©pexels
 

 

 

 
 

 

 

 

~

 

 

i.

acreditava que melhem adas

era nome dum deus geográfico

atlas

a Terra nos ombros

senhor da geografia

: a grafia dum M com

as pernas abertas

voo de pássaro na capa

do livro, no início do nome

no sonho acordado no banco

da escola pública

o sono, o sono.

 

 

ii.

senhor melhem adas,

pois homem

[quem diria] agora buscando

talvez libanês ou turco-otomano

a viagem ou sonho das

fotografias coloridas

[bendigo as gráficas, a tecnologia,

a década de 1990]

: via dutra, imigrantes, anchieta, rio-santos

e outros lugares por onde passei, homem,

rebuscando o menino e o sono do menino

e os sonhos de viagem — o banco da escola

de onde se sonhava para poder sair.

 

 

iii.

não sei todavia do cerrado da amazônia

das planícies pantaneiras do nordeste do

sertão de cubatão — embora são paulo —

não sei daquelas vias engarrafadas por

fuscas e chevettes e opalas

no entanto

senhor melhem adas

quantos quilômetros

de estradas passei enquanto

a explicação sobre demografia

se alongava

quantas capitais desse país

quantas florestas quantas

moradas -— de senador camará

a capuava — de carapicuíba a

brasília e de lá, à ilha de santa

catarina [um rabisco no mapa].

 

 

iv.

senhor melhem adas, muito obrigado

pelas fotografias coloridas dos livros de

geografia.

 

 

v.

ainda que

(entenda meu reclame)

não tenha visto imagem da vizinhança

ou das montanhas dos rios de lama do

enxaimel-aborto-da-arquitetura

 

ainda que

(entenda, entenda)

o vale os alemães os italianos os japoneses

as carroças as vacas o queijo o leite

o sotaque a verdade e tudo aquilo

que não cabe nos livros

senhor melhem adas,

os livros não cabem nos livros, tampouco

os interiores as periferias as linhas invisíveis

entre aqui e a ali.

 

 

vi.

surgia hum mil novecentos e noventa e sete

e viegas entrou torto na sala de aula para pregar

o mapa de cabeça pra baixo no quadro verde

ele dizia que o mundo que os mapas que as

projeções ele dizia que as cidades que as culturas

que as populações

 

e aquele mapa profano do cabeçalho virado,

senhor melhem adas,

valeu mais do que todas as fotografias e os

mapas de seus livros

 

[me perdoe]

 

 

vii.

talvez joaquim me desdiga

(joaquim é geógrafo e professor, sorri

com os olhos

[não saberia dizer do sorriso do senhor]

e escreve poesia à maneira da maior cidade

brasileira

[o senhor veja, geografia e poesia]

mas no entanto profiro aqui

que o senhor melhem adas

geógrafo e escritor

autor de livros didáticos

escolhidos pelo professor

me fez estrago com os gráficos as linhas as cores

os dados os mapas e os vetores

mais do que me causou estrago

a própria poesia dos livros

com rimas-amores-dores

 

e por isso tomo liberdade para requerer:

 

 

viii.

senhor melhem adas

peço-lhe que

caso haja tempo ainda

o senhor revise seus livros didáticos, pois sinto

falta de que sejam mostrados

(além das praias das montanhas das planícies dos planaltos

das rodovias)

a) o progresso, bairro sempre ao sul onde nasci

b) as ruas onde os meninos eram felizes

c) a fábrica, senhor melhem adas, a fábrica

d) a rua da glória e a oficina de bicicletas do pai do elias

e) uma cidade cansada, aquela

 

 

ix.

dado o pedido, digo que aguardo

se não uma retratação, um sinal

de que foram compreendidos

meus pedidos de revisão em algum

de seus livros, senhor melhem adas

 

 

x.

que não é deus ou atlas

que não é turco ou libanês

que não sabe de mim nem dos meus

mas que por humano e professor

imagino que tenha ouvidos

por isso me despeço do senhor

melhem adas

profundamente agradecido.

obrigado.

 

 

[08/06/2019]

 

 

 

 

 

 

~

 

 

memória: em 91 o pai enxotou a chica

— se era esse o nome da cachorra

e a ofensa marcou tão fundo

que chorei para a professora

 

memória: quando na mudança de casa

perguntavam-me se tinha certeza

rhenius me deu cinquenta reais de ajuda

para a mudança: chorei com clóvis

 

memória: sempre que abro a caixa de

cartas e me deparo com quem eu era

choro nos braços imaginários de meus amigos

 

agora isso: um tumor grande e vários

tumorezinhos, fotografias que não se

movem, um trem a pilha que nunca veio.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Há um homem sentado à mesa no lugar do pai. Ao lado um gato e um cão. O homem parte o pão com sabedoria. É preciso ser sábio para acertar as metades. Não sorri porque não tem dentes; cego, não vê a quem estende a mão; tampouco escuta quando lhe agradeço.

