenas pelo que sou

e deixe o verão

cuidar da nossa carne em chamas

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcelo Silva é natural de Porto Alegre/RS, poeta e professor de Literatura e Língua Portuguesa. Mantém o blogue DeSalinhado e também publica poesia em diversos sites e revistas dedicadas ao gênero. Criou a oficina "A poesia é um atentado celeste", na qual estimula o fazer poético por meio de exercícios que envolvem canções, imagens e trabalho coletivo. Em maio de 2019, lançou o livro O que carrego no ventre pela Editora Figura de Linguagem. No Facebook: DeSalinhado Verso.