Obrigado, ele diz, por te sentares comigo à mesa, por não me exigires sorrisos, por não me contares nada.

Leva à boca sem dentes o pedaço de pão encharcado de café e sorve dali o ocre amargo.

Ainda sinto o cheiro, diz, e é como se tivesse cor.

Ainda sinto o gosto, diz, e é como se amasse a dentadas.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

                            Para Simone Teodoro

 

 

primeiro veio a fórmica

o balcão o baleiro os copinhos

e duas qualidades de amendoim

doce e japonês

 

embalados em saquinhos de papel

e as moedas pequenas que a mãe

punha na minha mão e dizia

pra ver quanto dava

 

não era necessário palavras

porque as moedas já diziam

: doce ou salgado

e os dedos fazendo um V

 

primeiro veio a fórmica o baleiro

o caminho de casa ao boteco

renato, o bêbado que me mostrou

o ninho de beija-flor e contava

 

sempre e de novo a história

da cobra — que deixava o veneno

sobre uma folha caída para beber

água — e depois o sugava de volta

 

primeiro veio a fórmica

a fumaça dos cigarros campeão

os saquinhos de papel com

amendoim dentro e uma sensação

 

assustadora de que era seguido

(a benzedeira disse depois que

aquele meu susto era do anjo

da guarda que me acompanhava)

 

parece que a fórmica o bar

as pessoas do bar mesmo renato

meu pai o amendoim os dedos

em V doce salgado a corrida

 

pra casa. parece que a fórmica

veio antes de deus.

 

 

[04/12/2018]

 

 

 

 

 

 

~

 

 

A corrida de elevadores

com seus repousos

de doze horas

 

(há sempre um lado

de fora, embora o

silêncio das horas noturnas)

 

— trinta e poucos anos

saboreando precipícios

me deram o direito de

 

acreditar que independente

do estio, o mangue trafica

pedaços de chuva.

 

 

[14/11/2018]

 

 

 

 

 

 

~

 

 

eles não sabíamos de nada

depois que a festa foi feita, pá

depois que as cortinas se abriram

e jovens embriagados divertiam

adolescentes pobres com sonhos

de drogas e roquenrol

 

eles achávamos que estava tudo

acertado brizola & betinho retornando

do exílio — ninguém se perguntou pelas

ossadas do araguaia porque havia ouro

para ser retirado em serra pelada

 

eles comemorávamos a abertura

mesmo que os generais se aposentassem

e torturadores vorazes fizessem escola

enquanto, nos almoços de família,

jornal aberto mostrasse os vagabundos

criminosos comunistas

— eu bem que fiz a minha parte

 

eles cantávamos cazuza e renato russo

eles cantávamos a música da barata

do ursinho — ou vão me censurar (será?)

e era tudo divertido porque os jovens

tinham motos 2 tempos e capacetes

coloridos — os jovens morriam como moscas

naquele tempo em que fizeram o asfalto,

lembra?

 

eles acreditávamos em conceitos vagos

de democracia e coragem — naquele tempo

foi duro, mas alfredo bebeu cachaça e operou

teares independente do que houvesse lá em cima

— os generais se aposentaram ganhando milhares

e os operários, ah os operários e seus sonhos

de aposentadoria e seus filhos galgando o mundo

pequeno

e sua realidade de ninharias

 

eles sonhávamos com um país desenvolvido

com carros voadores como nos filmes

eles brincávamos de presidencialismo

— um presidente a mais ou a menos

se as corporações ainda — quer que eu explique?

e os jovens poetas do roque tomando overdose

e falando verdades simples — comemorávamos

— falando verdades tristes — comemorávamos

até que todas as canções de protesto foram

esquecidas em gavetas junto de contas pagas

e contas a serem também esquecidas

 

também o amor amarelece

também o futuro amarelece

tudo fica sendo mais ou menos amarelo

de acordo com os óculos antigos

— porque tentamos ver o que queremos

e não choramos nossos mortos como

deveríamos

 

— fosse assim, não ousaríamos chamar

ao diálogo, mas clamaríamos à forca

 

foi a literatura que não lemos ou a que deixamos

de escrever que nos fez covardes parlamentaristas?

foi o colégio eleitoral de tancredo ou a rouquidão

de vozes que pediam aos golpistas que parassem

 

— a sensibilidade dos leitores não permite que exibamos

aqui a fotografia de mussolini enforcado pela reação

italiana

 

tampouco o pedaço da têmpora dum adolfo covarde

que preferiu fugir com um tiro (como um candidato

que se nega a ir ao debate) —

 

eles queríamos um país do futuro que nos chegasse

pelo rádio ou através de programas de televisão

de domingo

mas estávamos ainda dormindo ainda comemorando

que a ditadura caiu a ditadura caiu a festa da democracia,

 

e enquanto comemorávamos as vitórias e dormíamos

banhados em glória, eles fazíamos o que queriam

porque eles não gostam de música

eles não gostam de literatura

eles bebem cachaça e operam teares

rezam a deus rezam aos pares

eles querem que o fim do mundo se adiante

 

— eles não demos corda no relógio outra vez, não é?

 

eles não sabemos exatamente o que esperar do que vier, não é?

eles estamos com medo de que nos passe o que aconteceu com quem aparece nas fotos, não é?

 

somos todos muito covardes, não é?

 

mas não matamos / porque somos bonzinhos

não maltratamos / porque somos bonzinhos

não julgamos / porque somos bonzinhos

exatamente como eles nos queríamos.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

                            Para Mô Ribeiro

 

 

topei muito chefe besta

nessa minha vida torta

muito patrão muita lenha

obediência e lorota

 

já fiz muita cara feia

trancando dedo na porta

chegando atrasado um dia

que desculpa me faria?

 

água muita que caía

(era chuva e ventania)

e eu topando chefe besta

pensando: o que vai, volta

 

somando na dor da azia

uma manhã meio morta

todo dia todo dia

uma manhã meio morta.

 

quando chegou o asfalto

a cidade ficou mais próxima

jovens morriam de acidente

e domingos eram de velórios

 

a terra que sujava os pneus

das bicicletas fora enterrada

sob as espessas camadas

de lama escura, dura e eterna

 

a terra que sujava os sapatos

que o pai vestia para ir pra fábrica

a terra que sujava os sapatos

de minha mãe antes da faxina

 

(um pedaço de papel à mão

para limpar a vergonha)

 

a estrada que levava à casa

de minha avó permaneceu

selvagem: macadame depois

da chuva para aliviar solavancos

 

os senhores engenheiros

decerto comemoraram o sucesso

da empreitada: liso como um mar

sem vento

 

nunca mais visitei a oma e o opa

(o português esforçado sob um

sotaque estrangeiro — os olhos

de meu pai no antes da genética),

 

como se calçasse tênis brancos

pagos, é claro, no crediário

da pague menos calçados

da rua quinze, lá no centro da

 

cidade.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

                            Poema apenas para Rafael Tahan

 

i.

por exemplo

o êxodo

 

(quem diria que

uma fuga de quatro

décadas pudesse

ter se realizado

em seis dias?)

 

por exemplo a vida

(quem diria,

quem diria)

 

por exemplo

o exemplo.

 

ii.

uma gotícula

outra e outra

— nuvem não é

fumaça

se fica ou se passa

nuvem é outra coisa

(por exemplo

apenas)

 

iii.

quem diria

que o exemplo

— o êxodo

a nuvem —

fossem da mesma

matéria?

 

como se resultado

de atrito

escapando como se

de uma artéria.

 

 

[25/07/2018]

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Percebemos, senhoras e

senhores, ser impossível

seguir adiante

E por isso o próximo

passo é tão importante

 

Ao poço sem fundo

Ao fundo do mundo

Senhoras e senhores,

é impossível

 

Apertem o passo,

estendam os braços

para o invisível

e voem! Voem,

 

senhoras e senhores!

 

levanto a voz para que me escutes

(são só palavras, não há fogo nelas)

tampouco nos dias corre algo que preste

: os dias têm as veias entupidas

 

um cadáver perfumado talvez tivesse

salvo esta tarde, mas onde encontraremos

um morto a essa hora: já passa das onze

 

estão encerradas as transações bancárias

as traduções de algaravias palavras que

não sejam bifurcadas e promessas para

este dia que se afunda e não termina.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

em noventa e quatro

quando roberto baggio

chutou por cima do gol

gritei sozinho diante da

televisão segurando a

bandeirinha de plástico

 

desde então domingo

futebol e frio resultaram

em solidão para aquele

pequenino que cantarolava

baixinho o tema de abertura

do fantástico

 

desisti da televisão

desisti do futebol

mas volta e meia abro

os braços e seguro contra

o peito, com força, o menino.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Marcelo Labes nasceu em Blumenau/SC, em 1984, e hoje reside na capital. É autor de Falações [EdiFurb, 2008], Porque sim não é resposta [Antítese, Hemisfério Sul, 2015], O filho da empregada [Antítese, Hemisfério Sul, 2016], Trapaça [Oito e Meio, 2016], Enclave [Patuá, 2018], O poeta periférico [Edição do autor, 2018] e Paraízo-Paraguay [Caiaponte, 2019]. Tem poemas publicados em Carnavalhame, InComunidade, Mallarmagens, Literatura & Fechadura, Livre Opinião — Ideias em Debate, Ruído Manifesto, Enfermaria 6, Revista Lavoura e Revista Vício Velho. Edita a revista eletrônica O poema do poeta, onde publica originais manuscritos, esboços e rabiscos de poetas e ficcionistas. É editor na Caiaponte Edições.